quinta-feira, 1 de maio de 2025

Notícias do Porto Oitocentista

Quando há anos comecei a ler os jornais de oitocentos na Biblioteca Pública Municipal do Porto, procurava notícias específicas sobre determinados assuntos. Mas, no meio deles, acabei por descobrir uma sedutora forma de viajar no tempo, até a um Porto que eu não conhecia, nem mesmo lendo os volumes publicados sobre a época, dos mais doutos aos menos elaborados. É de facto o pulsar da cidade que ali temos, que nos é mostrada literalmente, todos os dias, com as suas lutas e com as suas alegrias, com as suas reivindicações, os seus dramas, os seus anseios... Um livro sobre o Porto de oitocentos através dos jornais, daria na verdade, uma obra em vários volumes, quase enciclopédica, quase irrealizável. Assim, virando páginas, como num dia descubro que para os lados do Codeçal vivia uma "bruxa" que enganava os papalvos (o articulista repudiava), num outro me deparo, no ano da morte de Garret, com uma curta notícia dizendo que o Visconde já se encontrava melhor de saúde; para logo na semana seguinte esse mesmo jornal "me informar" que o dito morreu (as famosas melhoras da morte?)! Como aqui leio um texto sobre as agressões que existiram a alguns deputados quando chegaram ao Porto, após terem fabricado a Constituição de 1838, logo a seguir leio uma notícia de caráter mais local, mas mais chocante, da tradição que existia das mulheres, as parteiras possivelmente, que na rua passavam frequentemente com os anjinhos, nome pelo qual eram conhecidos os bebés que pereciam muito cedo ou eram nado-mortos, em caixas abertas, à cabeça, caminho dos cemitérios... Tantos e tantos aspetos, a maior parte deles ausentes de um livro sobre o Porto romântico, onde o ambiente se quer sempre mais ou menos bonito, muito poético, muito literário; enfim, um mundo de elites e intelectuais, que se hoje não são a maioria, por aquele tempo estavam bem mais longe de o ser! Na vida real, não na romântica, a esmagadora maioria lutava para sobreviver, os seus interesses bem mais pendiam para garantir o pão do dia a dia.

Para ilustrar um pouco este meu pensar, deixo-vos com a transcrição de alguns textos, se bem que parcialmente escritos por minhas palavras. Como costumo referir, são, cada um deles, janelinhas abertas no tempo...


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Crónica Constitucional da Cidade do Porto, de 9 de janeiro de 1834

Cadeia da Relação

Por uma portaria do conselheiro Presidente do Tribunal da Relação do Porto, para «minorar os sofrimentos dos presos das cadeias» e copiando as disposições tomadas em Lisboa, como por exemplo: nas enxovias que ficarem inferiores à rua, se farão estrados altos de madeira, para que subam ao nível da mesma rua, e se evite a maior humidade, sendo que naquelas em que existisse falta de luz e ar se lhe fariam os «precisos condutores». Só irão para as enxovias os presos de crimes graves ou «atrozes», bem como os que isso preferirem por se encontrarem mais próximos da rua e assim ser mais fácil «obterem dali os socorros da caridade pública», contudo uns e outros deverão estar separados.

As salas e quartos superiores às enxovias se deveriam separar do seguinte modo: a parte mais saudável e apropriada do edifício deveria ficar designado para as enfermarias quer de homens quer de mulheres, de acordo com a opinião dos «facultativos». Dentro delas haverá uma divisão para as «moléstias contagiosas» e outra para as restantes; uma parte das salas será destinada a botica e «laboratório dos remédios»; na enfermaria das mulheres, que deverá estar do lado oposto à dos homens, deverão ser separadas as «honestas», das que o não são; deveriam também existir quartos para os detidos ou postos em custódia e para os «empregados da cadeia, que devem assistir continuamente».

As casas da prisão deveriam ser todas numeradas e o carcereiro apenas poderia enviar os presos para aquelas que lhe estavam designadas na ordem de prisão. Deveriam ser escolhidos «juízes das prisões» entre os presos mais bem «morigerados» e que deveriam ficar encarregados da polícia interna, em combinação com o carcereiro.

Os presos das enxovias sairão duas vezes e os das salas e quartos uma por semana ao eirado, ou lugar mais arejado para receberem ar livre e horas próprias e diferentes para homens ou mulheres.

O carcereiro ficava encarregado de propor um quadro de «limpeza geral» da cadeia para ser aprovado e afixado nas suas paredes. Também indicará quais os meios de «prover à limpeza das latrinas», assim como «ao vestuário, e camas dos presos, absolutamente indigentes, e caldo, ou sopa da caridade», informando qual a repartição pública, por quem e de que modo costumavam ser providos. Por isso o carcereiro ficava responsável pelo desentupimento e limpeza das latrinas e os pavimentos lavados, velando também pela limpeza e lavagem dos presos que fossem nisso negligentes. (em 30 de Dezembro de 1833, por Francisco de Serpa Saraiva)

a Cadeia da Relação, na primeira metade do século XX


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Duas outras notícias, do mesmo jornal, de 11 e 28 de fevereiro de 1834 respetivamente


1ª) As pessoas que se julgassem com direito a reclamar as «barcas rebelas» e madeiras de castanho e flandres, que haviam servido na Ponte das Barcas, não sendo «comprometidos» nem rebeldes e justificando que sua sua propriedade e nada receberam por elas, tinham os próximos 15 dias para as reclamar, findo o qual seriam arrematadas, entrando o produto no cofre da ponte.


