Já ouvira há tempos falar deste mecanismo que esteve instalado no topo da Torre dos Clérigos, sobretudo dos escritos arquivados nas mais antigas páginas d' O Tripeiro por quem ainda dela se lembravam. Pela meridiana acertaram os portuenses durante algumas décadas os seus relógios. Depois de subsistir na torre durante largos anos, esteve a engenhoca instalada na casa mais alta (qual?) da rua 31 de Janeiro, onde ainda existiu durante pouco mais de um ano.
Nos artigos que consultei n' O Tripeiro não recolhi qualquer referência à data em que havia sido instalada, por isso foi com grande alegria que descobri o texto escrito pelo próprio autor do automatismo no jornal O Nacional, datado de maio de 1846 mas apenas publicado em Julho. Ainda nesse mês, no dia 13, o presidente da Comissão Municipal, José Passos juntamente com Filipe José de Almeida, Martins dos Santos e Ribeiro Pereira ali se deslocaram em vistoria.
Eis então o relato sobre o funcionamento do mecanismo, pelo punho do seu autor:
«Sr. Redator, - Nem tudo será eivado do frenesi do século, nem tudo será política no nosso reino. Nesse vórtice imenso em que giramos, onde mais vezes se batem as paixões que os interesses do país, também alguma cousa há-de surgir de verdadeira utilidade. O Porto acaba de fazer uma aquisição desta espécie, e por fortuna minha coube-me a mim o seu desempenho. Aí tem ele uma meridiana sonante, aí tem ele portanto satisfeita uma das suas grandes necessidades.
A simples meridiana é uma máquina demasiado compreensível e de fácil obra, mas não assim se este instrumento se encarrega de transmitir a hora que marca para um ponto longínquo por meio do toque de sinos. A meridiana que hoje tem o Porto pratica isto.
Acha-se ela colocada no magnífico e a todos os respeitos muito apropriado edifício da torre dos Clérigos, e a seguinte é a descrição abreviada do seu maquinismo e efeitos.
Passando o sol pela linha norte-sul da cidade (segundo a frase ainda hoje recebida) um de oito delgados cordões feitos de quatro fios de retrós preto, que se acha na mesma linha, se queima quando ferido pelo foco de uma lente, e imediatamente pelos espaço de quase dous minutos, se faz ouvir um repique em muitos sinos, e a detonação de um morteiro. Isto se passa na altura de 52 metros, ou pouco mais ou menos 235 palmos acima da base da torre, e portanto dá aviso à maior parte da cidade de quando é o seu verdadeiro meio-dia, e convida a todos para que regulem os seus relógios talvez duzentas e tantas vezes por ano que tantos são os dias presumíveis em que a atmosfera do Porto deixa ver a face do sol, devendo ao mesmo tempo fazer-se uso das tábuas de equação, que muito bom seria, Sr. Redator, se um qualquer periódico nos desse a sua publicação de futuro para mais comodidade dos habitantes.
Não obstante estar a meridiana colocada fora da torre: e distante da máquina que tange os sinos, cousa de 50 palmos [11m], e esta afastada deles uns 102 [22,44m], o que tornou um pouco difícil a comunicação deste lado; tudo se venceu, e uma vez truncado o cordão que se expôs à ação dos raios solares convergidos pela lente, os sinos tocam, ecoa o morteiro, e a peça que contem os 8 cordões foge da sua posição, para depois de dar tempo à deslocalização do foco, vir oferecer, por um outro movimento que faz sobre o seu eixo, um novo cordão que no outro dia há-de repetir esta mesma cena. E porque são 8 os cordões, e 8 também os dias de corda que aquela máquina tem, só depois de sectionado [sic] o ultimo cordão, é que é preciso refazê-la de novos cordões, e de nova corda que é necessário dar-lhe.
