Vamos, de novo, viajar aos anos do Porto romântico. Aquele Porto de vida efémera, que ocupou os anos quarenta a inícios de sessenta do século XIX. E vamos, mais uma vez, acompanhados por Camilo. Aliás, é a ele que devemos a viagem! Em 1863, publicava o autor o romance Anos de Prosa, com preâmbulo datado de 1858, sem mais. E é por essa mesma razão que não posso datar concretamente o que abaixo se vai descrever. Se o romancista coloca o personagem principal a escrever em 1855 no início do volume, certo é que os "acontecimentos" são posteriores a essa data, mas não por muito tempo. Ora, é precisamente nessa altura que a primeira parte desta publicação se centra; período conturbado na vida de certa instituição... mas já lá vamos.
O romance de Camilo faz referência nos capítulos iniciais à Assembleia Portuense, onde, num dos bailes dados por aquela sociedade, o nosso personagem conhecia aquela que lhe motivará um grande desgosto amoroso. Antes disso, perde o autor um pouco do seu tempo a contar uma situação que ocorrera com um interveniente secundário naquele baile, creio - mas sem certeza - no suposto ano de 1854... Com efeito, Pires, nome do individuo estudante em Coimbra, chegara ao Porto no período de férias carnavalesco, tendo para contar «uma história negra, passada ao clarão de centenares de lumes, nas salas da Assembleia Portuense»: «alugou um dominó de seda, entrou nos salões, e remoinhou longo tempo por entre centenares de pessoas desconhecidas». Largos minutos depois de olhar sem saber o que fazer, o desajeitado rapaz lança um piropo a uma «dama de aspeto melancólico», para logo ser interrompido no seu atrevimento por um homem! O episódio vale a pena ler na totalidade pela pena de Camilo, mas abreviando, digamos que, após ríspida troca de palavras, outro homem levou o Pires a uma sala menos frequentada e pretendeu ver a cara do seu interlocutor, que mantinha a afronta em palavras e atitude corporal. Quando lhe tirou a máscara e viu o seu imberbe rosto limitou-se a chamar um empregado que passava com a bandeja de doces, dizendo: «Dê a este menino dous bolinhos e mande-o embora».
A história muito resumida dos primeiros anos desta associação, colho-a de um volume de O Tripeiro:
A Assembleia Portuense foi fundada em 31 de maio de 1834, tendo-se instalado num edifício que pertenceu, em sucessão, a Bartolomeu da Costa Lobo que o construiu c. de 1819 (ver aqui), Eduardo José da Silva Lobo e a António Bernardo Ferreira - marido da célebre Ferreirinha - que lhe terá feito algumas modificações (ver aqui). Para se ser membro, necessário seria ter «boa reputação civil e meios de subsistência, provenientes de emprego decoroso, ocupação decente ou bens patrimoniais», contando-se por sócios, muitos súbditos britânicos. Rapidamente se tornou um ponto de convergência das boas famílias portuenses, que ocorriam aos seus bailes animados e outras diversões; dispondo de uma «sala de companhia», para a conversação e prática de jogos lícitos, e um gabinete de leitura. Também nele se fazia, todos os dias, distribuição gratuita de chá e biscoitos aos sócios presentes.
Os problemas surgem por volta das guerras da patuleia, quando esta agremiação vê o seu rendimento descer, quer com a perde de receitas de jogo, quer por uma pendência havida com o senhorio sobre o modo de pagamento da renda. A sua reputação desceu ao ponto da sala de companhia deste clube ficar cada vez mais conhecida pelo palheiro, alusão ao esteirão de esparto que lhe cobria o chão, no intuito de proporcionar maior conforto durante o frio do inverno; sala agora conotada como uma escola de maledicência, desagradando a muitos sócios (Camilo foi um dos responsáveis pelo espalhar do termo pejorativo, mas não neste romance)[1].
Várias reuniões tiveram lugar para se solucionar o problema, após a suspensão da distribuição gratuita de chá e bolachas, mas sem que uma solução surgisse. A bomba estourou quando se verificou que alguns sócios, secretamente, haviam arrendado o edifício em janeiro de 1857, arrendamento que deveria ter início no S. Miguel seguinte, 29 de setembro de 1857 (o S. Miguel de setembro foi, desde tempos medievais e até o século XIX, a principal data utilizada para início de novos contratos de aforamento). Tal de facto aconteceu, tendo-se fundado um novo clube denominado Clube Portuense nas antigas instalações da assembleia. A Assembleia Portuense não teve outro remédio senão se mudar, estabelecendo-se em 1859 num edifício que mandaram erguer no no lado oposto da mesma praça do Laranjal e também ele já desaparecido (ver aqui).
