A notícia que hoje vos trago nada tem de bonito, é trágica e ilustra bem o que era a segurança no trabalho em meados do século XIX. O acontecimento dá-se a 8 de junho de 1865, na rua do Pombal. Mas onde fica a rua do Pombal, pergunta o leitor de si para consigo. Se lhe disser que a rua do Pombal ligava o Campo Pequeno à rua dos Quartéis(1), ficou na mesma? Bem, traduzindo para a atual nomenclatura citadina, trata-se da rua de Adolfo Casais Monteiro, que liga o largo da Maternidade de Júlio Dinis com a rua de D. Manuel II.
Os mais atentos à data terão notado que neste ano teve lugar um acontecimento grandioso na cidade: a Exposição Internacional do Porto. Este facto levou à construção de um lindíssimo equipamento para a albergar - o Palácio de Cristal - bem como motivou várias melhorias nos arruamentos da cidade que os jornais da época bem espelham.
Mas vamos então à notícia:
«Horroroso desastre: Toma as proporções de um acontecimento verdadeiramente horroroso o que hoje pela manhã se deu nesta cidade e de que só sucintamente podemos por enquanto informar os nossos leitores. Por volta das seis horas, na ocasião em que um grande número de operários do Palácio de Cristal se ocupava nos trabalhos de escavação a que há tempos se tem procedido num quintal da rua do Pombal, a fim de ser conduzido deste ponto para o jardim do Palácio a melhor camada de terra, o muro que limita o referido quintal, e que em virtude das escavações feitas se achava suspenso, desabou numa grande extensão, colhendo debaixo todos os operários que por desgraça se acharam ao alcance das pedras. Este funesto sucesso atraiu logo uma multidão considerável de povo, contristando-a e impressionando-a da maneira dolorosa que é fácil imaginar. Numerosos braços acudiram imediatamente a desenterrar de entre as ruínas do muro desabado as vitimas, das quais a incerteza do número aumentava ainda o horror desta cena. À hora em que escrevemos tinham sido extraídas umas doze pessoas, quatro das quais já cadáveres. As outras, umas com o corpo completamente esmagado quasi da cinta para baixo, outros com as pernas e braços quebrados, e todas gravemente feridas e escorrendo em sangue, foram transportadas em macas para o hospital da Misericórdia. Por enquanto é difícil fixar o número dos desgraçados a quem àquela hora matinal estava já reservada tão negra sorte. Em mais de vinte porém se calculam os que mais ou menos terrivelmente sofreram as consequências deste desastre. A não serem os prontos socorros prestados pelo resto dos operários do Palácio de Cristal, tratando de desentulhar o muro desabado, muitos dos que saíram vivos, teriam ali encontrado uma morte infalível. As vitimas compõem-se de mulheres, homens e crianças de um e outro sexo. Com duas destas deu-se um caso que se pode dizer providencial. No desabamento do muro, de tal modo se entestaram as pedras que caíram sobre elas, que estando as crianças completamente sepultadas debaixo das ruínas, a abóbada, contudo, formada pelas pedras, as preservou da morte e até de ferimentos importantes. O desastre da rua do Pombal foi uma cena de horror que é fácil de imaginar mas que custa a descrever.»
in O Comércio do Porto de 8 de junho de 1865
Esta planta, cerca de trinta anos anterior à época do desastre, mostra contudo a área não alinhada da rua onde terá ocorrido aquela fatalidade. Para uma melhor localização assinalei com o n.º 1 o atual Museu Nacional de Soares dos Reis; o n.º 2 indica o antigo quartel da Torre da Marca (nas suas traseiras está hoje a Faculdade de Farmácia) e o n.º 3 o jardim do Largo da Maternidade de Júlio Dinis. Não nos surpreenda o atraso no alinhamento da rua; alguns desses alinhamentos projetados acabariam mesmo por não ter efeito...
