sábado, 14 de dezembro de 2024

As primeiras praças de touros do Porto

As notícias que se seguem são retiradas de O Comércio do Porto, neste caso do primeiro semestre de 1870, ano em que foram construídas as duas primeiras praças de touros permanentes da cidade do Porto: uma na Boavista e a outra no largo da Aguardente (hoje praça Marquês de Pombal). Abaixo vem a descrição daquela que se localizava na Aguardente, publicada a 31 de Março, aquando da ultimação dos trabalhos de construção:

«O espaço reservado às corridas mede 36m de largura; a distância da primeira à segunda trincheira é de 1,2m e o espaço desta ao tapamento; isto é, à largura das galerias é de 7,5m. Além de uma ordem de 52 camarotes, tem no correr destes uma galeria superior. Em frente da porta do cavaleiro fica o camarote da autoridade. Por baixo desta ficam a enfermaria, o escritório e outros compartimentos. O camarote real fica superior ao da autoridade. Por cima da porta do cavaleiro fica o camarote da empresa e por cima deste o coreto de música. Nos corredores, por baixo das galerias ficam as cavalariças e quartos para os moços e homens de forcado. A praça é toda construída de madeira de forma quase idêntica à da Boavista e tem lugar para 8.000 pessoas.»

Quando esta notícia foi publicada já a praça da Boavista tinha sido inaugurada, sendo portanto essa e não esta, a primeira a ser colocada à disposição dos aficionados. Neste seguimento, recuemos então alguns dias para ficarmos agora com alguns apontamentos noticiosos sobre a primeira delas, a da Boavista, inaugurada umas semanas antes da da Aguardente.

i1 o Real Coliseu Portuense, única praça construída de materiais não perecíveis, situava-se no miolo do quarteirão do Tabernáculo Baptista. Nesta imagem vê-se também, acima do recinto, parte da recolha da CCFP/STCP da Boavista (onde hoje se encontra a Casa da Música) e o cemitério de Agramonte, à esquerda - ver aqui.


A fonte é, como sempre, O Comércio do Porto, e nesta primeira notícia, de 22 de março, temos a chegada do gado que iria ser corrido:
«Anteontem à noute atravessou a cidade o gado que vem para ser corrido na [inauguração] da praça de touros da Boavista. A manada compunha-se ao todo de 22 cabeças, entrando neste número 4 chocas. É portanto de 18 o número de touros que tem de entrar nesta corrida(1). Informam-nos que são dos campos de Tentúgal, das manadas pertencentes aos lavradores os Srs. Bento Pena e Francisco Maria Correia Soares e Brito. Alguns amadores e outras pessoas foram esperar o gado. Os proprietários do circo tencionam dar a primeira corrida de touros na próxima 6a feira. Chegou também ao Porto o gosto por este bárbaro divertimento. E foi tão intenso este acesso de paixão tauromática, que, em vez de um circo, se levantaram logo dous, para adoçar os costumes do povo com estes espectáculos de sangue. Ò civilização, repugnante seria o teu destino, se fosses isto!».

O gado ficava guardado nos campos pertencentes ao lavradores da zona da Foz enquanto esperava para ser corrido. Tratam-se provavelmente de terrenos hoje ocupados pela Foz Nova, Nevogilde e poente da futura avenida da Boavista, que nessa altura não tinha a extensão que hoje lhe conhecemos. Como facto curioso (pelo menos para o autor destas linhas) aqui fica uma outra notícia, do mesmo jornal e datada de 24 de março, onde se dá a conhecer como foi atribuído o alvará da Praça de Touros da Boavista:

«Pelo Governo Civil foi passado o competente alvará de licença ao empresário da Praça de Touros na rua da Boavista para dar espectáculos na mencionada praça. O empresário obrigou-se a depositar no Governo Civil 30$000 réis para qualquer estabelecimento de beneficiência em seguida a cada corrida que ali tenha lugar, sendo com esta cláusula que lhe foi concedida a licença».

No ano seguinte nova praça surge na "rua da Boavista", local que era, à data, longe do centro da cidade. Para quem tiver paciência de a ler, vale a pena, pelo pitoresco do que descreve, ao qual ajuda também o tipo de escrita:

«Inaugurou-se na 6ª feira, com a primeira corrida, como estava anunciado, a praça de touros que se acaba de construir na rua da Boavista. O gado, segundo requerem as exigências tauromáticas, em geral foi mau, o que tornou a corrida destituída de interesse para os amadores. Apenas dous ou três dos touros foram sofríveis, havendo principalmente um, que era destemido e fino, dando que fazer aos capinhas. Pontes e Calabaça meteram bem alguns ferros, fazendo o segundo, além disso, alguns saltos à vara curta. Ambos foram muito aplaudidos, especialmente o último. O cavaleiro Batalha fez bem as cortesias e meteu alguns ferros curtos com muita destreza. Foi por isso muito vitoriado, recebendo um bouquet. Os outros capinhas pouco se distinguiram, porque o gado não se prestava a isso. Os homens do forcado portaram-se bem, e fizeram algumas boas pegas de cara e uma de cernelha. Os touros que se não prestaram às sortes foram recebidos com apupos e assobios.
Tocaram duas bandas, sendo uma a de caçadores 9 e outra particular. A praça achava-se inteiramente adornada de bandeiras e festões de flores, e exteriormente de grande número de mastros com bandeiras. Estas estendiam-se igualmente pela rua da Boavista até ao campo de Santo Ovídio [hoje praça da República] e até parte da rua de Cedofeita. Em volta havia um perfeito arraial: barracas de comida, pipas de vinho, etc. Custava a transitar com a grande multidão que ali afluía, apesar do vento que fazia.

