quarta-feira, 22 de novembro de 2023

PROGREDIOR

Confesso caro leitor, que o tempo de Camilo Castelo Branco é o meu preferido objeto de estudo da vida da cidade do Porto, ao menos dos tempos modernos. Modernos, sim, mas também representativos das décadas finais do Portugal pré-industrial, onde a vida corria de modo bem diferente daquele que nos seguintes decénios nos iria completamente deglutir.

Muito me rio com Camilo quando leio os seus volumes (e ainda me faltam tantos!), mas sobre ele não me atrevo a falar, pois que já tantos e tão bem o fizeram. Convido-vos, isso sim, a visitarem a sua casa em Seide, tão pertinho do Porto pela A3 e A7... e há ainda o Centro de Estudos, logo ao lado, onde um vasto conjunto de publicações podem ser consultadas sobre esta figura ímpar da escrita nacional. Da sua pena deixo-vos um pequeno trecho sobre o famigerado e já desaparecido Palácio de Cristal, cujo local, área junto da Torre da Marca, o escritor ainda conheceu sem o dito.

 


É interessante a memória que esta estrutura deixou nos portuenses, mesmo aqueles que como eu nunca o conheceu. Na verdade, tendo desaparecido em 1951/2, seria preciso o meu leitor possuir a provecta idade de 80 anos ou muito perto, para o ter como memória fugaz da infância. E talvez por essa memória ser muito marcada, ainda hoje no FB, por exemplo, me deparo com comentários referindo-se a eventos ou imagens modernas captadas nos seus jardins ou mesmo no pavilhão que ali se encontra, como se fosse O Palácio de Cristal.

o Palácio de Cristal em 1861... [1]


Deixo-vos então, com o início do capítulo XII de A Bruxa do Monte Córdova[2]:

«Angélica Florinda hospedara-se dois dias em casa do Amigo de Tomás de Aquino, enquanto alugava e alfaiava uma casinha das abarracadas, que se desfizeram no cimento do circo-bazar-teatro-restaurante-ginastico-pirotécnico, chamado em linguagem enxacôca Palácio de Cristal.

Olhava contra o mar a pequena adufa da casa. Ramalhavam-se sobranceiras as corpulentas faias da quinta, onde Carlos Alberto ermou e achou a morte com todas as tristezas da solidão. Aqueles silêncios das sombras inoitecidas está sendo hoje o que é tudo por onde a indústria gananciosa edifica seus telónios. As aves fugiram dali; a folhagem não rumoreja no chão arrelvado; a água dos meandros, repuxada em bicas, já não tem a música e graça alpestres do seu soido. Acabou tudo. A poesia e a meditação, as duas asas da alma desterrada, não reconhecem já o seu onde avoejavam, antes que a fumarada das máquinas empestasse as auras, que vinham do oceano ao desdobrar da noite...

Que tristeza tão fora do ponto vem esta! Se haveria alguém com juízo que subscrevesse este protesto contra os mercadores do progresso (a coisa diz PROGREDIOR) que desarraigam as árvores para aplainarem terra onde armem suas tendas de bonifrates e cascavéis!

Era, pois, ali a casinha de Florinda Angélica. (...)»

 

Mas Camilo não viveu para ver a destruição do palácio e não juro que se tal acontecesse, não vertesse uma lágrima face à transformação da cidade central do meado do século XX: hiper-urbanizada, já percorrida por imensos automóveis e sempre cheia de pressa e atrasada[3].

e o Palácio de Cristal em 1951


Nem mesmo o Porto soube respeitar e preservar aquela verdadeira instituição. Veja-se este excerto do relatório e contas camarário relativo ao ano de 1845:

«Um outro sector muito grato aos portuenses é o Palácio de Cristal, que em 1945 foi extremamente beneficiado, visto ser um recinto público de que a Câmara cobra receitas que atingem anualmente uma verba de cerca de 500 contos. Em 1945 aquelas não cobriram as despesas próprias em 78.461$65, isto aparentemente, visto que o lucro material do arranjo da cozinha, caves, restaurante e outras dependências, bem como o de não se ter feito por administração direta a festa de S. João, compensam largamente aquela importância. Devo informar que vai entrar-se em franca política de melhoramentos naquela dependência municipal, de modo a que se atraia mais convenientemente o público.

Abriu-se um novo sistema de exploração e conservação do Palácio e seus jardins, que espero ser mais proveitoso do que até aqui. (...).

As obras de beneficiação continuam em 1946, procedendo-se, atualmente, às da frontaria. Bilheteiras, recinto infantil, muros de vedação da casa do diretor, dancing do lago, aviários, reparação de mobiliário, material de diversões, reparações interiores e exteriores, caiação, telhado da nave central, capela de Carlos Alberto, coreto da Avenida das Tílias, teatro Gil Vicente, sala holandesa, etc., tudo foi alvo de atenção no que respeita às obras, algumas bem urgentes e custosas, como as do exterior, a da cobertura da nave, a do restaurante, etc.

(...)»

 

Alguém poderia crer, se lhe dissessem, quem apenas sete anos depois destas palavras o Palácio de Cristal já não existiria? Mas não. Juntou-se à lista dos defuntos monumentos portuenses, numa coleção já imensa de perdas irreparáveis; embora umas mais sentidas do que outras. Teria Camilo regozijado?

Viriato


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1. Tomo aqui uma pouca liberdade... é que esta imagem dificilmente poderá ter sido tirada em 1861. Será mais adequado supor que seja de 1863 ou 1864, dado o adiantado da obra.

2. Em boa verdade este escrito é de 1867. No entanto, logo em 1861, na Revolução de Setembro de 27 de junho, pouco após a ideia ter sido dada a conhecer ao público, refere o escritor: «Um Palácio de Cristal no Porto já não é mera utopia de cristalinas imaginações. O dinheiro é a alavanca de Arquimedes. (...) Dai-me dinheiro e eu cristalizarei a Cidade Eterna. É que o Porto está riquíssimo. Os capitais não sabem já onde hão de frutificar cinco por cento. E os capitalistas começaram a descrer de Cristo e da sua palavra, porque este dissera: "dar-vos-ei cento por um" e as coisas correm de modo que daqui a pouco será muito feliz quem tirar um por cento. O que eu não sei é se Jesus fez esta promessa a uns cavalheiros que ele encontrou uma vez dentro do templo».

3. O leitor pode ver aqui a planta daquela área antes da implementação do palácio. As casinhas a que Camilo se refere serão possivelmente as que se vêm mais à esquerda. Pelos longos e estreitos corredores ao lado do terreno, do conhecido arquiteto da cidade Lima Júnior, tudo aponta serem casas de ilha ou seus protótipos.

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