Caros leitores, neste dia de Natal, que desejo agradável a todos, deixo-vos duas "notícias" do século XIX colhidas de dois jornais distintos. A primeira, muito possivelmente escrita por Camilo Castelo Branco, refere os célebres outeiros das freiras de S. Bento, também mencionados por vários outros autores e onde os poetas da altura se enamoravam das jovens ocupantes daquele mosteiro fundado por D. Manuel I. A segunda é uma notícia banal; aliás, será notícia mesmo? Apenas aqui a coloco pelo pitoresco da história, pela pequena fresta que abre para aquele tempo. Talvez que quando foi publicada tivesse uma conotação subjacente que hoje não seja possível captar... É enfim, para o leitor, uma publicação de fácil digestão, própria para entreter cinco minutos enquanto se come uma rabanada! Bom Natal a todos!
«DOIS ECLIPSES
Para ontem à noite estava anunciado um outeiro e um eclipse: a lua não fez descortesia ao Borda de Água; as freiras de S. Bento deixaram por mentiroso o noticiador. Foram dous eclipses totais ao mesmo tempo. A nova abadessa, já nos constava, fez um protesto solene contra a poesia, receosa de que, envolta em algum soneto, fosse ervada frecha de Deus vendado varar o peito de alguma das jovens seculares agasalhadas na casa do Senhor; mas quando anunciávamos a festa, tomávamos o papel do articulista do Times na questão de Nápoles, e incitávamos o público a ir com a sua presença no pátio, fazer o que dizem irá fazer a esquadra; obrigar aquele soberano absoluto, cujo ceptro é o báculo, a dar mais liberdade às suas súbditas(1); deixá-las vir à grade; que mortas por isso estavam elas.
A pressão foi, porém, ineficaz; a abadessa mais política do que Fernando 2º deu-lhes uma festa, e em quanto os Manricos davam provas de que não eram bem cisnes, fugindo do pátio inundado por um aguaceiro, cantava-se lá dentro o miserere do Trovador.
Abstraindo desta pequena contrariedade, as filhas espirituais de S. Bento estão contentes com a abadessa, e posto que antecipadamente se falasse muito na candidatura desta e daquela, chegando-se mesmo a dizer, que uma estava em eminente risco de ser eleitora, sem para isso trabalhar, nem o saber e mesmo sem querer, votou tudo a carga cerrada, como se também lá por dentro houvesse chapéu mágico e lista de chapa.
Deus lhe conceda vida larga para dirigir aquelas ovelhas recolhidas no aprisco do Senhor.»
in O Clamor Público, de 14 de outubro de 1856
«MORA AÍ PARA OS LADOS
«Mora aí para os lados da rua Chã um sapateiro, que é, na frase do vulgo, mesmo o que se chama um larachista, quer dizer, um homem que conta muitos carapetões, que tem muito palavreado, que é o primeiro a rir-se daquilo que diz.
Ao pé dele mora um empregado público, que é casado com uma delambida que faz versos à lua, e não sabe deitar uns fundilhos numas celouras (sic), nem apontar uns coturnos. Ora, o pobre do empregado público, cujo chefe vai para a repartição logo pela manhã, e quer que os empregados entrem infalivelmente às 9 horas, tem muitas ocasiões em que quer ir para a repartição por serem horas, e não tem ainda almoçado(2), porque a cara metade está ainda deitada, sonhando com o sol e as estrelas. Acontece pois que o nosso homem sai sempre de casa com muito mau humor, porque se lembra que o chefe lhe dará algum sabonete se for mais tarde do que o costume.
O mesmo lhe acontece quando sai da repartição, porque então vai meditando o pobre do homem na grande tolice que faz um homem em casar com uma poetisa, que é cousa insuportável, muito mais para um empregado público.
Tanto à ida para a repartição como à vinda, passa ele pela porta do sapateiro, de que falamos no princípio do verídico facto que estamos narrando; e para ser perfeito o contraste, o sapateiro está sempre a rir-se quando o infeliz marido passa cabisbaixo.
Durava isto há muito; mas um destes dias disse o bom do homem de si para si:
- Isto é comigo.
Não me bastam as aflições que tenho; ainda o meu vizinho sapateiro escarnece de mim, rindo quando eu lhe passo pela porta! Mas deixa, que eu te ensinarei.
Foi direito ao regedor, e queixou-se do sapateiro. Este foi intimado e compareceram os dous contendores diante da autoridade, no dia seguinte.
O empregado público formulou a sua acusação, dizendo que vivia muito apoquentado pelas causas que o leitor já sabe, e que de propósito para lhe causar ferro, e atormenta-lo mais, o seu vizinho se ria dele.
- Há de pois dizer-me, exclamou ele com violência e agarrando o sapateiro pela gola do casaco; há-de dizer-me para que se ri quando eu passo em frente da sua loja!
- Sim, sim, respondeu o sapateiro no mesmo tom; há de você também dizer-me porque passa em frente da minha loja, quando eu me riu!
- Muito bem, disse o regedor, dirigindo-se ao empregado público; isso são apreensões suas, e bem se vê que este homem não se ri de V. S.ª mas, como ele diz, e diz muito bem, a questão é passar pela porta dele quando ele se ri. Ora, o remédio, é V. S.ª mudar de caminho quando vai para a sua repartição, e quando sai dela para se dirigir a casa.
Assim se fez. O empregado público mudou de caminho, e o sapateiro continua a rir-se quando tem vontade.»
in Jornal de Noticias de 27 de Junho de 1865(3)
Viriato.
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1. Referência ao Reino das Duas Sicílias (1816-1861) e à vontade da Inglaterra nele intervir, sobre o pretexto do obscurantismo que se vivia nesse estado.
2. O almoço do século XIX corresponde ao nosso pequeno-almoço. Jantava-se à hora do atual almoço, a meio da tarde havia a merenda e à noite a ceia. Isto, é claro, para a pequena parte da população que tinha dinheiro para fazer tantas refeições!
3. Este não é o periódico que todos conhecemos e que ainda existe - fundado em 1888 - mas sim um outro que existiu apenas em 1865 e que está, em parte, na base d' O Primeiro de Janeiro.
OBS: Publicada originalmente noutro blog do autor, em dezembro de 2013
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