2ª) O juíz Pedâneo da freguesia de Santo. Ildefonso faz saber aos habitantes daquela freguesia que sendo, de utilidade publica, que a água dos tanques, se conservasse limpa e pura, como se achava determinado… e constatando-se por diferentes vias que muitas pessoas tinham o mau, prejudicial, e escândaloso costume de lavarem nos tanques públicos roupas e imundiceis; ficavam os comissários e cabos de Polícia da freguesia encarregados de olharem pela referida limpeza, e de prenderem, e trazerem à presença do dito juiz, toda e qualquer pessoa que, de qualquer maneira que fosse, tornasse suja e imunda a água dos tanques.


Uma outra, todas do mesmo ano e jornal, esta retirada do exemplar do dia 21 de agosto, que nos refere um navio que fazia a rota Lisboa - Porto, carreira onde viriamos a ter, poucos anos depois, o famoso vapor Porto a navegar:


Tratava-se de um aviso ao público «que o magnífico navio movido por vapor Guilherme IV, continuará a fazer viagens regulares» entre o Porto e Lisboa. Os preços eram:

Na câmara da ré: 16$000 rs – na da proa 10$600 rs., incluindo a mesa «que deverá ser escolhida» - no convés 4$800 rs., sem comida. As crianças menores de 10 anos pagariam metade do bilhete. As criadas das famílias que fossem na câmara da ré, teriam acesso à mesma e pagariam 10$600 rs. mas comendo com as restantes criadas «onde se lhes destinar». As cavalgaduras pertencentes a passageiros eram recebidos, a risco do dono, pagando 6$000 rs de passagem e os cães 480 rs, mas apenas com direito a água. Não eram recebidas mercadorias, apenas passageiros e suas bagagens, que excedendo 4 arrobas pagaria 40 rs. por cada arrátel «a maior» ou excedendo a medida de 3 pés cúbicos, 200 rs. por cada pé de excesso.

O capitão só recebia a bordo pessoas indicadas pelo agente. Todo o necessário para acomodar os passageiros se acharia a bordo, inclusive uma dispenseira inglesa, na câmara das senhoras «que prestará toda a atenção às mesmas». «O capitão receberá toda a quantia de dinheiro em qualquer espécie, de prata, ouro, ou jóias, em embrulhos fechados e selados com lacre, pagando os donos 174 por cento de frete». Mais informações davam-se no agente, Archer & Miller, ao n.º 10 da rua dos Ingleses.


Deixo-vos com uma última, talvez chocante para alguns, sobre a dívida que o Estado tinha para com a cidade, no rescaldo do cerco e da Guerra que entretanto terminara, uma vez que a notícia, é de 4 de dezembro. Esta questão será arrastada por alguns anos, procurando a câmara ser ressarcida do que despendera, quer em moeda quer materialmente com a dádiva de algum edifício, etc..

Assim, a câmara enviara à rainha um conta corrente e documentos justificativos da mesma pela qual mostrava ser credora de 11.048$300 rs., «quantia esta procedida de empréstimos gratuitos com que concorreu em dinheiro, e em géneros, para as urgências do Estado na época do Cerco». No conta corrente vem, além do empréstimo de dinheiro proveniente da Câmara diretamente, da extinta Companhia dos Vinhos, «do rendeiro do sal, sanjoaneiro e pescado seco», e também 1100 quintais de bacalhau entregues no Depósito do Departamento de Víveres em 5 de julho. Embora em setembro de 1833 já a câmara tivesse reclamado a devolução de parte do valor emprestado e como a mesma não fora possível satisfazer dadas as necessidades públicas da altura, vinha ela agora solicitar a reposição daquele valor pois que via progressivamente as suas rendas a diminuir e as despesas a aumentar. De facto, diz, só para os expostos eram necessários cerca de cinquenta contos de réis, valor simplesmente incomportável pelo que a despesa com aquela instituição aumentava desmesuradamente de mês a mês; e mais agora que necessitava de fazer despesa extraordinária com aquele estabelecimento quando nem para a despesa ordinária havia dinheiro!

Esta representação à rainha datava de 25 de outubro de 1834, e a notícia publica igualmente a portaria do Prefeito do Douro, de 27 de novembro, que informava que a requisição «foi mandada, por cópia ao Tribunal do Tesouro para ali se lhe dar a consideração que merecer».


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Estas e outras notícias mais comezinhas, espero vir a trazer-vos aqui, de quando em vez, em próximas oportunidades.

Viriato


Originalmente publicada n' A Porta Nobre em 2 de Abril de 2021

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