A investigação em arquivos antigos, nacionais ou privados de determinadas instituições, é muitas vezes reveladora de fontes pouco ou nada estudadas, que vêm contribuir para o conhecimento geral (frase clichet, bem sei, mas verdadeira). Neles esperam ainda certamente muitos documentos que serão um dia trazidos à luz do dia por alguém que os identifique e sobretudo valorize. Felizmente, com a crescente digitalização destes repositórios, vai sendo facilitado o acesso quer aos investigadores profissionais quer àquele punhado de apaixonados pela história que, como eu, também possuem interesse na investigação em determinadas áreas.
Um documento de importância para a história do Porto e que tem sido - aparentemente - pouco utilizado em investigação, é um caderno de plantas relativos a obras públicas feitas na cidade em 1788, com trabalhos da responsabilidade de José de Champalimaud de Nussane. Hoje à guarda da Torre do Tombo (TT), emparelha com um outro guardado no Arquivo Municipal do Porto (AMP), executado no ano seguinte; este já mais divulgado.
Esta publicação pretende estudar alguns aspetos de uma das planta presentes no volume da TT, nomeadamente uma folha que se divide em duas seções, com duas plantas distintas (ver acima). A primeira, metade superior da folha, é titulada Planta que mostra ... a calçada que se fez na rua Chão (sic), até à Porta de Cima de Vila, com os seus passeios de um e outro lado.... Na metade inferior, uma outra titulada Planta que mostra ... a calçada que se fez à saída da Porta do Sol e consecutivamente na rua de Entreparedes com seus passeios .... Levando em conta que as plantas deste período não se poderão comparar em rigor de cálculo e representação com as atuais, ou mesmo as que se realizaram a partir de meados do século XIX, possuem mesmo assim grande valor histórico.
A primeira - ver abaixo - representa uma área da cidade que se encontra bastante modificada em relação à atualidade, mas que apresenta elementos suficientemente explícitos para a sabermos interpretar. Trata-se do percurso compreendido entre a porta da Vandoma e a porta de Cimo de Vila; precisamente a principal porta do "muro velho" da cidade, com uma das mais importantes portas da "muralha fernandina".
Da esquerda para a direita assinalo: 1) porta da Vandoma: principal porta da cidade até ao advento da muralha do século XIV. As suas origens remontarão ao período condal asturoleonês e foi demolida em 1855 - 2) o largo da Cividade: um espaço plano no alto do monte do mesmo nome, que em boa parte desapareceu para dar lugar à avenida D. Afonso Henriques, na década de cinquenta do século XX - 3) Espaço da viela da Cadeia, ainda hoje existente, mas que na planta não surge representada - 4) é a rua do Loureiro - 5) indica o espaço hoje ocupado por uma fonte oitocentista - 6) Este edifício, que surge representado em separado ao contrário do que acontece a quase todos os demais, é a igreja do Terço - 7) é talvez o mais notável desta série: trata-se da porta de Cimo de Vila. Com as setas assinalo, da esquerda para a direita, a antiga viela que passava atrás da muralha; a porta em si, ou melhor, a sua torre onde também se encontram representadas as duas saídas possíveis para o terreiro em frente e à frente dela, a primitiva capela da Senhora da Batalha que entestava com a porta e possuía uma abóbada de pedra «de curioso artesonado, y toda de azulejo, con florones de oro, y adrio de colunas, cuyo techo está pintado de hieroglificos y misterios de la virgen Madre de Dios...». A capela foi demolida em c. 1794, mas da viela localizada entre a cerca e as edificações, ficou-nos um vestígio à entrada da rua (ver foto abaixo).
A segunda planta, abaixo, mostra-nos algo ainda mais interessante: 1) é o pequeno largo junto à porta do Sol, com a dita porta também visível; 2) bifurcação da rua do Sol e da rua de S. Luís; 3) rua de Entreparedes, com o edifício do hotel NH Collection Porto (6); 5) é a capela privada que foi demolida já nos meados do século XX, em local onde agora se encontra o terminal rodoviário da Batalha, na frente para a rua Augusto Rosa.
E neste momento poderá o leitor pensar que me esqueci de um número - o 4 - mas não. Este merece destaque: tratam-se de três cubelos da cerca gótica, que se encontravam na continuação da muralha a partir da porta do Sol, no lado oposto à primeira torre que hoje subsiste encostada ao edifício. Estes foram demolidos para a construção do edifício construído para ser Casa-Pia. Do cubelo mais à direita a muralha seguia em direção à porta de Cimo de Vila, que podemos ver na primeira planta apresentada. Não conheço menção a estas estruturas nos vários artigos e trabalhos (académicos ou não), que versam a muralha; pelo que serão mais um acrescento ao nosso conhecimento desta estrutura defensiva, que ainda hoje guarda alguns dos seus segredos nos arquivos e no subsolo!