A praça é vasta. Além de quarenta e tantos camarotes, tem uma galeria no sol, ao correr destes, e outros à sombra e ao sol por baixo dos camarotes e daquela outra galeria. Por cima da parte reservada ao cavaleiro acha-se o coreto para a música e defronte dele o camarote da autoridade, tendo pintadas por baixo as armas da cidade. Defronte do touril fica o camarote destinado aos Srs. Governador Civil e geral da Divisão, e por baixo os lugares reservados para a imprensa. Há também um camarote real, onde na 6ª feira, apareceu o retrato do Sr. D. Luís, depois de se tocar o hino de S. M. Ao lado do touril, que tem vários compartimentos para o gado, acha-se uma enfermaria com os medicamentos necessários para quando suceda algum desastre, e os outros compartimentos destinados a diversos usos. Além disto há botequins ou restaurantes nos corredores que ficam por baixo das galerias do sol e da sombra. Em diversos pontos vêm-se dísticos com a data da fundação e inauguração da praça, e o nome do fundador, que o foi também da da Foz(2), o Sr. Augusto César Calhamar."(3)

i2 A Praça de Touros da Boavista dos anos 70 do séc. XIX ficou registada na planta referente ao alinhamento da rua das Valas (hoje rua de N.ª Sr.ª de Fátima) e da rua do Cemitério de Agramonte (com a sua capela e portões provisórios que se podem ver à esquerda). Localizava-se quase ao centro da futura praça Mouzinho de Albuquerque (vulgo, rotunda da Boavista), ainda que algo deslocada em direção à atual avenida de França - ver aqui.


Como curiosidade, refira-se que surgiu no jornal do sábado logo a seguir à corrida, uma notícia de um rapaz que tinha sido atropelado por um qualquer trem que passava naquela zona. Aparentemente, no meio da confusão de pessoas e trens a passar de um lado para o outro, no meio do reboliço; a pessoa fugiu! Um "atropelamento e fuga" daquele já relativamente longínquo tempo, aliás tão frequentes como agora, ao menos a julgar por notícias com que me fui deparando nos jornais.

De volta ao tópico da publicação; embora nas corridas de touros atuais tal não se dê, pela leitura dos jornais da época se vê que era frequente outro tipo de atuações, possivelmente nos intervalos dos touros. O exemplo que recolhi e que apresento abaixo, deu-se numa das corridas inaugurais de 1870, da Praça de Touros da Boavista:

«Na corrida de 3 de Abril houve um número cómico. O quinto touro foi destinado para o intervalo cómico. Foi protagonista desta diversão cómica, que entreteve alegremente os espectadores, o França, criatura de uma elasticidade admirável, que, vestido burlescamente, umas vezes espera o touro, e quando este insiste, vira-lhe as costas, deita-se-lhe entre as armas e deixa-se bolear por ele, outras farpea-o, mas em vez de lhe fugir, deita-se no chão e o touro passa-lhe por cima. O vestuário e as cabriolas deste cómico personagem provocaram a hilaridade do público, que o recompensou do tempo de desenfado que lhe fizera passar, não só aplaudindo-o, mas lançando-lhe dinheiro em abundância. O último touro reservado aos curiosos foi o remate verdadeiramente cómico da corrida. Ao princípio nenhum curioso se animou a saltar à praça, porém depois em vez de um apareceram uns poucos. Foram numerosos os trambolhões e boléus e à força de insistir alguns ferros recebeu o touro. A maior parte deles foram-lhe metidos por um curioso, que entre outros se distingiu notavelmente, sendo vivamente aplaudido. Um acrescido número de espectadores entusiasmados saudaram-no agitando os lenços e os aplausos não tinham termo. A concorrência foi numerosíssima. A praça tem sido melhorada, tendo-se aberto mais entradas, para galerias e colocado portas em alguns camarotes, trabalhos que ainda continuam.»

Mas a apetência do portuense por este tipo de espetáculos nunca escorreu em abundância... e as praças de touros cedo começaram a ficar vazias de espetadores, após a passagem do entusiasmo da novidade. Várias outras existiram, a mais famosa, o Real Coliseu Portuense, a única construída com a ideia de permanecer no tempo(4), não durou uma década! Outras com ela coexistiram, nomeadamente na Serra do Pilar e na rua da Alegria. E o que poucos saberão, é que também na zona das Antas uma nova praça de touros esteve para surgir já no século XX, aquando da urbanização daquela área nos anos 40. Tal projeto, no entanto, não terá passado do papel.

i3 quem sabe que a praça Francisco Sá Carneiro (ex-praça Velasquez) é circular  porque se destinava a receber uma praça de Touros?


- Para saber mais, proponho a leitura do artigo Touradas no Porto - História de uma Evolução de Sérgio Caetano (2013);
- O pesquisador mais interessado poderá pedir aqui a reprodução de um protesto público de diversos organismos e particulares do Porto contra a autorização de corridas de touros de morte, datada de 1933.
Viriato


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1. Na verdade este número de touros repartiu-se por corridas que tiveram lugar nos dias subsequentes à inauguração da praça.
2. Em Cadouços.
3. De O Comércio do Porto de 27 de março de 1871.
4. Tivesse ela chegado aos nossos dias e seria agora mais um "Qualquer Coisa Arena - Real Coliseu Portuense"...

 > Publicação original d' A Porta Nobre, em 28 de Julho de 2020. <

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