quarta-feira, 9 de abril de 2025

Um Scrooge portuense?

Esta é mais uma publicação light, por assim dizer, sobre um aspeto oitocentista; no caso nem sequer mesmo da cidade, mas tão somente de um homem. Talvez conhecido na sociedade portuense daquele momento no tempo, mas hoje totalmente incógnito. Foi apenas mais um dos milhões de seres humanos que nasceram, viveram e morreram nesta terra, dela desaparecendo como se o universo nunca os tivesse conhecido (no fundo, como nos tocará a todos).

Ao ler esta curiosidade nos jornais da época, desde logo fiquei com vontade de a partilhar aqui, quer pelo conteúdo, quer pela moral... Tratava-se de um homem decididamente avaro, que talvez um pouco à imagem do Ebenezer Scrooge de Dickens, percorreu as ruas do Porto na primeira metade do século XIX. E é também uma lição de vida: vivam-na! Ela acaba ou perde a sua qualidade de repente e sem nos pedir consentimento!


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No dia 27 de Setembro de 1845, noticiava assim a morte de um negociante em peles e pelicas, o jornal O Cosmopolita:

«MORTE DE PELIQUEIRO: Morava na rua do Souto Bento José de Oliveira, peliqueiro, de idade de 53 anos, tinha sido visto entrar em sua casa no princípio da noite de 4.ª feira, e como na 5.ª até depois do meio dia não abrisse nem porta nem janelas, excitou na vizinhança suspeitas de que ele tivesse falecido, por isso foi arrombada a porta na presença das autoridades, e o homem foi encontrado morto, sem sinais de violência. Fizeram-se os precisos autos, lacraram-se as portas, e deram-se as mais providências para a segurança da fortuna que lhe foi encontrada que dizem monta a 16:000$000. Consta que tem um irmão, que ainda há pouco estivera com ele nesta cidade.»


Segue-se os dados que colhi do O Períodico dos Pobres no Porto (PPP) desde o final de Setembro ao início de Outubro daquele ano(1). Agora uma coisa a confessar: estes dados são efetivamente retirados de notícias que foram surgindo neste periódico ao longo dos últimos dias de Setembro/primeiros de Outubro, o texto contudo é uma composição minha, muito aproveitando o original.


Assim o juiz da 1.ª vara, constando que o peliqueiro falecera, deslocou-se à sua habitação onde se encontravam já o juiz eleito e o regedor, «que tomou como autoridade superior a direção neste negócio, por ser tarde fez selar todas as salas, entregou a chave ao negociante Cidade(2) e pôs duas sentinelas municipais». No dia seguinte «continuaram nas diligências encontrando uma caixa numa loja, com 3 sacos de dinheiro, alguma peças de ouro cobertas de terra e alguns sacos de cobre. Tudo isto foi entregue à guarda do dito Cidade. O juiz ia continuar as buscas no dia seguinte, sendo que haveria mais dinheiro pois ainda não se dera uma busca exaustiva. Havia também bastante cabedal em sola e pelicas. Por ordem do juiz o cadáver foi sepultado no cemitério da Trindade, de cuja ordem era irmão.»

No último dia de Setembro, o PPP noticia o dinheiro que se tem vindo a achar na casa do peliqueiro. Entre ele estavam cordões de ouro dados como penhor de dinheiro emprestado.

a rua do Souto (em frente), no local onde entronca com a rua da Bainharia


E no dia seguinte, 1 de Outubro, diz-nos o PPP: «O quadro da Avareza: Nada mais imundo que a casa em que habitava na rua do Souto o peliqueiro Bento José de Oliveira! As casas não são más, mas horrorosamente imundas e desprezadas. Todas as salas e quartos estavam ornadas de imensas teias de aranha, terra e porcaria! Dormia sobre um velho enxergão podre! A roupa branca de uso estava toda suja e amontoada, pois só a dava a lavar de três em três meses! A sua família era apenas um gato e alguns pintassilgos. Uma velha vizinha lhe dava de comer por 8 vinténs! Ia todas as noites buscar água à fonte para casa! Conservados todos trastes dos seus antepassados, chinelos velhos, farrapos e cacos, tudo isto aos montes pelas casas! Tinha grande abundância de couros e pelicas, um belo oratório e alguns espelhos bons. Era soldado da bomba, e morreu de uma apoplexia sem ter quem lhe acudisse! Viveu como um porco e morreu como um cão!!»

No jornal de 2 de Outubro: «Ontem o juiz continuou as buscas na casa do peliquieiro em busca de dinheiro, mas nada aparecendo. Até que um cidadão disse que um criado lhe dissera que num dos quartos da casa havia um falso. Chamou-se o criado que confessou e foi-se logo ao quarto designado, e se deu com o falso coberto de terra e teias de aranha, aberto desceu-se ao fundo dele e se encontrou com uma caixa com o fundo podre, e nela alguns sacos com dinheiro. Contado o dinheiro o juiz mandou depositá-lo no Banco Comercial.»

Por fim, no número do PPP de 4 de Outubro: «Ontem de manhã continuo o juiz da 1.ª vara a busca em casa do peliqueiro. cavou-se uma loja interior e tirou-se o solo à exterior e nela se achou e nela se encontrou[?!] senão porcaria e abundância. Picaram-se várias paredes da escada e salas e não apareceu sinal algum de dinheiro. Havia na escada uma espécie de postigo com a porta fechada ontem já se havia examinado e picando-se o teto que fazia o chão de uma escada superior, umas tábuas cederam e despregando-se se encontrou um saco com dinheiro, mandado logo depositar no Banco Comercial pelo dito juiz.»


E aqui vemos mais uma notícia trivial do Porto Oitocentista, que quem sabe poderia inspirar um conto de um qualquer escritor, talvez com o subtítulo bem aplicado pelo jornalista: viveu como um porco e morreu como um cão».

Viriato


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1. As transcrições deste periódico carecem de ser corretamente datadas! Mas tal só o poderei fazer quando a Biblioteca Pública Municipal do Porto tiver a sua grandiosa reabertura, em dois mil e vinte e muitos.

2. Possivel referência a Manuel Francisco Duarte Cidade, mais conhecido por o comendador Cidade; também ele morador à rua do Souto. Segundo Alberto Pimentel in O Porto na Berlinda, «gostava de evidência, orgulhava-se da sua placa de comendador, lisonjeava-se muito de ser mandão na Santa Casa da Misericórdia e em várias Ordens Terceiras da cidade».

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