A planta abaixo como que continua a anterior, sendo mais conhecida por fazer parte do caderno à guarda do AMP, mencionado acima.
As duas ruas que correm na horizontal são a de 31 de Janeiro (sup.) e a da Madeira (inf.). A legenda é como segue: 1) capela da Batalha; 2) rua de Entreparedes; 3) igreja e rua de Santo Ildefonso; 4) rua da Madeira; 4a) cubelo da imagem abaixo; 5) mosteiro de S. Bento de Avé-Maria, hoje como sabemos substituído pela estação de S. Bento.
Esta imagem é uma parte de uma foto antiga que nos mostra o largo da Porta de Carros na década de setenta do século XIX. A letra A indica a rua 31 de Janeiro, e a B a rua da Madeira. Com o 4a temos assinalado o cubelo e muralha demolidos no princípio do século XX, para dar lugar à estação de caminho de ferro (muitos dos seus silhares estão hoje englobados na sapata daquela rua).
Mas antes de encerrar esta pequena publicação de curiosidades, surge agora a oportunidade de abordar uma outra imagem intrigante, que parece talvez indiciar mais do que realmente é, contudo... Também ela parte de uma fotografia de vistas mais largas, apresenta alguns pormenores interessantes e desaparecidos; assim, podemos ali vislumbrar uma das casas que existiam no lado norte da rua do Infante, antes da construção do jardim com o mesmo nome (a), bem como a pedraria da recém derrubada casa quinhentista (cuja janela se vê ainda hoje na quinta da Aveleda); e, adjacente a esta e ainda em construção, o edifício agora ocupado pelo AHMP.
Todos estes pormenores à parte, peço ao leitor para colocar o seu foco no pequeno arco assinalado com ??. Demasiado pequeno para ser uma porta da antiga muralha gótica, onde se encontra inserido, estaremos ainda assim na presença de um antigo postigo?
O desenho de Marques de Aguilar, do qual acima coloco o pormenor relativo à área em estudo, não mostra qualquer arco no local do dito oitocentista nem, aparentemente, no cotovelo da muralha, onde é mais provável ter existido o postigo. Parece no entanto mostrar um arco - meio escondido por um navio - logo após nova viragem do pano de muralha na direção do troço que ainda lá se encontra... Mas esta gravura, embora de excelente qualidade (muito superior à mais conhecida e divulgada de Teodoro de Sousa Maldonado), sendo uma interpretação pessoal fica sempre sujeita ao nível de pormenor que o seu autor estiver disposto a aplicar. Aliás, salvo ilusão de ótica que o desenhador colocou no papel, a gravura parece também indiciar a existência de uma outra casa agora inexistente por cima do arco que estudamos e que taparia ao menos parte da frontaria da capela, a quem estivesse na margem gaiense do Douro (o que é possível quando enquadrado na intenção de alargar a área do cais). Assim, o arco representado poderia igualmente, pela ilusão de ótica, encontrar-se virado ao nascente... Tudo conjunturas, ressalvo.
Não nos é possível aferir do tipo de arco que ali vemos, se é realmente de ponto agudo, e por isso medievo; ou de volta perfeita. Contudo, a fotografia que acima coloco, sensivelmente da mesma época, mostra-nos um arco bastante semelhante no aspeto, pese embora a ambiguidade de pormenor que à distância as técnicas fotográficas da época apresentam, invalide o afirmá-los iguais (trata-se do postigo dos Banhos, destruído em 1871).
Nos anos oitenta do século XIX, aquela lingueta e todo o cais foram alteados, tendo o proprietário da casa por cima daquela área solicitado à câmara a permissão para rasgar uma moderna porta, substituindo a que ali se encontrava. É assim que o arco, em vez de entaipado, viu-se apenas subtraído do seu fecho. As restantes aduelas, no entanto lá ficaram, como se pode comprovar das imagem acima, por mim colhida em 2016.
Está ainda por fazer uma boa tese de mestrado sobre as cercas portuenses; nomeadamente a do período gótico que englobava algumas notáveis portas e grande quantidade de postigos, que foram tomando vários nomes ao longo do tempo; assim como aferir do real número de torres e cubelos que possuía e a sua implementação. Certamente que um estudo comparativo com os restos de tantas outras cercas da mesma época ainda existentes nas cidades e vilas espalhadas por este país, bem como um levantamento dos pequenos pedaços de escrita nas centenas de documentos que referem a muralha; poderiam quando comparados dar-nos uma muito melhor ideia de como se implementava esta estrutura defensiva, e como se articulava com as existências suas contemporâneas. Fica a dica!
Viriato
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FONTES: Mapa das Principais Obras Públicas que se fizeram na Cidade do Porto, caderno de plantas à guarda da Torre do Tombo : Notas da Arqueologia Portuense (1958), de A. de Magalhães Basto : [Porto: Zona do Governo Civil do Porto], do AMP
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