No ano de 1576, aí por maio, realizou-se no convento de S. Domingos do Porto um acontecimento raro. Com efeito, naquele ano, quiseram os homens que ocorresse o capítulo provincial da Ordem dos Pregadores neste convento; casa de secundária importância, ainda assim a terceira mais antiga de Portugal. Era provincial frei Estêvão Leitão que em conjunto com os seus definidores achou por bem convidar o arcebispo de Braga para o concílio. Este convite não era despropositado: quem ocupava aquele cargo era o famoso frei Bartolomeu dos Mártires, um dominicano.
Homem humilde e verdadeiro servo de Deus, fr. Bartolomeu aceitou o convite e deslocou-se à nossa cidade para se unir em fraterna convivência com os seus irmãos. Quis entrar pela calada da noite para a população não lhe preparar pomposas manifestações de alegria e regozijo por o receber dentro das suas portas... mas em vão: todos o esperavam, todos o queriam ver. O bispo D. Aires da Silva[1] convidou-o a pernoitar no seu paço, mas o frade/arcebispo preferiu a companhia dos seus e foi no convento do Porto que repousou da caminhada desde Braga.
Durante o capítulo foi-lhe requisitado que pregasse no púlpito, ao que ele astuciosamente se escusou, evocando falta de hábito em o fazer com a consequente perca de destreza no uso da palavra em tão importante função. Mas, no chamado capítulo de culpis, requisitado de novo para a pregação, não teve outra opção senão fazê-lo, em nome do voto de obediência que todo o dominicano professa.
frei Bartolomeu dos Mártires (à esquerda podemos ver as armas da Ordem dos Pregadores OP)
E agora principia o episódio que fr. Luís de Sousa tão bem narrou. É que, no dia seguinte, quando subiu ao púlpito, já a notícia se espalhara pela cidade e «foi cousa nunca vista o concurso de gente na igreja a vê-lo e ouvi-lo». Depois, conta ainda fr. Luís de Sousa um milagre que terá ocorrido aquando do discursar do Arcebispo. Entre a verdade e a lenda, a verdade é que se trata de um dos poucos episódios descritos que terão ocorrido dentro daquela igreja que o Porto esqueceu, pelo que merece ser recordado. Segue a transcrição do texto:
α
«Neste sermão se conta que lhe aconteceu aquele caso tão raro, que podendo ser o caso, tem muito de prodígio espantoso, quando não quisermos conceder que nele houvesse milagre, ou revelação, que é bem de crer que a houve. Veio a tratar de muitos males que causa em uma alma o torpe vício da sensualidade. Discorrendo por eles encarou para um lugar onde estava assentada uma mulher que nas visitações do bispo trazia mau nome; e não tirou os olhos do lugar, nem dela por um espaço grande apertando a matéria com tanta energia que não faltava mais que nomeá-la por seu nome. Estava a mulher corrida (e não devia ser do mais vil do povo) parecendo-lhe que toda a igreja seguia o arcebispo em pregar os olhos nela: senão quando prosseguindo o arcebispo a matéria, e querendo fazer uma figura de retórica com propor um exemplo vivo em pessoa e nome, acode com o nome da mesma mulher e começa a nomeá-la, e chamar por ela uma e muitas vezes. Quando a pobre ouviu o seu nome, acabou de se persuadir que com ela o havia o arcebispo, e que não podia ser senão, que tinha novas de sua vida, e não sentindo que remédio tomasse em tamanha afronta como imaginava em meio de toda uma cidade, que não era menos o auditório, deixou cair o manto sobre os peitos, e assim esteve até ao fim do sermão desfazendo-se em lágrimas. E não era bem acabado quando se levantou e saiu da igreja julgando e assentando consigo, que quantos nela ficavam, eram já testemunhas do que se passava em sua consciência.
O bispo ficou tão cheio de espanto do que ouviu, que quase não dava crédito a suas mesmas orelhas. Chamou depois o escrivão da visitação que também esteve presente, benzia-se o homem e fazia pasmos de como podia ser ter o arcebispo notícia do que se passava no segredo da visitação, e do seu escritório: e se a não tinha, como era possível falar tão determinadamente, e tanto ao certo».
ω
É este sem dúvida um facto mais ou menos lendário ainda que de agradável leitura; o que não podia ser de outra maneira dado ter saído da pena de um autor de uma prosa deliciosa; versando a vida de um homem superior. Um homem que, em Trento, teve a coragem de dizer que os ilustríssimos e reverendíssimos cardeais ali presentes, também haviam mister de uma ilustríssima e reverendíssima reformação! Sem mais! Foi esse grande homem, um incansável calcorreador da sua arquidiocese para se inteirar continuamente de melhorar seu estado, que passou pelo Porto naquele longínquo maio de 1576 e pregou desde o fundo da sua alma, ali onde agora pernoitam e passeiam turistas.
Viriato
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1. Bispo que tombou em Alcácer Quibir em 1578.
Bibliografia: Vida de Frei Bartolomeu dos Mártires por frei Luís de Cacegas e frei Luís Sousa (1619).
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