No dia seguinte, o mesmo periódico desenvolve a notícia, da qual extraí a seguinte passagem:
«O desastre da rua do Pombal: (…) As escavações a que nos referimos são as que tem tornado necessárias a construção de um novo muro que substitua o que até agora vedava a quinta do palácio real(2), por aquele lado, a fim de que, demolindo-se o que existe, se verifique o alargamento daquela rua projetado pela excelentíssima câmara. A terra que tem saído das escavações, as quais são feitas pelo lado de dentro da quinta, tem sido transportada para o Palácio de Cristal, onde é aproveitada nos jardins. Como o desaterro se verifica no sopé do muro antigo, este foi gradualmente ficando com os alicerces a descoberto, até que por último, fugindo-lhe a camada de terra em que aqueles assentavam, desabou. Infelizmente deu-se este facto na pior das ocasiões, porque teve lugar quando um grande número de operários do Palácio de Cristal, como se disse, se achava ocupado no serviço de escavar terra e encher os cestos às mulheres e crianças que se empregam em conduzi-los. Apenas o muro desabou, o estrondo das pedras e os gritos de socorro dos que não ficaram debaixo delas atraíram numerosa multidão, sendo os primeiros a acudir alguns vizinhos e os soldados de infantaria n.º 5. Tanto estes como os operários do Palácio de Cristal, que sem demora correram ao local do sinistro, empregaram os mais ativos esforços em desentulhar prontamente das ruínas aqueles que tinham tido a desgraça de ficar sepultados nelas. Dentro de pouco tempo tinham-o (sic) conseguido. À medida, porém, que iam aparecendo as vitimas, ia aumentando o horror daquele espetáculo. Os gemidos dos feridos, o seu aspeto ensanguentado, a vista dos mortos, o choro de numerosas mulheres, convertiam numa tristíssima cena aquele acontecimento. Dos que morreram, um apareceu dobrados os pés com a cabeça, evidenciando-se por esta circunstância que o colheu a morte no momento talvez em que se curvava em pegar em algum cesto para o deitar acima da rota em que todos trabalhavam. Um outro tinha o peito atravessado pelo cabo da enxada, como quem tivesse feito dela apoio para se encostar. Desafogado o terreno em grande parte e conduzidas para o hospital da Misericórdia(3) todas as vítimas desta lamentável desgraça, verificou-se pela chamada a que se procedeu que não faltava mais ninguém. O número de vítimas excede em mais um àquele que ontem dissemos, sendo 5 homens mortos, e 2 homens e 11 mulheres feridas. (...)»
in O Comércio do Porto de 9 de junho de 1865.
A notícia continua, dando conta dos nomes das vítimas, suas idades, estado civil e local de morada, que são também elas interessantes do ponto de vista sociológico mas que aqui me abstenho de mencionar. Apenas uma exceção para um pai, que aflito por julgar que o seu filho de 12 anos estava entre as vítimas, corre para ali e vem a descobrir pela boca de um rapaz da mesma idade, que já não tinha filho...
Esta e outras tragédias similares – recordo uma outra que ocorreu na rua dos Lavadouros sobre a qual li também nos jornais da época – mostram a falta de segurança que existia e viria ainda por muitas décadas a existir neste e noutros tipos de empreitadas. Mas também a triste e dura vida que obrigava muitos pais a colocarem os seus filhos a trabalhar em idade tão tenra; o que só há relativamente pouco tempo cessou, para grande vergonha nossa.
Nesta imagem de 2014 do googlemaps podemos ver a entrada da rua de Adolfo Casais Monteiro, antiga rua do Pombal. Com bastante probabilidade terá sido na área ocupada pelo edifício em remodelação que o acidente ocorreu.
Resta-me terminar afirmando que esta publicação foi originalmente publicada a 28 de fevereiro de 2018, num blog que entretanto perdi.
Viriato
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1. Chamou-se também rua do Triunfo.
2. Agora ocupado pelo Museu Nacional de Soares dos Reis.
3. Hoje Hospital de St. António.
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