sexta-feira, 27 de outubro de 2023

O Barredo, velho bairro do Porto

O Barredo é um incrível sobrevivente do Porto antigo ribeirinho uma vez que esteve para desaparecer, aí pelos finais do século XIX, tal como sucedeu ao seu congénere localizado a poente, o bairro dos Banhos. Pretendia-se substituí-lo por uma larga e moderna rua que permitisse passagem desafogada entre a ponte e a rua de São João; passagem que apenas se concretizou no final dos anos 40 do século passado, com o túnel da Ribeira. Não se julgue contudo, que ele sobreviveu por se considerar uma peça importante da história citadina; nem por sombras! O século XIX não quer saber disso, e mesmo o XX pouco o quer... Na realidade o que faltou foi o dinheiro, numa câmara que já se encontrava extremamente endividada pelos vários empréstimos autorizados pelos governos, sobretudo para abertura de ruas. E assim permaneceu o Barredo, triste, lúgubre, sórdido, pobre e apodrecente. Dir-se-ia que o Porto medieval tinha ali acampado e nunca mais levantado tenda! Hoje felizmente já assim não é, e o Barredo surge, em pleno verão, inundado de luz e turistas, que o tornam mais alegre! Mas, em 1879, estamos ainda bem longe disso! E é a esse ano que remonta o texto que abaixo de vai pode ler.


«Nalgumas cidades da Europa, em Ferrara, Florença e Veneza, na Itália; em Bruges e Malines, na Bélgica; em Rouen e Blois na França; em Toledo e Segóvia, na Espanha, ainda hoje se vêm ruas, cujas casas, todas ou em grande parte, conservam o seu primitivo estilo da idade média, ou dos primeiros tempos da renascença. Essas antigas ruas, verdadeiros monumentos arqueológicos, interrompem agradavelmente a monotonia das construções modernas, e são percorridas e admiradas pelo viajante curioso, como as galerias dos museus, ou as alamedas dos jardins, ornadas de estátuas de outras épocas.


Ninguém dirá o mesmo da parte não renovada do Porto, onde apenas se nos depara algum monumento religioso, digno de atenção e de estudo. As ruas não são antigas, são velhas. Se por aquelas que menos distam da Sé, se avista alguma janela manuelina ou porta ogival, características de uma época determinada, na maior parte não se encontram vestígios classificáveis em qualquer estilo conhecido. A antiguidade de tais construções é indeterminável; o que se conhece bem é a sua velhice, que mui declaradamente estão demonstrando a negrura de granito, as falhas dos cunhais, o desaprumado das fachadas, as brechas das paredes, as corcovas dos telhados, as mutilações, as roturas e torcimentos dos algerozes, e finalmente a aparência estranha, obsoleta, esconsa das portas e janelas denegridas, não pelo sol, mas pelo fumo de muitos séculos. Os materiais denotam da mesma sorte uma grande velhice: as madeiras poderes, carunchosas, entortadas; as pedras esburacadas e carcomidas; os rebocos fendidos, estalados, empolados; tudo untuoso, fétido, imundo, como uma parte grangenada do grande corpo da povoação.


É também no monte da Sé, a que já aludimos, onde são menores e menos asquerosas as ruínas. A inclinação da encosta e a sua exposição ao poente, deixam penetrar nas ruas o ar, o calor e a luz do sol, que enxugam e desassombram as grandes lajes desgastadas, as vetustas paredes, os vãos das portas e janelas, e os nichos habitados por velhas imagens, objeto do fervoroso e devoto culto de muitas gerações. Mas, o terreno ao passo que se aproxima do rio, perde pouco a pouco a inclinação e chega a estar de nível com a margem. Aí, somente à hora do meio-dia, o sol dissipa por alguns instantes as sombras das ruas estreitas e tortuosas, que a salobra humidade que se levanta da água, os despejos do peixe e de outras substâncias orgânicas, tornam mais imundas e ascarentas.


