Uma conversa com um amigo deu o mote para tentar descobrir um pouco mais sobre a quase famosa barcaça dos banhos. Refiro-me, como alguns leitores já saberão, àquela estrutura que se vê a meio do rio em algumas imagens do século XIX. E apesar da pesquisa ter sido bastante limitada, encontrei ainda assim informação curiosa; pequenos contributos para melhor conhecermos o Porto do Romantismo.
Esta barcaça remontará a 1852, tendo sido construída em Vila Nova de Gaia por um empreendedor de seu nome João Coelho de Almeida. Do jornal O Comércio de 19 de julho de 1854 colhe-se esta informação, em forma de anúncio:
«BANHOS DO RIO - Acha-se já ao serviço público a Barcaça dos Banhos: as pessoas que forem da cidade pela ponte tem passagem gratuita, quer a pé quer a cavalo - ou mesmo de cadeirinha ou carruagem, etc, e devem comprar na casinha os competentes bilhetes de admissão. Há também naquele estabelecimento banhos de chuva - criado e criada, e os serviços respetivos.»
O que não significa que a barcaça fosse construída apenas naquele ano. Até pela brevidade do anúncio se depreende ser um estabelecimento já conhecido do público. Ela seria armada e desarmada ou pelo menos, permaneceria ancorada, a maior parte do ano; fora da estação quente.
Mas foi em 1861 que a barcaça sofreu uma grande remodelação, em parte motivada pela grande cheia de 1860, em parte pelo abuso que nela se registava, conforme o preciosíssimo texto que abaixo se vai ler nos revela:
«Barcaça dos Banhos
REGULAMENTO ALTERADO
No domingos 18 do corrente principiará outra vez a barcaça a receber as pessoas que queiram tomar banho. Neste estabelecimento foi preciso fazer uma pequena alteração nos preços, porquanto os que se achavam estabelecidos não davam o resultado necessário para que o mesmo se pudesse conservar. Também foi alterado o regulamento para evitar os abusos que se cometiam com a escolha de camarotes pelo preço de 60 réis o banho para cada uma das duas pessoas no mesmo camarote e o de 50 réis para três pessoas também em comum, pois que acontecia frequentemente que algumas pessoas depois de se acharem dentro não queriam que entrassem as que lhe correspondiam, e um tal abuso revertia também em prejuízo daqueles que tinham tomado o bilhete de 80 réis.
aqui vemos a barcaça dos banhos, assinalada com o n.º 1, certamente já na sua segunda versão : com o n.º 2 e por curiosidade, assinalo a sapata onde fixava a estrutura da ponte das barcas, do lado do Porto (na sua equivalente de Vila Nova aguardavam os banhistas pelo transbordo para a barcaça)
Sendo a barcaça construída de madeira de pinho e exposta ao rigor do tempo, flutuando em água doce, e sujeita a sinistros, deteriora-se diariamente, precisando por isso, de reparos anuais para poder durar, o máximo, oito anos para a concorrência anual de dois ou três meses de banhos do rio. Pelos grandes estragos que a extraordinária enchente de dezembro p.p. lhe causou, o primeiro pensamento foi abandona-la; mas a instâncias de algumas pessoas que estavam acostumadas às comodidades deste estabelecimento, e em vista das reflexões que fizeram relavivamento (sic) à qualificação de camarotes e preços, anuiu o seu proprietário a não a abandonar. Para que a barcaça porém pudesse continuar a dar banhos com toda a comodidade e segurança, foi indispensável reconstruí-la desde a quilha até ao convés, e até fazer-lhe costado fixo, assim como se fez de novo com mais solidez todo o pavimento e armação exterior dos banhos, pelo que ficou muito melhor do que na sua origem. Há ainda algumas obras a fazer, as quais contudo não estorvam o tomar-se banhos com comodidade e segurança.
Portanto, para a receita provável equivaler à grande despesa da sua reconstrução, juro, amortização, e reparos anuais, foi necessário elevar os preços de 80 a 100 réis para os oito superiores camarotes de proa, e os de 50 e 60 a 70 réis para os oito camarotes de popa. O novo regulamento interno é o que se segue, e se acha também patente no mencionado estabelecimento.»
E agora, caro leitor, se o texto que acabou de ler é já precioso, convido-o a ler o regulamento 'reformado' deste estabelecimento, para se deleitar ainda mais com os preciosos apontamentos que ele nos dá para o Porto do romantismo:
«Artigo 1.º A barcaça dos banhos é uma propriedade particular, que para a segurança e comodidade dos banhos no rio Douro, e se poderem tomar com toda a liberdade, recato e decência, livre de todo o perigo, e na altura de água que aprouver, até sentado, ao abrigo de toda e qualquer influência do tempo; - se oferece à utilidade pública mediante a observância do presente regulamento.
