Uma viagem que hoje fiz à cidade de Guimarães deu-me a oportunidade de ver in loco um mesa de pedra, na verdade de nenhum efeito especial, mas que poderá ser uma relíquia do primeiro convento dominicano do Porto, extinto em 1832... A mesa, hoje na sacristia da igreja do antigo convento da OP vimaranense, apresento-a na imagem abaixo. E a seguir, o contexto para este meu desconfiar...
Um dos volumes do antigo cartório do primeiro convento dominicano portuense, que se encontram no Arquivo Nacional Torre do Tombo, é um pequeno Livro dos Conselhos iniciado em 1773 e terminado em 1831. Ele regista várias notas relevantes para a história do convento e mesmo da cidade, das quais destaco para aqui duas referentes à desafetação ao culto da "igreja velha". De facto, com a utilização, a partir de 1778, da igreja quase nova dos antigos e extintos terceiros, a comunidade deixara de utilizar a igreja original, medieval, cuja sacristia a ela anexa foi também fechada e inutilizada na sequência de um incêndio de contornos dúbios, ocorrido em 24 de abril daquele ano.
Alguns anos depois, em Janeiro de 1791, era proposto em conselho a venda do ouro de uns retábulos velhos que se encontravam no antigo templo, e que se ia consumindo com a passagem do tempo. Essa venda -- por 9 moedas -- foi aceite, ficando a madeira dos retábulos para a comunidade (qual o seu destino?). Ainda relacionada com a igreja, uma outra reunião do conselho ocorrida em 18 de maio de 1801, dá-nos a precisa data em que foi decidida a sua redução a armazém, informando o texto «...que não servindo para nada a igreja queimada, serviria de grande utilidade para o convento cobrindo-se de madeira e telha para servir de armazém, precedendo profanação e trasladação dos ossos para lugar sagrado e decente, e tendo já aprovado esta obra o Reverendíssimo Padre Provincial, frei Nuno de Silva Teles». É para duvidar que os ossos tenham sido trasladados, dada a grande quantidade de ossadas ali descobertas em 1865 e 1866, aquando da demolição. Mas a verdade é que a igreja foi de facto consignada para armazém. Chocante destino se proporcionado no pós revolução liberal; ainda mais chocante a meu ver, ter sido decisão da própria comunidade (hoje mesmo, ao entrar na igreja do convento irmão em Guimarães, de traça idêntica, não pude deixar de pensar no inglório fim que a igreja portuense teve).
Mas é na reunião da comunidade de 10 de setembro de 1805 que surge a informação mais relevante para esta publicação, onde em capítulo é proposto «que a sacristia antiga se achava fechada sem uso nem esperanças de que o pudesse ter. Tanto que [a] antiga igreja queimada por se não poder reedificar se achava profanada e reduzida a armazém, e que o mesmo se podia fazer da sacristia antiga, e que quando menos renderia para a fábrica do seu telhado … assentaram que se reduzisse [a] armazém». propôs também o prior que «se deviam tirar os caixões e a mesa de pedra que nela havia e que por não ter utilidade devia vender-se». Todos concordaram, uma vez que a sacristia atual tinha já uma mesa, e sendo esta sacristia pequena não era possível lá colocar a da velha.
Foi dito também que o convento de Guimarães tinha necessidade de uma mesa nova e que estavam dispostos a dar por ela 12.000 reis, ao que um dos conventuais contrapôs que por ela dava 19.000 mil reis. No entanto, a comunidade, ponderando que este não precisava dela na sua cela, nem nela a podia acomodar, concluíram que só a poderia querer para a retrovender ou servir a alguma corporação. Mas, como o concelho não chegou a um acordo, o prior levou a questão ao padre provincial que foi favorável à sua compra pelo convento de Guimarães, pois que mesmo pela diferença de valor, não deveria «deixar de ser contemplado um convento da ordem, que não é rico». Assim, em capítulo, «foi determinado e convencido por votos que se remetesse para Guimarães a referida pedra pela quantia de doze mil e outocentos reis, e que se profanasse a sacristia, e que se tirassem os caixões e o retábulo por modo que ficasse hábil para servir de armazém».
E foi assim, caro leitor, que a mesa de pedra viajou para o Minho. Será ela a que hoje podemos ver no pequeno museu que é a sacristia da igreja do antigo convento vimaranense?
Viriato