Entre 1668 e 1669 o pintor e arquiteto italiano Pier Maria Baldi acompanhou o príncipe Cosme de Medici - futuro Cosme III, duque da Toscana - numa viagem por Portugal e Espanha. Nessa viagem passou pelo Porto e elaborou uma célebre e maravilhosa vista da cidade. Na verdade, a primeira que a revela com alguma fiabilidade, tanto quanto possível para o artista qualificado que era mas no tempo limitado que teria (o pormenor perde-se mas a ideia geral fica)(1).
O séquito do futuro monarca era constituído por vários outros indivíduos, desde os mais elementares de apoio logístico a diplomatas, sacerdotes, nobres e artistas. Entre eles vinha o referido Baldi, mas vinha também o menos conhecido cronista oficial Lorenzo Magalotti. Este último terá sido o mais provável autor do texto que o leitor abaixo pode ler. Não se trata de uma imagem, mas se nem sempre as imagens valem mais do que mil palavras, no caso ambas se poderão complementar.
«O Porto, cidade antiquíssima e célebre pelo afamado desembarque dos franceses(2) na foz do rio onde, segundo dizem, teve origem o nome de Portugal, fica junto do rio Douro no qual começa a província de Entre Douro e Minho, em local muitíssimo irregular formado pelas vertentes de vários montes que, alargando-se variamente, tornam mais desigual o piso das ruas da cidade que se estende apenas no lado sobranceiro ao rio e onde as muralhas, que completamente a cercam, se avistam totalmente do rio, tanto de baixo como dos lados e das cristas mais altas das colinas, em forma de coroa. São estas muralhas construídas à maneira antiga, isto é, ininterruptas e ameadas(3), mas de estrutura belíssima, toda de granito em esquadria e de notável espessura. A cidade tem fama, e com toda a razão, de ser a mais bela e mais galante do reino, depois de Lisboa. Não é muito grande, mas os edifícios são bons, as ruas decentes, alegres e lajeadas à maneira de Florença, com pedras mais pequenas mas muito bem assentes e em boa conservação. A catedral é uma igreja grande e magnífica com três naves. Tem um cibório do Santíssimo todo de prata e de notável tamanho. Ao lado do altar-mor há uma urna de prata dourada de grande estima pelo seu lavor artístico e por encerrar o corpo do mártir S. Pantaleão. Da parte de além do rio, no cimo da serra, há uma nova grande e bela construção dos Cónegos Regulares, cuja igreja ainda não acabada é de arquitetura redonda, toda de granito e quase isolada. Calculam que a cidade tenha 4.000 moradias e pouco mais de 10.000 pessoas. Há poucos nobres, muitos padres e frades e o povo, como aliás em toda a província, é muito pobre e subordinada aos eclesiásticos, aos quais pertencem quase todas as rendas, que dizem andar à volta de dois milhões.
A subsistência da cidade é constituída pelo porto, e, por conseguinte, pelo tráfego de mercadorias; mas tudo está em mãos de forasteiros, especialmente de ingleses. A barra fica a menos de meia légua; é péssima e dificílima de transpor devido à estreiteza e obliquidade do canal. Por esse motivo, fora da cidade e numa colina, de onde se avista o mar, construiu-se uma porta redonda num pano de muro isolado, e que serve para os pilotos entrarem no rio com segurança, aproando como se tivessem de entrar pelo meio da claridade daquela porta(4). O rio é bem defendido dos ventos que todos sopram por trás das cristas altíssimas dos montes, os quais já pedregosos, já férteis e cultivados e salpicados de casais e fontes dão um belíssimo aspeto à cidade. No entanto as águas tornam-no perigoso, pois, que quando surgem as marés com vento e transbordam as torrentes dos montes, tal como no porto de Lisboa, as duas águas forma uma corrente perigosa, na qual nenhuma embarcação por mais ancorada que esteja pode aguentar-se; pelo que se retiram então para a margem e prendem as amarras em terra, não porque a âncora não seja suficiente, mas porque desce dos montes vizinhos uma tal quantidade de areia que as âncoras ficam enterradas e seria impossível levantá-las. Todavia estas enxurradas trazem algum benefício à entrada do porto, movendo e arrastando consigo as areias que tão estreita tornam a barra.»
Viriato
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1~ A imagem de Baldi não deve ser considerada uma visão fotográfica da paisagem portuense. Algumas diferenças entre ela e a realidade que ainda existe, são por demais evidentes. Para além de que devemos ter em conta que as imagens foram apenas terminadas durante as duas décadas seguintes, servindo-se o autor de anotações registadas no local, para serem usadas no detalhe das suas pranchas (que chegavam a atingir perto dos três metros de comprimento).
2~ Suposto desembarque dos gascões.
3~ No original ameiadas.
4~ O dr. J. A. Pinto Ferreira, responsável pela transcrição para o volume de onde retirei este texto, indica ser esta uma referência à capela de Santa Catarina. Estou mais inclinado a pensar tratar-se da Torre da Marca, quer pela descrição em si quer pelo facto de a dita torre vir representada na imagem de Baldi.
FONTE: História do Porto, vol. II, p. 524/525 : Visão da paisagem seiscentista portuguesa através das vedute de Pier Maria Baldi e da Relazione ufficiale de Lorenzo Magalotti (João Cabeleira, 2021)
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