segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Quando o Porto quis assar um fidalgo!

Esta é mais uma publicação recuperada do blog que perdi e que era já visto por bastantes pessoas, com alguns comentários enaltecendo a sua qualidade. Se arrependimento matasse...(1)


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É um lugar-comum dizer-se que o Porto nunca permitiu a permanência de nobres dentro de portas. Mas como todos os lugares-comum da história, esta afirmação é verdadeira só até certo ponto. Dá-se o caso do assunto ser mais complexo do que pode descrever um simples blog. Ainda assim não nos enganaremos fatalmente ao afirmar que este privilégio se manteve por um período não muito superior a cem anos, com especial incidência no século XV(2). Em 1390 é explicitamente referido em carta emanada da chancelaria de D. João I que: «... o uso e costume da dita cidade do Porto foi e é tal que não morem em ela nenhum fidalgo, de nenhuma condição que seja, nem haja morada nenhuma, nem faça aí estada prolongada e que com o dito uso e costume se povoou a dita cidade»(3). D. João I, D. Duarte, D, Afonso V e D. João II darão continuidade, com maior ou menor atrito, a este privilégio; mas com D. Manuel I o caso começa a mudar de figura...


É no século XV que ocorre o mais famoso exemplo da aguerrida forma com que os homens-bons da cidade pugnavam por manter o seu privilégio, quanto à não permanência da nobreza por mais de três dias na mesma. Corria o ano de 1474. O fidalgo Rui Pereira instala-se na rua mais nobre do Porto -  a rua Nova - em casa da viúva Leonor Vaz(4). Findos os três dias que lhe era permitido ali permanecer, Rui Pereira recusa-se a partir. Os dias passam, a tensão cresce, e o portuense comum, juntando-se aos seus representantes do paço da rolaçom, incendeiam a habitação! O fidalgo e seus criados fogem, não sem alguns deles ficarem gravemente feridos. O livro do cofre da câmara para o ano de 1474 tem o registo de pagamento a quatro escravos por «acarretarem auga para apagar o fogo», bem como, logo a seguir, o pagamento a dois negros «que andaram hum dia cavando na dita casa para tirarem algumas cousas que jaziam soterradas que ele [Rui Pereira?] tem».

A casa que ocupa o mesmo local onde existiu a que foi queimada, encontra-se aqui representada pela letra A. Notar que, até à construção da nova igreja de S. Nicolau (B), iniciada em 1671, existiam mais casas à direita dela. Atrás ficava a pequena igreja medieval de S. Nicolau (orientada nascente/poente) e o sítio de Vale de Pegas, onde já existiam edificações no século XII. Esta foto tem a particularidade de nos mostrar, em segundo plano, uma casa entretanto demolida, que denota construção bastante antiga (C), mesmo que talvez não tão antiga que a permitisse testemunhar a queima da sua vizinha da frente (foto nr. 00042513 da SIPA)


O caso ficou para a história da cidade, sendo recorrentemente contado pelos divulgadores dos pergaminhos deste velho burgo. O que poucos talvez saibam é que o local onde essa casa existiu ainda não foi tragado por uma qualquer expropriação compulsiva, para formar nova praça, jardim ou parque de estacionamento(5). É verdade que as atuais casas da rua Nova, perdão... da rua do Infante Dom Henrique, já nada têm que ver com as originais do século XV. Se à época as suas habitações eram as mais modernas e melhor equipadas da cidade, certo é que os tempos evoluíram. No século XVIII e XIX, o padrão de comodidade e conforto exigido era já outro, pelo que a rua é hoje maioritariamente ocupada por bonitos edifícios sete e oitocentista. O espaço contudo manteve-se, surgindo assinalado na imagem que ilustra esta publicação, para memória a ser usada pelos guias turísticos da cidade quando quiserem referir aos seus clientes foi precisamente aqui...


Diga-se que Rui Pereira levou o caso aos tribunais, tendo a cidade saído vitoriosa, com uma sentença de 9 de março de 1475. Em setembro do mesmo ano, D. Afonso V mandou lavrar estas firmas e resolutas palavras, na confirmação do privilégio citadino: «tenho por bem e declaro nos ditos privilégios que nenhuus duques, marquezes, condes, fidalgos, cavalleiros, abades bentos, priores, comendadores e pessoas poderosas de qualquer estado e condiçom que sejam, que na dita cidade nom possam estar, quando a ella vierem, mais dos ditos tres dias, nem tenham em ella aposentadoria  nem casa de morada, e querendo ho a elles em ella estar, mando a vos, juizes e officiais da dita cidade que lho nom consentam»; e acrescenta: «e quando se nom quiserem sair, mando que a cidade os posa fora lançar; e por esta quero que todo o mal, perda e mortes que dello recrecer aas ditas pesoas que assi sair nam quizerem, ou aa dita cidade, que elles sejam por ellos teudos a Deos e a nosa justiça e a dita cidade nam».

Sabias palavras... não muito tempo perduraram.

Viriato


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1. Primeiro publicada em 5 de março de 2020

2. Se bem que, ainda no século anterior é conhecida uma determinação municipal neste sentido (1350) e várias régias (1355, 1368 e 1374).

3. Que foi estendido às dignidades eclesiásticas em 1412.

4. Isto é, Leonor Vaz era detentora do foro.

5. Em 30 de maio de 1478, no aforamento da mesma casa a Fernão de Neiva, criado do rei, é referido que as casas: «...foram queymadas no arroydo que ha cidade ouvera com Ruy Pereyra».

Fontes: 2º vol. da História da Cidade do Porto, coordenada por Damião Peres (Portucalense Editora); A Construção de um Novo Centro Cívico: notas para a história da rua Nova e da zona ribeirinha do Porto no século XV, por Ferrão Afonso (Revista MVSEV, nº 9, ano 2000).

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