Gosto bastante de percorrer os jornais antigos do Porto, por vezes sem rumo, só para encontrar notícias pitorescas, interessantes e por vezes mesmo historicamente surpreendentes! A que abaixo transcrevo foi colhida no O Comércio do Porto de 4 de fevereiro de 1874, podendo ser catalogada nas primeiras. Recorda-me o rio de tinta que correu entre câmara, mitra e jornais do final da década de trinta do mesmo século, quando se procedeu à remoção da grande quantidade de imagens devotas que pululavam as ruas e estradas da cidade (a esta situação voltaremos...). Quarenta anos volvidos, essas tradições, que como qualquer outra não sustentada artificialmente acaba por morrer quando obsoleta; ainda não haviam terminado. É disso que o jornal dá testemunho no artigo que segue.
«COSTUMES VERGONHOSOS
Quando a cidade do Porto não era policiada de dia; quando não era iluminada a gás, quando as posturas municipais permitiam que no terreno público se levantasse qualquer estabelecimento incómodo, para o exercício de industria particular, mesquinha umas vezes, deplorável outras; quando a linguagem da multidão, fazendo corar as pessoas bem educadas, era tida como liberdade legal; quando finalmente não se pressentiam sequer os assomos da civilização, que hoje conhecemos, via-se a miúdo defronte dos nichos em que irreverentemente, nas ruas da cidade, se fingia venerar a imagem de Cristo, da Virgem ou de qualquer santo, um espetáculo burlesco, comparável ao que oferece ao público o truão de feira: -- via-se o leilão de prendas oferecidas à imagem festejada por devotos seus. O pregoeiro era geralmente corcunda; e quando a natureza o não havia tornado disforme, ele procurava esconder a sua forma perfeita e fingir-se aleijado. À hediondez do corpo juntava a da linguagem, e, para mais agradar à multidão que o cercava, tornava-se ridículo, como a imagem saída do lápis do caricaturista, envergando uma garrida casaca, cobrindo-se com um chapéu de plumas de papel e cingindo uma durindana de pinho.
Principiava o leilão; queremos dizer, principiavam as cenas vergonhosas e imorais. Aos ditos equívocos do pregoeiro, à palavra torpe, ao gesto mais torpe que a palavra, correspondiam os apodos da populaça, às observações vergonhosas que provocavam linguagem mais solta e ações ainda menos recatadas. As prendas, as próprias ofertas à imagem venerada eram muitas vezes um estímulo para a galhofa; um escárnio em vez de humilde tributo pago pela fé do devoto. O leilão terminava com uma paródia de orgia, terminava pela embriaguez, por cenas aviltantes ao pela desordem. Era uma vergonha!
Com ideias melhores acerca da civilização desapareceram das ruas pouco a pouco os nichos de imagens santas; e a organização do corpo de policia, trouxe a repressão dos abusos da palavra e da ação nos lugares públicos. Custa porém a desarreigar completamente velhos costumes; as tendências existentes modificam-se lentamente e a força que deve auxiliar essa modificação nem sempre se sempre se emprega no sentido de consegui-la porque se ignora às vezes que direção se lhe deve dar. Pertence então àqueles que conhecem quais os abusos a extinguir, apontá-los à autoridade e ajudá-la assim no empenho de cumprir a sua missão. É por isso que nós informamos hoje a autoridade de que esses leilões condenados como imorais, se fazem atualmente ainda na rua da Rainha, defronte da capela do Senhor do Olho Vivo, assim como em Miragaia, vexando os moradores da vizinhança e os transeuntes, e ofendendo a civilização.
Nada há mais deplorável do que a ideia de encher de azeite a lâmpada do templo e abastecer de cera os altares com o dinheiro colhido por meio de espetáculos repugnantes e contrários aos bons costumes. Cristo, o protótipo da tolerância, o símbolo da bondade extrema e da paciência inexcedível, vendo um dia que os vendilhões, fazendo do templo mercado, agenciavam lucros mercantis onde só deviam fazer oração, expulsou-os cheio de cólera e castigou-os como irreverentes; e nós menos tolerantes do que Cristo, tendo apenas um fraco reflexo da sua bondade, havemos de permitir que o templo se alumie à custa de espetáculos, em que há mais do que mercantilismo, porque há indecência e imoralidade?
Substituam os devotos da imagem do Senhor do Olho Vivo os leilões por benefícios em qualquer teatro, ou apelem para as esmolas dos fiéis. Façam outro tanto os devotos da imagem de S. Pedro de Miragaia.
À autoridade pedimos que por decoro público, e por amor da reverência a quanto deve ser venerado, ponha termo aos leilões na rua da Rainha e a quantos se façam dentro da área da cidade.»
Como nota final, lembro ou relembro, que rua da Rainha era o bonito nome da rua de Antero de Quental, e que a capela do Olho Vivo ainda lá se encontra (junto ao feio edifício onde passei os meus cinco anos de munícipe portuense). Também à história desta capelinha voltaremos.
Viriato
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