sexta-feira, 10 de novembro de 2023

Memórias de um mosteiro

As séries mais antigas da revista O Tripeiro encontram-se recheadas de memórias de portuenses anónimos, que o mais das vezes reportam à segunda metade do século XIX, por estes serem já vetustos anciãos quando as registam. As que para aqui recupero dizem respeito ao mosteiro beneditino feminino do Porto da ordem de S. Bento, que existiu na área hoje ocupada pela estação ferroviária do mesmo nome.


Este mosteiro, desaparecido no início do século XX, está felizmente bem documentado fotograficamente, mesmo memorialmente sobretudo no que toca aos abadessados e seus célebres poetas[1]. Ainda assim, uma memória mais prosaica, mais dia a dia, como esta que agora parcialmente transcrevo, de um sr. chamado Matias Lima e publicada em 1 de junho de 1913, é, eu meu entender, igualmente relevante no que toca à memória da cidade, ao seu pulsar, às suas vivências de outrora. Complemento-a transcrevendo uma outra memória da mesma revista (esta de um velho tripeiro, publicada em novembro de 1912), sobre um episódio ocorrido com o poeta Faustino Xavier de Novais, que encravou, ao tentar um verso sobre um mote que uma freira lhe deitara...


Os textos, são estes:

I

«O convento de S. Bento de Avé-Maria, tinha qualquer coisa de austero e de venerável que ficava nos olhos e falava no coração. Enorme, tomando a rua de Loureiro para o qual fazia frente, vinha a estender-se pela praça de Almeida Garret e ia fechar-se com a rua da Madeira. (...)

Eu adoro os conventos. Eles são para mim a voz do passado e toda essa voz perturba-me, sugere-me, emoções, transporta-me a tempos idos (...). Assim, quando o convento se começou a arrasar, eu senti com isso uma grande mágoa. Era como um amigo a que a todo o instante visse e que mo roubassem, roubando-me uma parte de mim mesmo... Porém, sempre me ficou nos olhos, e sempre que passo pelo lugar onde ele existiu, a minha saudade o reconstitui tão bem, com tanta nitidez, com tanto milagre que eu digo como disse Júlio Brandão: a saudade faz ressurreições abençoadas! - E então, ponho-me a olhar para esse convento redivivo na minha emotividade, ponho-me a olha-lo com os olhos da alma - olhos que ainda têm mais alcance do que os próprios olhos (...).


Chamava-se antigamente o lugar onde o convento se erguia, feira de S. Bento, pois ali se realizava uma feira. Conta Rebelo da Costa que dos seus mirantes as freiras iam gozá-la, gozar esse espetáculo sempre cheio de inédito e imprevisto. As vendilhonas da aldeia ali punham à venda os seus produtos, com que o Porto se nutria: os seus borrachos galegos, as suas frangas de carne e plumagem, as suas tenras hortaliças, os seus ovos brancos como rolos de espuma... Então, as transações das compras e das vendas referviam com ardor. O grito das vozes subia alto. E as freirinhas, sobre as suas janelas, seus mirantes, recebiam consoladoramente todos aqueles ecos palpitantes do ruído, que iam levar a esses peitos ermos de solidão[2], um pedaço de vida, daquela vida que eles já não possuíam!

o velho Lázaro acabou mesmo por cair . bem tentou um grupo de notáveis mantê-lo de pé...


O convento de S. Bento de Avé-Maria tinha o aspeto vibrante de uma fortaleza erguida à fé. Era uma construção grandiosa, com certa severidade de linhas. (...) Do lado sul, ficava a igreja que tinha sofrido um grande incêndio em 1783, e que se erguia para o céu com uns ares triunfantes de Lázaro ressuscitado. Mal esse Lázaro sabia que havia de tombar de vez volvido pouco mais de um século!


Aquela igreja! Vive na história do meu coração e nela forma os primeiros capítulos das minhas quimeras! Lembro-me bem de lá ir muita vez, aos domingos, à missinha das dez e meia, com meus pais e meus irmãos. Eu tinha então menos anos e mais ilusões - o reverso de hoje... - e gostava muito daquela missa que era celebrada por um padre muito velhinho, de cabelos todos brancos, cheios de auroras de luz... Parece-me ouvir ainda dentro das naves daquela igreja, o gamebundo órgão carpir-se em notas lamentosas[3].