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Camilo também coloca as suas personagens a banhos na Foz, para onde se deslocam de carroção. Já no final do romance encontramos esta passagem que, embora fictícia, nos remete imediatamente para a época, quando as primeiras formas do turismo balnear arrancavam. Na transcrição omito qualquer explicação sobre as personagens e o seu quadro:
«Estava ela sentada nas ribas fragosas que marginavam o "caneiro" onde os grupos se banhavam. Francisca da Cunha estava, ao lado da prima, conversando com o linheiro. O morgado de Santa Eufémia, noutra eminência do fraguedo, abarcava as pernas com os braços, e apoiava o queixo entre os joelhos. Na espécie de ilha que forma a outra riba do caneiro, andava aos pulos Egas de Encerra-bodes, ensinando um cão de Terra-Nova a saltar às ondas. E era aquele o vulto mais pitoresco da praia, envolto no seu cobrejão escarlate, franjado de borlas verdes, e caído a um lado com a natural graça, que usam dar-lhe os provincianos, vesandos àquela elegância de feiras.»
Mais passagens interessantes há no seu livro, descrevendo a ação na Foz, junto à praia utilizada pelos banhistas. Desafio o leitor a lê-lo, tendo na ideia que não se trata dos mais trágicos, não é dos mais brilhantes escritos do autor. Mas é Camilo, e só isso é já, no meu ver, um selo de qualidade.
Viriato
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1. Em Coração, Cabeça e Estômago, de 1862, descreve assim o autor aquele salão: « (...) tinha esta sociedade uma sala privativa de alguns indivíduos, que se divertiam, contando passagens da vida alheia, em linguagem acomodada aos assuntos. Os sócios desta congregação, chamada Palheiro, eram pessoas respeitáveis, maiores de cinquenta anos, qualificadas na hierarquia eclesiástica, no comércio nobilitado, e na magistratura, sendo o principal elemento do Palheiro negociantes aposentados, vindos do Brasil. A razão de chamar-se Palheiro àquela reunião, não a sei. Conjeturalmente diziam alguns etimologistas que palheiro derivava de palhas, querendo concluir que o pensamento de quem dera o nome à coisa fora significar o alimento natural dos sócios reunidos naquele ponto do edifício. Acho muito violenta e sobremaneira desatenciosa a hipótese. Os cavalheiros, ofendidos com tal interpretação, eram pessoas que tinham boas lembranças, propósitos salgados, e instrução variada para enfeitar as desgraciosidades da malidecência. Estas qualidades inteletivas não se nutrem com palha, penso eu.
Conquanto não fosse extremamente agradável ouvir um sexagenário a discorrer em termos lúbricos acerca das suas libertinagens de rapaz, eu tenho mais que muito para mim que o sal ático dos eufemismos havia de encobrir a impudicícia da ideia.
O que havia de menos louvável nas sessões daqueles cavalheiros era a obrigação que reciprocamente se impunham de esmiuçarem os pormenores das desonras meio veladas para os contarem para os contarem de modo que a difamação pudesse dali sair a desenrolar o sudário das chagas sociais à luz do sol. Quando os relatores não tinham que expender, era permitida a calúnia para gastar o tempo: quer-me parecer que este artigo dos estatutos do Palheiro não merecia louvores. Homens a escorregaram à sepultura, uns entrajados com as severas vestes da religião de Cristo, outros com o peito honrado por cruzes e crachás, outros com numerosa posteridade de filhos e netos, não davam de si boa prova indo para ali afiar a linguagem do impudor, decretar a publicidade de desgraças, que não precisavam da infâmia pública para o serem, e inventar escândalos para aligeirar os tédios da noite.
O que tinham de mais humanos aqueles sujeitos era comerem muito biscouto de Valongo, e forragearem os tabuleiros às mãos cheias para levarem à família. Isto, que não parece bonito, era a coisa de mais sainete e folia que os velhinhos faziam na assembleia.
O tempo foi matando uns, e espalhando os outros, de modo que o Palheiro, à falta de concorrentes dignos, ficou devoluto, à espera que a geração nova passe da torpeza militante para as pacíficas recordações de suas façanhas.
FONTES: Anos de Prosa de Camilo Castelo Branco (1863); Clube Portuense - o seu centenário, in O Tripeiro (Série 5, Ano. XIII)
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