A crescente penetração de influência real na cidade do Porto, burgo onde o bispo detinha o poder temporal para além do espiritual, é um facto comprovado por diversa documentação que chegou aos nossos dias. No reinado de D. Afonso IV (1325-1357) essa crispação está ao rubro com a construção da alfândega real, no local onde hoje podemos encontrar a Casa do Infante e consultar o precioso acervo da câmara municipal. No entanto, nas primeiras décadas do século XIV o local era ainda pouco povoado, com referências a hortas nas imediações, bem junto à zona portuária (lembremos por exemplo que a magnífica rua Nova é uma criação do final do século XV).
Longe de querer historiar, mesmo que resumidamente, o conflito originado pela pretensão da Coroa em cobrar direitos alfandegários nas barbas do bispo, esta publicação serve única e exclusivamente para apresentar um excerto de um documento episcopal lido aos representantes do rei, junto da obra do edifício da alfândega; com o objetivo de ilustrar a aparente rusticidade que toda aquela área apresentava à época. Com efeito, em 10 de outubro de 1325, o tabelião Gonçalo Joanes, o deão Pedro Peres, e os cónegos Martim Velasques, Domingos Martins e Estevão Domingues, deslocaram-se às hortas da Fonte Taurina, aí derramando o seu latim:
«In nomine domini Amen . Noverint universi quod in presentia mei Gunsalui Johannis publici Tabellionis domini mei episcopi in civitate Portugalensi ac testium infra scriptorum existentibus dicto domino episcopo . et domino Petro Petri decano . Martino Valasci . Dominico Martini . Stephano Dominici canonici predicte civitatis in ortis seu ortaliciis qui vel que dominici dicti Coelho fuerunt et retro domos platee fontis de Ourina existunt . Prelibatus dominus episcopus et canonici quamdam cedulam in papiro scriptam mihi dicto tabelionii tradi mandarunt ut eam coram Johanne Johannis . et Alfonsso Johannis . et fratre Alfonsso almoxarifo . eo scribis seu notariis domini nostri regis in predicta civitate legerem et publicarem (...) cuius cedule de verbo ad verbum talis est § Nos Johannes Dei et sancte romane ecclesie gratia Portugalensis episcopus . Et domnus Petrus Petri decanus . ac Martinus Valasci . Domincus Martini . Stephanus Dominici . Dominicus Dominici Portugalensis Ecclesie Canonici et nomine nostro et capituli ecclesie Portugalensis . dicius quod civitas Portugalensis et totius termini sui dominium spirituali et tenporali fuit et est ecclesie Portugalensis et ad ipsam pertinet et in possessone eiusdem domini stetit et stat ab antiquo . Et quare modo noviter Johannes Johannis . Regis almoxarifus in dictis Ortis sive ortaliciis et in platea qui vel que steterunt et existunt in termino . dicte civitatis et dominii predicte ecclesie . Incipit et fieri facit parietas et edificia pro domibus edificandis in magnum preiudicium anime sue et in dispendium et gravamen nostri supradictorum episcopi et capituli et prelibate ecclesie nostre . Nos cum Dei auxilio et gratia seu mercede regis volentes ius nostrum et eiusdem ecclesie defendere ut tenemur . Facimus nuntiationem et protestationem et contraditionem contra dictum opus quod nequaquam fiat et id quod iam factum est quod aboleatur seu amoveatur . et statim dictus decanus de mandato predicatorum domini episcopi et canonicorum eiusdem et pro se et eorum nomine et sue ecclesie mandantium ter . tres lapides in dictum opus quod fieri incipiebat proiecit seu emisit qualibet vice pro se et de mandato predictorum episcopi et canonicorum et sue ecclesie dicendo quod denuntiabat novum opus in dicto opere et eandem denuntiationem fecit super predicto . Almoxarifo qui presens erat . et super Dominico Michaelis et Petro Menendi habitatore in fine ville . et Johanne Dominici de Paranhas [sic] operariis in dicto opere fodere et operari minime cesantibus (...)»
O conflito entre a Coroa e a Mitra/Cabido são sobejamente conhecidos e historiados, embora este documento não seja talvez conhecido pelo público em geral. Resta dizer que o conflito não terminou ali; pelo contrário, só agora iniciava!
No entanto, e como referido no início, o mote para esta publicação é sobretudo apresentar um local onde se deu um determinado episódio da história da cidade, tal como ele se apresentava à época: no caso, a Fonte Taurina. Mas, e certamente o leitor mais atento já nisso reparou, outros dois são mencionados, onde habitavam operários da obra da alfândega. Um deles facilmente identificamos com Paranhos, que por aquela altura era uma pequena aldeia longe da cidade. No entanto, o outro - fine ville - isto é, Fim de Vila, remete o pensamento para o atual Cimo de Vila, embora talvez não exista qualquer relação entre os dois. Onde ficaria? Em Miragaia, no fim do couto do bispo delimitado pelo rio Frio? Num outro extremo desse mesmo couto? Ou em sítio mais próximo ao núcleo original da cidade? Esta designação existe ainda hoje, na célebre localidade de Faria (Barcelos), ou em Tropeço (Arouca); mas é pouco credível que seja uma destas a mencionada localidade... Haverá algum leitor que possa trazer alguma luz a este mistério?
Viriato
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FONTE: Corpus codicum latinorum... (vol. 2), via A Alfândega do Porto - e o Despacho Aduaneiro, catálogo da exposição organizada pelo AHMP em 1990.
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