A publicação que vos trago hoje não é nova, agrega as duas que sobre o tema coloquei na antiga casa deste blog com 5 anos de intervalo! É a continuação da prometida trasladação das publicações que no meu entender não merecem desaparecer; pelo que a pouco e pouco as farei aqui renascer, mesmo sabendo que várias ganharam já o direito de figurar em outros blogs(1).
I
Sobre este botequim diz-nos Pinho Leal no vol. VI - p. 62 - do seu Portugal Antigo e Moderno:
«Houve na rua de Cima do Muro, nesta freguesia de S. Nicolau, um pouco ao poente do Postigo dos Banhos, um botequim, que se tornou célebre e conhecido como nenhum outro no Porto e fora do Porto, até mesmo na Inglaterra, na Rússia, na Alemanha, na França, etc.
Era público e notório, que naquele botequim ou casa de café e bebidas, foram roubados e mortos muitos marinheiros ingleses e de outras nações, e é certo que aquela casa esteve muitos anos debaixo da vigilância das autoridades locais, persistindo, a despeito de toda a vigilância policial, os boatos mais aterradores: até que a casa foi expropriada e demolida pela câmara, como todas as circunvizinhas, para a abertura da rua da Nova Alfândega - sem se apurar o fundamento de tão sinistros boatos.
É certo que aquele botequim, todas as noites se enchia de mulheres perdidas, marujada, principalmente estrangeira, e homens de má nota; que ali havia música e danças (cancan) desonestas, e um arruído infernal até desoras; - que ali houve por vezes rijo bofetão e grossa pancadaria, - e que muitos dos fregueses, nomeadamente marítimos russos, ingleses e alemães, lá pernoitavam, estirados no chão, com o peso do vinho, até ao dia seguinte, - dizendo as más línguas que eram embriagados artificialmente, e de propósito, pelo dono da casa, para os roubar, quando levavam consigo dinheiro, e que depois os lançava ao rio. E acrescentavam - que muitos cadáveres apareceram no Douro, que se disse serem marítimos estrangeiros que se afogaram casualmente, quando a verdade era - que haviam sido roubados e assassinados no maldito botequim... Nunca pôde averiguar-se bem a cousa, mas parece vir a propósito o aforismo - vox populi, vox diaboli!...
O proprietário deste... botequim, enriqueceu com o seu ignóbil negócio, e era tão astuto que adivinhava sempre o dia e hora em que a polícia vinha dar-lhe busca... Chamava-se António Pereira Porto, por alcunha o Pepino, e por isso o seu botequim ganhou o título de Botequim do Pepino. O tal Pereira Porto, faleceu aproximadamente em 1850, mas a viúva conservou o célebre botequim (mas já muito decadente) até 1870 a 1871, data da demolição daquela rua e das ruas adjacentes».
II
Ainda sobre este célebre - por fracas razões - botequim, pude encontrar n' O Tripeiro umas preciosas notas, no volume correspondente ao seu primeiro ano (1908), na secção de perguntas e respostas. Tencionava verter para aqui a informação que lá surge com a descrição que Arnaldo Gama lhe faz; contudo opto por não o fazer dado que iria repetir texto já difundida neste blog.
Apenas apenso a essa informação a seguinte, com caráter já secundário, mas que está também na tal secção de perguntas e respostas, escrito por um tripeiro de gema batizado em S. Nicolau:
«O Botequim do Pepino, em Cima do Muro, era muito concorrido da marinhagem estrangeira e de mulheres de má nota do Forno Velho e imediações. As desordens ali eram frequentes. O prédio, juntamente com os demais do mesmo lanço do muro, foi demolido, quando se construiu a rua que segue da dos Ingleses para a Alfândega. O botequim transferiu-se para o Forno Velho. Não sei se ainda lá existe ou algum seu descendente. O Rodrigues Sampaio, o Sampaio da Revolução, era acusado pela imprensa adversária por ter sido freguês do mesmo café, quando era guarda da Alfândega ou coisa que o valha. Cito este facto de memória mas creio não estar em erro».
III
Em relação ao dono deste estabelecimento, conheço biograficamente uma data: a do seu casamento! Isto porque no Periódico dos Pobres no Porto de 18 de Outubro de 1845 me deparei, casualmente, com esta notícia:
«Anteontem de tarde atravessava a todo o trote a Praça de S. Lázaro um cabriolé a quatro, carregado de pessoas do sexo feminino em grande luxo, e acompanhado de cavaleiros. Era o botequineiro Pepino de Cima do Muro que tinha ido casar, e que se recolhia a casa em grande estado»(2).
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O retângulo vermelho indica o local onde terá existido o botequim de António Pereira Porto, um pouco a poente do postigo dos Banhos (letra A), tal como indicado por Pinho Leal |
IV
Este botequim poderá, curiosamente, estar relacionado com a introdução do fado no Porto, canção dita nacional mas na verdade urbana de Lisboa, que tal como a guitarra que a acompanha não terá raízes mais profundas do que início do século XIX.
Com efeito, diz-nos assim Camilo na sua novela Eusébio Macário, publicada em 1879 e colocando a ação nos anos quarenta do mesmo século:
«Conhecia a fama do botequim do Pepino em Cima do Muro, onde o fado batido(3) deitava à madrugada, com entreatos de facadas e muito banzé».