Se alguma meridiana semelhante a esta existe na Europa ou na América, eu não tenho disso conhecimento, e se as leis da mecânica não fossem circunscritas a certos respeitos, e por isso mais fáceis de se repetirem os seus resultados do que é possível renovarem-se as figuras do Caleidoscópio, eu não teria dúvida em sustentar que de certo outra meridiana igual não há, por isso que ela é de minha pura invenção, e execução no mais delicado de suas partes. E ainda me lisonjeio, que tão feliz fui em suas combinações, que nenhuma me falhou, e não tive que perder uma única peça, salvo as que enjeitei por menos consistentes, e ainda algumas outros em consequência do novo acordo tomado para serem tangidos mais sinos, e não um só.
Convencido como estou de que a minha obra é de inquestionável utilidade, não quererei para mim o exclusivo dos ganhos que daí possam provir; e por isso direi que o Porto a deve à Exma. Câmara Municipal que a mandou fazer, aos seus comissionados, os Ilmos. Srs. António Alves de Sousa Guimarães, e Manuel Joaquim Gomes Guimarães que comigo trataram; a S. Ex.ª o Sr. bispo da diocese, aos Ilmos mesários da Irmandade dos Clérigos e seu secretário o Ilmo. Sr. D. Francisco da Piedade Silveira, que prestaram o edifício, e finalmente aos meus amigos os Ilmos. Srs. Francisco Joaquim da Silva Natividade, João Vieira Pinto, Luís Ferreira de Sousa Cruz, que particularmente me prestaram todo o auxílio de que careci para a levar a cabo, e outras mais pessoas que muito me obsequiaram, e que por não ser minimamente prolixo deixo de mencionar, e a quem peço desculpa, e agradeço.
Sou, Sr. Redator, de V. muito atento venerador e criado,
Veríssimo Alves Pereira - Porto 10 de Maio de 1846»
Os portuenses que este aparelho conheceram e eram ainda vivos em 1908, escreveram nas páginas d' O Tripeiro várias notas das quais destaco uma extraída da correspondência de F (ano 1, p. 176):
«... a tal meridiana, era um morteiro, carregado com pólvora grossa, chamada de pedreira, por ser da tal que servia para carregar os tiros abertos por meio de broca nas pedreiras, e que cheirava mal a três quilómetros de distância, e próximo desse morteiro estava colocado um pequeno aparelho com uma lente cujos raios à hora do meio-dia convergiam para o rastilho que estava à entrada do ouvido do morteiro, inflamavam a pólvora dele, e zás... pum-um-um! Toda a gente que trazia relógio no bolso, puxava por ele, não para saber se era meio-dia, que anunciava o tal pum!, mas para ver se os jornais que traziam a equação do tempo, prevenindo do minuto ou segundos em que o morteiro fazia pum, antes ou depois do meio-dia verdadeiro, falavam certo.
Escusado será dizer que nos dias em que não havia sol a descoberto, não havia meio-dia. Três, quatro, ou mais dias de chuva ou de névoa, como acontece durante o inverno, e a respeito do meio-dia... nicles!
Ora como o tal pum ao meio-dia fazia estremecer as pedras da tal varanda onde colocavam os tais paus com os sacos de café (salvo seja) e ia-as desconjuntando pouco a pouco, resolveu quem disso tratava, suprimir o ta pum! com grave desgosto para os pedreiros e carpinteiros principalmente, que tinham grande simpatia pelos relógios de sol, que só regulavam quando havia sol, mas que eles colocavam sobre uma pedra, para quando desse o tiro na Torre dos Clérigos, irem ver se estavam certos!...»
Quanto à observação sobre os paus e o sacos de café, essa será desenvolvida na publicação seguinte. Acreditem que é deveras interessante para sabermos mais um pouco de como se regulava o mundo do século XIX com os seus sucessivos avanços tecnológicos, mas ainda com bastantes limitações!
Viriato
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Originalmente publicada em 07.02.2017 no blog denominado A Porta Nobre.
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