Na semana passada tive oportunidade de me deslocar ao Arquivo Distrital do Porto, com objetivo de consultar o livro de fundação do mosteiro das monjas beneditinas e o do convento dos padres Congregados, procurando conhecer como se desenvolveram os espaços dessas instituições, a sua relação com o que os rodeava e também sobre as pré-existências no terreno.
Mas o que vi em dois livros notariais de 1633 que também consultei, fez-me refletir em algo diferente. Com efeito, as capas dessas livros são na verdade partes de documentos mais antigos, em pergaminho, que foram reutilizados para produzir as ditas capas. Ficará o leitor desconhecedor chocado com tal atitude por parte dos tabeliães daqueles tempos; mas acredito que esta prática fosse relativamente comum[1]; tendo aliás surgido em outros arquivos verdadeiros achados na análise de volumes idênticos. Sem prejuízo de, na maior parte dos casos, os cadernos ou livros possuírem uma vulgar capa de couro ou papelão. Nos dois a que tive acesso, com capas feitas a partir de outros documentos, estes parecem ser um antifonário (ver foto) no primeiro e no segundo um documento em latim com uma bela e legível letra de escrita gótica.
Pergunto: quantas verdadeiras preciosidades não estarão nesses documentos, à espera de ressurgir? Quantos pedaços de história perdida, pormenores que por vezes nos possam parecer insignificantes mas que para a (re)construção histórica têm uma grande relevância, se poderão encontrar naquelas encadernações? Os cartórios notariais são vários e os livros que os compõem às centenas; o potencial parece-me grande. É claro que não digo nada de novo... tudo isso é bem conhecido dos investigadores. Mas pergunto, não poderia ser desenvolvido numa universidade portuguesa, uma tese de mestrado ou doutoramento, desenvolvida à volta desta temática?!
Outro componente de história perdida é o das prospeções arqueológicas. Com efeito, conhecendo diversas pessoas da área e verificando as realidades com que as mesmas são por vezes confrontados, ou mesmo pela mera observação mais ou menos externa das situações; dão-me a entender que mais se poderia ter avançado e preservado, no que toca ao território da cidade do Porto.
É sabido que sempre que um particular pretende ir ao subsolo do seu terreno, na zona marcada como de potencial interesse arqueológico, é obrigado a contratar uma empresa que lhe faça o acompanhamento. O problema é que, na maioria dos casos, esse trabalho é considerado de secundário valor. Um empecilho a que a obra progrida rapidamente, atrasando a recuperação do investimento. Como sei o quanto um arqueólogo valoriza um caco, pois este pode ser o último exemplo "vivo" de uma realidade que desapareceu, sempre caio na melancolia quando me coloco a pensar em quantos acompanhamentos foram mal executados, displicentes ou maniatados; pois mesmo aos profissionais da arqueologia não lhes basta a boa vontade e o interesse. eles tem que pagar contas e viver (a competição por adjudicações é outro fator, pois o valor da proposta é o primeiro local da folha para onde o cliente atira os olhos...). Mas nestas situações de obra nem sempre há a possibilidade de parar, sentar, PESQUISAR e verificar concretamente o que ali se tem e como se relaciona/relacionou com o envolvente. É importante ter presente que a miríade de hotéis, hosteis, AL, etc, quando veem o seu solo intervencionado profundamente, secam a área para a arqueologia. Ou seja, ou a equipa pode (e quis) fazer um bom trabalho e era competente, ou daquela área da cidade antiga nunca mais poderemos extrair dados novos sobre o passado.
Mas talvez a obra mais mediática, porque gigantesca, que está a secar arqueologicamente grandes porções da cidade, é a da construção das novas linhas da Metro do Porto, que completamente removeu grandes porções de chão citadino, substituído por betão e terra revolvida. A empresa deveria, a meu ver, no final desta empreitada, produzir um volume sobre a informação arqueológica que tem vindo a acumular desde início do século[2]. Recordemos que mais recentemente as obras obrigaram a recanalizar e subverter quase inteiramente o curso de um ribeiro que ajudou a dar forma à cidade antiga, avó daquela que hoje pisamos. Em suma, o volume seria como que um pagamento em tributo à memória coletiva dos portuenses, registando publicamente - e não em prateleiras de serviços camarários e da própria empresa - tudo o que a implementação deste moderno meio de transporte fez desaparecer.
Concluindo esta reflexão: não basta a história perdida pelo tempo e pelas suas mutações sociais, numa altura em que tal premissa não possuía valor algum. Temo-la hoje também. Isto numa época em que maior legislação parece proteger os vestígios e estudo do passado. Mas é quase só aparente. Afinal, o que é que isso interessa, dirá o cidadão comum. São apenas meia dúzia de pedras mal amanhadas; desmonte-se...[3] ou, no caso dos pergaminhos, uns papeis quaisquer rasurados... Pena é que o tempo de vida de uma geração seja tão curto que não lhe permita tomar melhor consciência deste e de outros aspetos da sua memória coletiva. Talvez dessa forma redobrasse a nossa preocupação com a preservação dos vestígios do passado comum.
Viriato
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1. Os dominicanos do Porto, por exemplo, por mais de uma vez venderam pergaminhos seus, no século XVIII.
2. Sem nos esquecermos que foram também essas obras que nos proporcionaram conhecimento da existência de muitos restos de outras eras!
3. Desmontar estruturas de interesse patrimonial arqueológico e remontá-las em outro local, é retirar-lhe todo o significado, igualando-o a uma qualquer instalação de artista contemporâneo (o caráter incompleto das mesmas ajuda à caricatura). É tudo menos ajudar a pessoa que o vê a perceber o que foi e o que significava a "coisa" que tem à frente.
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