sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Levantando uma casa

Na ausência de uma data concreta para a fundação do convento de S. Domingos do Porto, a expressão mais correta que podemos empregar é que ela terá ocorrido «no anno de 1237 para o de 1238». Esta expressão não é minha. Foi usada pelo frade dominicano que escreveu o Livro da Fazenda de 1737.

Existem outras duas datas frequentemente referidas, mas que creio não serem sustentadas documentalmente: a primeira - 1236 - surge no Livro do Foral de 1728, num capítulo relacionado com o abastecimento de água à comunidade e que é apresentada sem mais nada. E a bem da verdade esta passagem mais se parece referir à altura em que D. Pedro Salvadores enviou a sua missiva a Burgos e não ao estabelecimento dos primeiros frades no Porto, pois diz: «No ano de 1236 nos mandou vir para esta cidade o sr. bispo D. Pedro Salvador».

O outro ano também bastante vezes referido é o de 1239. Acontece porém que neste caso a data foi inicialmente apontada no século XVII por Manuel Pereira de Novais na sua obra Anacrisis Historical, tendo como base a crónica dominicana do espanhol frei Juan Lopez. A data foi subsequentemente repetida em várias obras, nomeadamente na influente Descrição Topográfica e Histórica da Cidade do Porto de Agostinho Rebelo da Costa. Acontece que o cronista espanhol comete um pequeno erro de computação de um ano ao verter a Era de César para o Anno Domini, quando se refere à carta que vamos ler abaixo (aliás já frei Luís de Sousa, no prólogo à sua crónica, queixa-se que o seu homólogo comete vários erros ao tratar dos conventos portugueses). A passagem em frei Juan Lopez diz: «Dada en Oporto, en Era de mil y dozientos y setenta, y seis, que es año de 1239, por el mes de Março». Contudo, se subtrairmos 38 anos à Era de 1276 vimos a ter 1238(1).

Posto isto, a única certeza que temos é que em março de 1238 os frades já se encontravam no Porto e em grande labuta construtiva dado que o mais antigo escrito datado que a ele se refere, lavrado no mês de março da Era de 1276, reporta à construção do convento. O documento em si tem como alvo a população portugalense, referindo as benesses que o bispo estava disposto a dar a todos que ajudassem os frades a erguer casa. Fosse no empilhamento de madeira, na condução de pedra ou mesmo trabalhando por um dia na obra, por sua mão ou pela mão de outrem; todos que ajudassem receberiam indulgências. Ei-la:


«Petrus Dei patientia portugallensis episcopus omnibus tam clericis quam laicis in portugallensi dioecesi commorantibus salutem et bonis operibus habundare. Noveritis nos ffratres prædicatores ad morandum in civitate nostra de consensu, et voluntate canonicorum, et omnium ciuium portugallensium recepisse, credentes ipsos vtiles et necessarios corporibus et animabus degentium in ciuitate et in episcopatu nostro. Vnde cum prædicti fratres nihil habeant, nec possint sine nostro iuuamine et vestro ecclesiam et domos sibi necessarias construere vniuersitatem vestram rogamus atque in remissionem vestrorum vobis iniungimus peccatorum quatenus tam in lignis colligendis quam etiam in lapidibus ducendis operi prædicatorum fratrum necessarijs vos exhibeatis propitios et deuotos iuxta illud . Sibi ædificat qui domum Dei ædificat. Nos igitur de Dei misericordia plenissime confidentes, omnibus, qui sibi fideliter inuenerint in lignis colligendis et lapidibus ducendis vel ibi corpore proprio laborauerint per unum diem, vel operarium miserint loco sui quadraginta dies de iniuncta sibi legitime paenitentia misericorditer relaxamus atque in hunc modum qui operi suprædicto et fratribus plus boni fecerint plus mercedis accipient et coronæ. Datum Portugalliæ sub Æra M.CC.LXXVI mense Martij.i Valeat usque ad duos annos.»

contraste entre o traslado do século XVIII (acima) e a pública-forma do século XIV (abaixo) da pastoral de D. Pedro Salvadores

Esta carta encontra-se preservada em pública-forma de 1319, num de dois pergaminhos com vários e importantes documentos sobre a fundação do convento (consta também num traslado do séc. XVIII, motivado por uma pendência judicial). No pergaminho está assim titulada: «Carta de perdão que o bispo D. Pedro deu a todolos que ajudassem a lavrar e esmola dessem para a fábrica do mosteiro e como foi edificado com autoridade do bispo».

Não obstante as palavras bondosas do prelado, veremos como uns meses depois desta missiva a situação deu uma volta de 180º, ao ponto de se temer a expulsão dos dominicanos do bispado portugalense!

Viriato


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1~ Fr. Juan Lopes refere também a carta de D. Sancho II em que este se dá como protetor do convento, esta sim, corretamente datada de 1239. Contudo o autor parece insinuar que a carta do rei é anterior à do bispo, o que não é verdade. A carta do rei é consequência do conflito que logo em 1238 se instalou, sobre o qual falaremos mais à frente.

Bibliografia: pergaminho do antigo cartório do convento (TT); Primeira parte da história de S. Domingos (Fr. Luís de Cacegas/Fr. Luís de Sousa); Tercera parte de la historia general de Santo Domingo, y de su Orden de Predicadores (Fr. Juan Lopez).

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