Tal é a parte da freguesia de S. Nicolau, que chamam o Barredo, verdadeiro labirinto de ruas, becos, escadas e vielas, que se estende desde a rua dos Mercadores até às escadas do Codeçal, e desde os arcos da Ribeira até à cerca do colégio dos Grilos, hoje Seminário Eclesiástico. A gravura dá clara ideia deste velho bairro. Algumas casas, só à força de escoras se sustêm de pé. Das velhas grades das varandas e janelas apenas algumas se conservam, podres e desconjuntadas. Das outras restam somente nas paredes os proeminentes cachorros de granito, esperando uma renovação que jamais talvez se realizará. O musgo, a hera e outras plantas, próprias dos lugares sombrias e húmidos ou das ruínas, vegetam enfezadamente pelas caleiras dos telhados e pelas fendas dos muros. A rua pareceria desabitada, se não vissem nela duas provas em contrários. Uma está nos três gatos que devoram sossegadamente a tripagem ou as guelras de peixe sem que ninguém interrompa o felino banquete. A outra é a roupa estendida a enxugar nas cordas suspensas dos telhados das trapeiras. Estes dois factos, aparentemente insignificantes, mostram as tendências comunistas dos moradores do Barredo e dos seus animalejos domésticos, e também que numa grande cidade policiada pode haver bairros com os foros e regalias, das mais incultas das aldeias.


O Barredo e outros velhos bairros do Porto antigo, contrastam singularmente com as grandes ruas da cidade moderna. Ainda recentemente se abrira as ruas novas da Alfândega e de S. Domingos. O município não há de parar de certo nesta obra utilíssima de renovação, e outras ruas farão desaparecer em breve o Barredo, bem como desapareceram já os imundos casebres que se estendiam desde a igreja de S. Nicolau até à Porta Nova, e desde a igreja e rua de S. Francisco até à rua de Sobre o Muro».


Um outro registo, poucos anos anterior e escrito no mesmo tom, é o de Pinho Leal que também refere ser este o bairro mais imundo do Porto, apesar de já todo iluminado a azeite, sendo bastante povoado e quase exclusivamente por vareiras, regateiras, vendilhões e carrejões: «Não há muito que o autor destas linhas, com sol claro, e por mera curiosidade, atravessou este bairro, só para poder falar dele; e creiam os leitores que nunca vi no Porto, nem na capital, uma série de ruas, vielas, escadas e barracões, que se assemelhassem àquilo. Tudo transudando água e imundice, obrigando-me o fétido a acelerar o passo, e arrepiando-se-me o cabelo o imaginar-me metido em semelhante labirinto, em uma noite de inverno, mesmo no atual século, antes de montar-se a iluminação pública. É este bairro um montão de lixo e um sorvedouro de vidas, quando pesa a mais leve epidemia sobre a cidade, e por todas estas considerações façamos votos por que a câmara abra sem demora as ruas em projeto.»


Mas isso não aconteceu. Embora ainda em 1874 se fale na elaboração da planta para a rua que ligaria a rua Nova de S. João à ponte D. Maria II, ela nem terá saído de intenção de projeto! Dai resultou que por mais de um século ficou sendo o Barredo - juntamente com o bairro da Sé - os locais de pior fama no Porto: estes mesmos agora classificados (e bem) de Património da Humanidade. O contrário aconteceu precisamente no outro extremo desta freguesia, no bairro dos Banhos, onde toda a podridão das casas, das tabernas - e quem sabe das almas - desapareceu. Tudo levado por um furacão de demolições e aterros que em pouco mais de um um ano destruiu o que séculos de vida da cidade ajudara a criar. Pergunto-me o que poderia dar ele à cidade de hoje, quando vivemos tempos da hegemonia do turismo?


FONTES: O Occidente de 1 de abril de 1879 e Portugal Antigo e Moderno (verbete S. Nicolau, do vol. VI - 1875)

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