Eu ouvia sempre a missa distraidamente, meus olhos iam a miúdo fixar-se no coro, à espera de lobregar pelas suas densas grandes, um busto formoso de monja. Mas ai!, nunca o vi, para tristeza minha! As freiras que lá existiam (se eram freiras) eram velhinhas, velhinhas como o padre que celebrava a missa, como as imagens que animavam os altares, como o vetusto órgão arrastando em gemidos a sua fadiga, a sua anemia de longa data...

(...)

(...) Tinha o convento um pátio extenso onde pelo natal se realizavam kermesses em honra de Deus Menino, e onde nos fins de tarde, os sirgueiros da rua iam de chinelos, e guedelha ao vento, torcer o cordão nas suas rodas cantadeiras. Ao fundo das escadas de pedra que desciam para o largo, haviam umas grandes árvores que punham no ar a mancha verde-esmeralda da sua cor. E todos os dias ia para debaixo dela uma mulherzinha já idosa abanar o seu fogareiro, assar castanhas. (...)


Havia também, da parte lateral do convento, uma grande fonte de água com duas bicas cantantes. Os marçanos das lojas próximas ali iam encher as bilhas e jogar a pedrada; ali iam os aguadeiros (...) de boina azul na cabeça rapada e barris ao ombro; e ali iam as criadas de servir dar treta aos seus bigodeiros municipais ou, na falta deles, tagarelar intrigas, roer no patrão e na patroa, enquanto esperavam a vez de encher os canecos. Tinha essa fonte um espeto bizarro e ruidoso pela concorrência. E a água cantava de contente por ser tão procurada...»


II

«Faustino Xavier de Novais era um poeta espontâneo, muito apreciado pelas suas conceções humorísticas; mas não tinha a cultura literária de outros do seu tempo. A facilidade de rimar, com que versejava, algumas vezes lhe falhava, quando o vocábulo de que carecia para completar um verso, pertencia a qualquer classe de tecnologia científica.

Este caso deu-se no convento de S. Bento de Avé-Maria, quando, batendo palmas para pedir mote, a freira a quem se dirigia lhe deu o seguinte: «O meu amor foi par a Índia». Faustino procurou compor a décima, mas, por mais tratos que desse ao seu espírito, só encontrou a rima guinde-a, que, derivada do verbo guindar, não ligava com o sentido que, ao tempo, lhe ocorria, e ainda lhe faltava outra. Desesperado com o insucesso e imaginando que a freira o queria desfrutar, chegou debaixo da janela, onde ela o esperava, e disse-lhe desabridamente: «O seu amor foi para a Índia? Pois quando ele voltar... dê-lhe visitas.» (ou coisa parecida). Dito isto, retirou-se mal humorado.

Um rapazote de dezassete anos, que com ele tinha relações de amizade e que presenciou o caso, convicto da inocência um tanto maliciosa da monja, foi, no dia seguinte, à pequena loja, de uma porta só, situada nos baixos da casa da antiga Companhia dos Vinhos do Alto Douro, na qual Faustino tinha o seu estabelecimento de ourivesaria, e apresentou-lhe a seguinte décima:

"Meu amor era canteiro,

Que a dura rocha cortava.

Basta pedra aparelhava,

Cada dia, p'ra o mosteiro.

Em guinda-la era useiro,

Pelo sistema da Síndia.

Quem quiser, agora, guinde-a,

Se tiver pressa na obra.

Quem fazia tal manobra,

O meu amor, foi prá Índia."


Ao mesmo tempo explicou-lhe que a Sindia fazia parte da nossa antiga província de Galaor. Faustino, ainda mal humorado, exclamou: «Ora! Como, diabo, havia eu de lembrar-me de levar a geografia no bolso para responder à freira!». Afinal voltou-lhe o bom humor a justificar a esperteza da freira.»


Diga-me leitor, se estas pequenas recordações, sobretudo a primeira, não são ótimas memórias, que nos ajudam a melhor compreender, a dar vida, às muitas vezes bonitas mas secas imagens, de tempos passados?

Viriato


ӽӽӽ

1. E claro, o imenso potencial histórico que existe arquivado nos livros que ainda subsistem do seu cartório...

2.  No original Soidão.

3. Hoje na igreja do Bonfim.

OBS: Esta publicação é originária de um blogue que o autor por incúria perdeu, tendo sido publicada originalmente em 18 de setembro de 2021.

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