Artigo 2.º O respeito para com as leis da seriedade e da decência é a primeira condição, que se exige das pessoas que quiserem utilizar-se deste estabelecimento. Qualquer excesso, qualquer ato de grosseria ou culposa indiscrição, será um motivo para não ser mais admitido quem o praticar. Sendo o facto de maior gravidade, dar-se-há parte à autoridade competente.
Art. 3.º A qualquer hora do dia serão admitidas todas as pessoas a tomar banho, uma vez que se apresentem decentemente vestidas - segundo o seu estado. De noute não é permitido toma-los.
Art. 4.º A galeria de camarotes e casa de banho do lado da cidade, é destinada para os homens; do lado da vila para as senhoras.
Art. 5.º Dando-se as circunstâncias de afluírem excessivamente os concorrentes a um dos lados, e faltarem ou escassearem os do outro, - só então poderão ser ocupados, independentemente da distinção do artigo antecedente, os camarotes que do lado oposto se acharem vazios. Nesse caso, porém, escolher-se-hão sempre os camarotes que ficarem mais remotos das pessoas de diferente sexo, que desse lado tomarem banho, e que só em camarotes distintos e separados o poderão tomar.
Art. 6.º Só os chefes de família ou a quem os represente, será permitido acompanharem ao camarote do banho as senhoras ou meninas da sua família. Quando porém eles mesmos queiram tomar banho, terão de sujeitar-se ao disposto nos artigos 4.º e 5.º deste regulamento. - Excetua-se unicamente no que diz respeito às pessoas de diferente sexo, as crianças de menor idade.
Art. 7.º Os camarotes e casas de banhos tendo a capacidade além de três pessoas, de hoje em diante se estabelece, por reforma, os seguintes preços: Os banhos tomados em qualquer dos oito superiores camarotes do meio da barcaça para a proa são a 100 réis por cada uma pessoa na conformidade do artigo 11. Os banhos tomados em qualquer dos camarotes do meio da barcaça para a popa são a 70 réis por cada uma pessoa, igualmente na conformidade do artigo 11.
Art. 8.º As pessoas que tomarem banhos continuados, deverão levar lençóis, a cargo da administração está o tomar conta deles e enxuga-los. Pelos números com que devem ser marcados, é que serão conhecidos e se poderão pedir.
Art. 9.º Para banhos extraordinários prestará lençóis o estabelecimento, mediante a gratificação de 20 reis ao empregado, a quem compete te-los.
Art. 10.º Um barco, que por conta do estabelecimento, se achará na lingueta da extinta ponte de barcas do lado de Vila Nova, dali conduzirá as pessoas para a barcaça e desta para a lingueta.
Art. 11.º As pessoas que concorrerem da cidade e quiserem ir pela ponte, terão na casinha de se munirem dos respetivos bilhetes de banho, quer para uma só pessoa, quer para mais no mesmo camarote. - Estes bilhetes servir-lhes-hão não só de título para o banho, mas também para lhes ser franqueada a passagem de ida e volta pela ponte, quer a pé quer a cavalo, ou em outro qualquer transporte. Às pessoas que não forem pela ponte não se lhe faz preciso bilhete, na barcaça é que têm de satisfazer o preço do banho que escolherem.
Porto 5 de agosto de 1861
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N.B. Roupa de banho propriamente chamada, não se faz necessária; contudo aceita-se. No estabelecimento está também diariamente uma criada para servir as senhoras em algum caso extraordinário.»
in O Comércio do Porto de 16.08.1861
Ora diga-me caro leitor, se o próprio regulamento, por norma uma peça de escrita aborrecida que toda a gente lê a correr, não é, neste caso, uma preciosidade? Para rematar este pequeno estudo, convido-vos ainda a ler duas quadras de um poema de Faustino Xavier de Novais, publicado em 1881 na antologia Novas Poesias, originalmente publicado, anos antes, num jornal portuense:
«Neptuno, dos meus filhos o mais fresco,
Pelo gosto que tem, de andar sobre água,
Desejou vir, aqui, ser almirante;
Mais sabendo, mais tarde, que a marinha
Em droga há muito deu, cá nestes reinos;
Que a barcaça dos Banhos, sobre o Douro,
É o vaso melhor da lusa esquadra (...)»
Quem quiser ficar a conhecer um pouco mais sobre este tipo de negócio, que teve bem mais representação em Lisboa, poderá ler este interessante post do blog Lisboa de antigamente.
Viriato
ӽӽӽ
NOTA: Esta publicação não é nova, remonta a 9 de maio de 2020, de um blog que perdi.
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