Se o título desta publicação dá ao leitor mais atento uma sensação de déjà vu, não se espante. Ela é uma das poucas que me foi possível salvar da hecatombe que representou a perda de um blog que mantive perto de doze anos. O motivo de a recolocar agora, prende-se com a construção da nova estação da Metro do Porto na Praça da Liberdade, que por estes dias decorre, e que forçosamente derrubou os últimos restos da famosa Fonte da Natividade e outras anciãs pedras por ali encontradas, de aquedutos, calçadas, etc(1). Aguardemos com expectativa para que a empresa possua a sensibilidade de guardar as principais peças que ali surgiram da melhor forma possível, por exemplo expostas na nova estação, à semelhança do que já acontece no Campo 24 de Agosto, e não num qualquer armazém, como tantas outras - menos marcantes, certo será - se deverão encontrar.
Transposta esta pertinente introdução, vamos à publicação! Na verdade, ela não vos vem trazer descrições ou imagens da referida fonte (deixarei esse assunto para a publicação seguinte). Não; hoje tão somente vos trago uma notícia que jazia enclausurada num jornal oitocentista e que inderetamente nos fala daquele local e seus aquedutos. Para que o leitor mais sensível às coisas da arqueologia possa verificar que, por vezes, simples notícias sobre uns larápios em 1836, trazem à luz pequenos pormenores sobre o passado da cidade...
«O BUEIRO DA NATIVIDADE
Todo o Porto sabe que há um aqueduto geral chamado Rio da Vila, que vai desaguar ao Douro, e corre a descoberto desde a Viela do Largo do Souto, até à Biquinha, pelas traseiras da Rua das Flores. Este aqueduto recebe em si as vertentes do regato de Liceiras, e os enxurros das ruas, que entram por bueiros abertos em várias partes, como no fim da Rua de Santo António, Largo da Praça de D. Pedro, no sítio onde foi a Natividade, no lado dos Congregados, Caldeireiros, etc.
Estes bueiros tinham todos na sua primitiva; isto é, anos há, travessões de ferro, que apenas deixavam passar as águas; e é tanto verdade, que às vezes, a terra e as areias arrastadas na corrente, os tapavam, e faziam inundações nas vizinhanças a ponto de ser necessário grande esforço e tempo para os desentulhar e deixar passar grande quantidade de povo, que era obrigado a interromper o seu trânsito em ocasiões de grandes bátegas de chuva. Alguns destes varões de ferro hão desaparecido de vez em quando, e ninguém tem prestado atenção a esta falta.
Ainda mais: o bueiro do sítio onde foi a Natividade, não só deixou de ter os ferros há muito tempo, mas está de tal maneira esburacado, que parece mais uma entrada de funda cova, do que bueiro para a água. Pode entrar uma pessoa sem grande dificuldade. Esta abertura, assim mais praticável, data do tempo da demolição da Natividade; época em que o tal bueiro esteve metido entre as pedras e entulho que na demolição se iam acumulando em redor, enquanto se não alimpou o sítio inteiramente; e então o buraco ficou como estava, e ninguém lhe prestou atenção, porque não houve motivo para isso. Um caso imprevisto veio porém dar celebridade ao bueiro do Rio da Vila no sítio da Natividade!
Domingo passado, em uma casa da Praça de D. Pedro, das que tem traseiras para a cerca do extinto Convento dos Lóios(2), seriam 2 para 3 horas da noite, sentiu-se rumor em uma pequena janela, ou postigo, que ao nível do teto da loja dá luz à parte detrás dela. Aplicou-se atenção; o rumor cessou; e abrindo-se pela manhã a portada que fecha a tal janela, viu-se que a vidraça interior estava fechada com a cravelha costumada, e nenhuma aparência fazia desconfiança.
Porém o tal rumor, pelo que agora se descobriu, foi originado por se tirar o betume de um vidro, e tentear-se um buraco que apenas serve para mostrar que é dia, o qual está aberto na porta ao direito do tal vidro que se tirou. Tornaram a por o vidro, com novo betume, depois de verem a grossura da janela para os seus planos, e como os vidros são abetumados pela parte de fora, ninguém tal viu, até ontem, que as circunstâncias fizeram inspecionar a janela.
