domingo, 1 de outubro de 2023

Apontamentos colhidos de uma 'Relação'

Esta publicação, caro leitor, utiliza em seu proveito um pequeno opúsculo publicado em Lisboa em 1757, com o título Relação do Exercício Militar com que as Tropas de Sua Majestade Fidelíssima aquarteladas na Cidade do Porto aplaudiram os Anos do mesmo senhor nos dias cinco e seis de Junho e escrito por Angelo Amado Melmezi. Pelo ano, os portuenses mais conhecedores da história da sua cidade não deixarão de perceber o porquê das tropas se encontrarem aquarteladas no Porto (afronta que se prolongou por mais de um ano): consequência da revolta contra o monopólio da companhia dos vinhos, esmagado com mão de ferro pelo governo despótico de Sebastião José de Carvalho e Melo. Mas o motivo desta publicação não é o motim, pelo que prosseguimos(1).

A 6 de junho de 1757, D. José completaria 43 anos de idade. No Porto, o Governador de Armas João de Almada e Melo ordenou uma celebração de dois dias que evocassem condignamente a data, resolvendo efetuar um simulacro militar. Para nós portuenses do século XXI, essa ideia que talvez viesse com uma segunda intenção de mostrar ao povo um Vejam lá, portem-se bem..., foi feliz. E assim pode Melmezi deixar-nos, ainda que indiretamente, alguns apontamentos para o conhecimento do Campo do Olival do meado do século XVIII. São eles que para aqui recupero.


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«(...)

Há nesta cidade um campo, ou praça, chamada Cordoaria, por nela se fabricar todo o género de cordaje (sic), que é necessário em uma cidade comerciante, e marítima, para o velame dos navios. Está enobrecida de várias árvores, que a fazem vistosa, e servem de reparar do sol aos cordoeiros. Ainda que nela se tenham várias vezes exercitado os soldados, nunca se atendeu a fazê-la regular. A sua figura é de um quadrado imperfeito, porque os ângulos do sul, e do oeste, são mais compridos, que os outros, e a desigualdade do terreno, ou superfície tão notória, como antigo o costume de se lançarem ali muitos entulhos.


O principal desvelo do Ajudante de Ordens foi o de fazer mais regular esta praça. Para o conseguir fez destacar dos seus respetivos regimentos a algumas companhias, que em muitos dias acompanhadas de alguns Gastadores nivelaram o terreno, e fizeram os ângulos do campo mais perfeitos. (...)

Ao mesmo tempo, que se nivelava o campo, se fez o detalhe da praça, que no dia seis devia ser atacada, e rendida. O governador acompanhado dos coronéis, tenentes-coronéis, ajudantes de ordens, e mais oficiais de distinção, elegeu para construí-la o terreno, que fica entre a Porta do Olival, e o Colégio da Graça, que ocupa parte do ângulo do campo, que fica para o leste. Ali a fez construir o Ajudante de Ordens em forma triangular, ficando a porta principal dela fronteira ao convento do Carmo com uma ponte levadiça, e seu fosso. Não se dá uma explicação das esplanadas, armazéns, porta falsa, ponte dormente, redutos, forte, e mais obras exteriores, porque os inteligentes as escusam, e os ignorantes perceberão pouco os termos matemáticos, que são inescusáveis em semelhantes descrições. Devo só advertir, que os parques da artilharia, que devia servir para combater esta praça, estavam situados à parte direita e esquerda dos celeiros, e a tenda de campanha do governador encostada a uma torre dos muros da cidade ao sudoeste da mesma praça.

A Cordoaria, ou Olival, algumas décadas após o exercício militar e já com o seu aspeto algo modificado. Os pontos mais marcantes para o texto serão: A - Porta do Olival, F - Carmelitas, H - Meninos Órfãos e I - Recolhimento do Anjo (planta de José Champalimaund de Nussane (1788), conservada num conjunto hoje à guarda da Torre do Tombo)


O gosto com que a nobreza da cidade desejava aplaudir os anos de sua majestade, e ser espectadora de um tão belo exercício, se viu na presteza, com que se fizeram vários, e magníficos palanques. Entre todos se distinguiram os do Cabido Eclesiástico e Senado da Câmara, que estavam junto da tenda do governador. O da Companhia do Alto Douro, que se construiu na fronteira do Hospício dos Capuchos, o da excelentíssima Condessa de Alva, e o do Tribunal da Relação, este na parte direita, e aquele na esquerda dos celeiros da cidade. Os muros e a torre desta, à cerca dos meninos órfãos, a fronteira do Recolhimento do Anjo, e os outros sítios, que cercam o campo, se foram adornando soberbamente, fazendo tudo (...) uma tão agradável perspetiva, que embelezava os olhos dos espetadores. (...)

(...)

Dadas pelo governador as ordens convenientes ao ajudante delas, que as participava aos coronéis, comandantes, e mais oficiais destinados para obrarem no exercício, e chegando que foi o dia cinco de junho se juntaram no sítio de Miragaia todas as tropas. Ali receberam as munições, e os mais aparatos, que se julgaram precisos e principiaram a marchar (...).

(...)

Principiaram em fim a marcha pelas três horas da tarde, entrando pela Porta Nova, e discorrendo pelas ruas da cidade com singular ordem. O exército sitiante a tinha de entrar pelo Postigo das Virtudes, e o exército, que devia cobrir a praça, pela Porta do Olival. (...)

(...)

Depois que os Exércitos entraram no campo, e se formaram em batalha nos seus lugares respetivos; e depois que as partidas avançadas tocaram arma, salvou o exército sitiante a praça com uma descarga geral de toda a sua artilharia, a que ela correspondeu com outra. Este exército estava formado de sorte, que o seu lado direito ficava na torre fronteira ao Calvário, o esquerdo para a Cordoaria, e a retaguarda nos Celeiros da Cidade. O exército, que havia de cobrir a praça, ocupou o lado direito dela, formando-se de maneira, que a sua retaguarda ficava por todo o comprimento do dormitório das Recolhidas do Anjo.

(...)»

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Desculpar-me-ão por não terminar esta transcrição com finale mais consentâneo com um pequeno conto. Mas na verdade, como dito no início, aqui pretendi apenas e só retirar os apontamentos do relato que julguei curiosos para a história da cidade. O leitor interessado poderá ler o opúsculo completo aqui.

Viriato


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1 - Para conhecer os pormenores deste momento histórico tão brutalmente tratado ao tempo do Almada, convido à consulta do pequeno livrinho Absolutismo Esclarecido e Intervenção Popular - os motins do Porto de 1757, de Francisco Ribeiro da Silva (INCM, 1990)

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