E também:
«Não encontrava no círculo das suas finas relações algum fadista curioso. Ainda os não havia fora das tabernas da Porta de Carros e das alfurjas da Porta Nobre, ramificações do Pepino de Cima do Muro».
V
Extrato do capítulo XIII de As Duas Fiandeiras, por Francisco Gomes de Amorim:
«Há na cidade do Porto, em cima do muro, e defrontando com o mosteiro de Corpus Christi, de Vila Nova de Gaia, certo botequim que se tornou célebre pelas cenas de amores românticos, dramáticas, às vezes trágicos, e quase sempre mais ou menos escandalosos, que ali se representaram, há perto de vinte anos(4). È o famoso botequim do Pepino. Não houve nunca, nem tornará a haver, provavelmente, com a degeneração em que vão caindo os costumes, outra casa como aquela foi, nos seus tempos de gloriosa memória.
O leitor e o viajante, curiosos de monumentos arqueológicos, podem, ainda hoje, ver a sala, os móveis e as pinturas, que foram testemunhas dos factos que vamos referir, e de outros muitos, e muito mais notáveis, que seria útil e instrutivo memorar (...). Está tudo ainda nos seus lugares, como então. E, contudo, que diferença espantosa, em tão breve tempo! Desapareceram os frequentadores e frequentadoras, que lhe deram renome; e com eles se foram os bons usos, a alegria, o ruído, a vida dessa quadra feliz!
Estão lá ainda as quatro mesas, de dois palmos de largura e oito de comprimento; o mesmo espelho, oval, que viu tantas caras formosas... e tantas horrendas! Tantas cenas de ternura, e tantas desordens lubricas e sanguinolentas! Os mesmos quadros adornam as mesmas paredes, representando: "Ordres religieuses de femmes. La dernière heure d'un pécheur. La dernière heure d'un juste. O inferno; O purgatório. O juízo final. E mais duas excelentes gravuras de Andran!
É tudo o mesmo, e tudo mudou!... porque tudo envelheceu. O rio continua a correr junto ao muro; o mosteiro do Corpus Christi, e a rua do Rei Ramiro, ou Ramires, veem-se ainda, da porta do botequim, na outra banda do Douro, a curva do rio limita do mesmo modo o horizonte (...). Tudo isto é como há vinte anos; mas a asa do tempo e o sopro ardente da civilização levaram a poesia da navalhada, que então se dava e levava no botequim do Pepino. Varreram, para os leitos dos hospitais ou para as valas dos cemitérios, a maior parte das personagens que nessa era famosa animavam aquele quadro! Nem belas, infelizes; nem poetas e romancistas, disfarçados em marujos; nem sequer marujos verdadeiros, dos que até ali tinham resistido às nossas transformações sucessivas, frequentam hoje o outrora famoso estabelecimento. Este século de prosa dá cabo de tudo.
A gente que concorre agora ao botequim do Pepino é vulgar, como nós todos, sem nenhuma circunstância que a recomende a futuros escritores. Toma o seu café e fuma o seu mau charuto, como quem está placidamente em sua casa; entra e sai, quando quer, de dia e de noite; e nem sequer encontra, umas vezes por outras, quem lhe dê, não diremos já duas facadas, porém, ao menos, dois bons murros, para cortar a monotonia da vida!
Oh civilização!... o próprio Pepino já não é pepino! Como o seu homónimo de França, passou o reino, digo, o botequim, por testamento verbal, não a outro Carlos Magno, mas ao Sr. Cinoura. Cinoura! Que substituição tão grata para este século insípido!»
*
Como nota final devo acrescentar que é muito estranho que Pinho Leal dirija o ano da morte de António Pereira Porto para os anos 50 do século XIX, quando no Arquivo Municipal do Porto está o seu registo de falecimento que demonstra ter ele falecido a 6 de fevereiro de 1888(5). E ainda mais estranho que este registo o dê como morador na rua de Cima do Muro quando esta rua praticamente deixou de existir em 1871. Será que António Pereira Porto ficou a residir numa das casas que ainda hoje existem desta rua, hoje mais conhecida por Muro dos Bacalhoeiros? No seu testamento, feito em 1874, António Pereira Porto declara que não tendo filhos deixava como herdeira natural a sua esposa mas também legava «vinte e cinco esmolas de mil reis a pessoas mais necessitadas desta freguesia de S. Nicolau», bem como 20$000 a distribuir pelos seus sobrinhos. Me parece que, apesar da fama, não seria assim tão empedernido o coração deste nosso Pepino...
Viriato
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1. Este parágrafo introdutório é de Maio de 2018, quando a A Porta Nobre ainda existia.
2. Humm.. não querendo ser má língua, fico contudo a matutar se António Pereira Porto era apenas dono de um botequim, ou haveria mais negócio nos andares superiores do seu estabelecimento.
3. O fado batido nas tabernas de Porto e Lisboa, há muito morreu. Para se ter uma ideia de como ele era, poderá o leitor passar os seus olhos por aqui, e aqui para uma recreação moderna com concertina.
4. Embora apenas publicado em 1881 em Lisboa, este texto, conforme o autor indica, foi escrito em 1866.
5. N' O Comércio do Porto de 7 de fevereiro daquele ano surge o anúncio da sua morte e legado, informando o nome da sua esposa, Elisa Pereira, e dando-o como proprietário de um café na rua da Nova Alfândega.
Publicado originalmente n´A Porta Nobre, revisto ampliado em 25 de Maio de 2018 (e agora de novo ampliado).
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