Ontem às 3 horas da noite, tornou-se a sentir o mesmo rumor, no mesmo sítio, e ouviu-se tinir vidro quebrado. Então gente da casa se levantou e pode conhecer que com um trado se faziam furos na janela.
Como a janela é forrada com chapas de ferro de arcos de pipas, deu lugar a operação dos ladrões, a tomarem-se medidas pelo lado da praça, pedindo auxílio à Guarda do Trem dos Congregados(3), a quem se ministrou um lampião; (tudo isto da janela, para que não se abrisse a porta da rua ao direito do sítio da operação, e se espantasse a caça) e se lhe ensinou que fosse a escolta pedir entrada ao Quartel dos Lóios(4), para entrar na cerca, e pilhar os ladrões. Assim se fez. À baioneta calada caiu a escolta com impeto sobre o sítio do assalto, onde estavam 4 homens. Dois deles tiveram a coragem de se lançar abaixo de uma alta parede, e os outros dois que estavam em cima da escada para chegar à janela, foram presos. Perguntados por onde entraram para esta cerca murada de todos os lados, apontaram para um bueiro, que está dentro da mesma, e que serve de escoadouro de águas no seu plano inclinado, tendo entrado eles dois pelo bueiro da Natividade, dizendo que não sabiam por onde tinham entrado os outros dois, os quais já se achavam no sítio. E parece que talvez eles entrassem por onde saltaram!
A escolta deixando seguros os presos teve a coragem de descer pelo bueiro e foi seguindo uma das seis ramificações em que diz que a certa distância se divide o aqueduto, e foi dar com uma casa subterrânea, com porta e fechadura que estava aberta! Dentro desta casa havia uma cama de palha, parecendo à escolta que um vulto fugia para um dos lados. A quentura da palha indicava que pouco antes ali estaria alguém deitado. Nesta casa estavam duas cadeira, alguns pipinhos de vinho, bastantes cebolas, uns paus como tocheiras de por à janela com tocos, em ocasiões de luminárias, e alguns estofos velhos, que dizem parecer ser de igreja... Esta casinhola tem comunicação para a casa de D. António de Amorim na Praça de D. Pedro, por cuja porta da rua veio a sair a escolta.
Tal é o facto, segundo por diversas vias nos informamos.
No sitio do roubo, existem dois vidros quebrados na vidraça, e três furos na portada, um que varou, e dois que vieram de encontro às chapas dos arcos que a forram.
Os presos atravessaram a cidade no meio de imensa multidão, quando foram à presença do Ministro de Polícia Correcional, e depois para a cadeia.
Todo o dia, grande ajuntamento concorria a ver o célebre bueiro, e não há mais em que falar nesta cidade.
Por esta razão, e para fazer rir os nossos leitores como se estivéssemos a ler a história do Gil Braz de Santilhana, resolvemo-nos a relatar o facto, para ver se alguém cuida em providenciar como convêm a semelhante respeito!»
in O Artilheiro, de 24 de março de 1836
Ora aqui está uma história rocambolesca, mas certamente verídica, que nos faz pensar na encruzilhada de canalizações ligadas ao Rio da Vila, às casas religiosas e mesmo à cidade, que aquela área representava. O avançar dos tempos e as necessidades do mundo moderno tudo mudaram, fazendo-as desaparecer da memória material da cidade. Guardemos pelo menos tudo muito bem documentado e se possível preservado. Vivemos num século em que temos obrigação de saber dar o maior valor à preservação material da memória humana.
Viriato
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1~ Uma obra como a do metro, que forçosamente necessita de atuar no subsolo, seca para a arqueologia os locais onde intervém (isto escrevo sem qualquer tipo de censura; a uma relação causa/efeito). É preciso que a Metro do Porto se consciencialize que locais como S. Bento, Praça da Liberdade, Loios, S. Domingos; são importantíssimos para a história da cidade, e que por isso os resultados das escavações merecem ser bem divulgados de forma condigna. O tempo do pdf escondido no site oficial ou da fotografia solitária num livro, tem de estar ultrapassado...
2~ Isto é, o impropriamente chamado Palácio das Cardosas, que até à reconstrução materializada no Hotel Intercontinental, eram na verdade vários prédios independentes uniformizados por uma fachada.
3~ Desde praticamente a entrada das forças liberais na cidade, a casa dos Congregados era usada pelo exército como aprovisionamento.
4~ O cenóbio ainda não fora totalmente demolido.
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