terça-feira, 4 de julho de 2023

Simplesmente, Camilo

Confesso, caro leitor, estou como que viciado nos livros de Camilo Castelo Branco! Descobri este pequeno prazer já tarde, aos 44 anos, que é como quem diz no ano passado... Não passarei a ser adventista do Anastácio das Lombrigas, nem mesmo pretendo ascender à cátedra de camilionista. Nada disso. A minha razão começou de forma bem prosaica, com o interesse de dele sugar todo o que fosse Porto. Todos aqueles pormenores que me pudessem ajudar a imaginar uma cidade que já não volta, a dos meados do século XIX: último reduto do mundo antigo. As Congostas, a Cruz das Regateiras, a Rua do Bispo, e tantos, tantos outros pormenores da 'segunda capital do reino' presentes nos volumes do escritor ali estão, ainda que os seus romances não se esgotem no Porto e seus arredores (acabo de ler, por exemplo, o Romance de Um Homem Rico, em grande parte passado entre Lisboa e Santarém).

É Camilo que me diz que a Cruz das Regateiras ficava, por meados do século, a uma légua da cidade. Aí coloca o autor a residência das amantes de protagonistas dos romances O Sangue e O Esqueleto (teria paralelo na realidade?). Nas Congostas, o casal protagonista evade-se pelas traseiras das casas para a cerca de S. Domingos (o jardim do Infante ainda não existia), deixando para trás o seu filho que apenas os reconhecerá perto da morte. Já na Vitória e em lágrimas, deitam o último relance à casa onde ele será criado, antes de fugirem para o Minho... São, enfim, várias as passagens com as quais me consigo relacionar, que poderia aqui referir e que ficarão para outras publicações.

É claro; reconheço o estilo de linguagem romântico e irreal que ocorre por vezes dos diálogos. Estou convencido que nem mesmo naquela época as pessoas comunicavam daquela forma; e também não deixei de sentir algum embaraço (muito leve...) quando, pelas primeiras vezes, vi Camilo dirigir-se exclusivamente às suas leitoras... Mas nada disso importa e nada disso retira valor à obra deste autor, com lugar cativo no panteão literário da língua portuguesa.

Finalizo com uma pequena passagem do folhetim em que Camilo critica a obra de António Coelho Lousada, Rua Escura, onde o autor se refere a elementos verídicos da vida citadina de oitocentos. Este excerto que apresento não é a crítica propriamente dita, antes pretende retratar uma suposta verdade, segundo Camilo...


Reza assim: «Antes, porem, de começar é preciso saber-se que o author da Rua Escura, amante de tradicções em que entrem feitiços e quejandas crendices populares, romantisou uma velha tradicção, confiada de geração em geração, como um deposito sagrado, a todas as Canidias, maiores de oitenta annos, da Rua do Souto, Pelames, rua Escura, e becos adjacentes.

A tradicção é que, ali por algures da velha cidade, morou um estalajadeiro, que se entretinha, de vez em quando, em reduzir os seus hospedes á perfeição culinaria da almondega. N'este deploravel conceito entrou a reputação posthuma de muitos pasteleiros de diversas partes.

Um estalajadeiro antropophago é tradicção commum de muitos paizes. Isto prova talvez que, ha quatro ou sinco seculos, era trivial comer-se por essas estalagens meia-posta de perna humana como hoje se comem moscas na Estrela do Norte, no Porto, e carochas nos Dous Amigos em Lisboa.

E, quem sabe se os pobres locandeiros foram calumniados pela tradicção, do mesmo modo que a historia, e mais é a historia, tem calumniado muitos varões honrados!? Eu não venho aqui defender a memoria do snr. Bartholomeu de Basto: não posso, porém, deixar de protestar contra uma outra tradicção que, d'aqui a tres seculos, hade correr a respeito dos estalajadeiros contemporaneos. E é que rara taverna ha ahi nas provincias do norte, onde não tenha sido estrangulado um brazileiro que trazia nos alforges sempre de duzentos mil cruzados para cima. Se me dissessem que uma legião de insectos, desde a pulga, que mereceu um elogio a Boileau (Deos lhe perdôe!) até a centopeia, sugára a alma e o corpo d'um brazileiro, isso sim, tinha seu seu fundamento: eu, que não sou brazileiros, por meus peccados, tenho-me visto a braços com a morte nas estalagens, e pezo-me a cêra todas as vezes que saio são e salvo: atribuirem, porém, aos tascantes a carnificina por ambição de duzentos mil cruzados, é, não só calumnia, mas até ignorancia da mais trivialissima regra,  que é a de 3. Um brazileiro, se traz liquidos para Portugal os seus haveres, não chega com elles á estalagem. O governo, que toma a juro em nome da nação, poupa-o ao risco da jornada, e previne moralmente, sem o pensar, as tentações dos estalajadeiros.

Dito isto, que me é allivio de consciencia, pelo muito que tomo a peito appresentar no seculo XXV esta minha geração, pura e candida como ella é, vamos ha historia.»


Foi a leitura deste pequeno excerto prazerosa? Camilo nunca desaponta... Resta-me alertar para o facto de ter mantido a ortografia original do documento que consultei: a primeira página do efémero jornal O Clamor Publico, de 23 de outubro de 1856.

Viriato

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