Se é verdade que a garagem de O Comércio do Porto foi a primeira grande garagem da nossa cidade, como bem afirma o ilustre arqueólogo e divulgador da história e património, Joel Cleto; ainda assim e sendo a sua construção do início da década de 1930, não foi certamente pioneira. De facto, quando ela surge o automóvel tinha já um importante e crescente peso na sociedade da época, ao ponto de se justificar a existência de um aparcamento daquela magnitude. Mas nesta publicação, que já andava há anos bons em ideia, trago-vos um pequeno apontamento sobre aquela que poderá ter sido a primeira garagem existente na cidade, que começava a dar os primeiros passos na moderna vida automobilística sem a qual não conseguimos hoje conceber o nosso mundo.
É o caso que, em outubro de 1907, a recentemente constituída sociedade cooperativa Automotora do Porto entrava na câmara com um requerimento para a construção de uma «garage para automóveis, em um terreno situado entre as ruas Duquesa de Bragança e Malmerandas». Aprovado em dezembro, desde logo se terá dado início à sua construção num terreno entre duas ruas, hoje com os nomes de D. João IV e Dr. Alves da Veiga (o terreno era propriedade dos vizinhos da frente, na rua D. João IV). Lendo a descrição constante do projeto submetido à câmara em 1907, tiram-se curiosos apontamentos sobre a construção original, da qual, aparentemente, tudo o que subsiste se reduz às fachadas.
O edifício tem, pelo lado da rua D. João IV, 29,20m de largo e em Alves da Veiga 26,75m. O seu comprimento total é de 90m a norte e 85m a sul, formando por isso um ligeiro trapézio. Na origem, tal como hoje, todo ele seria coberto. A entrada principal situava-se nesta mesma rua, onde existia a garagem e uma «exibição de automóveis e acessórios de automobilismo». No lado oposto estacionariam as «várias oficinas para pequenas reparações de carros», com um andar superior a elas para o «escritório e outras dependências da sociedade e vários gabinetes de toillete que são indispensáveis para a limpeza das pessoas que chegam à garagem, sujos de pó». As fachadas não eram portanto idênticas, uma vez que em Alves da Veiga teria o tal andar ao centro, suportado por colunas de ferro, num comprimento de 22m e largura 9,50m.
esta foto mostra-nos com algum grau de certeza a garagem e foi tirada num momento em que desempenhou outra função que não a sua habitual (seria para o evento do Futebol Clube do Porto que ali teve lugar em novembro de 1908?) . a imagem é do A.M.P. (ver aqui)
Erguido já no mais moderno cimento e com um pé direito de 6,5m, a estrutura era coberta por telha, em 3 cumes, com lanternins equipados com persianas que podiam ser erguidas, para arejamento. As colunas de ferro que suportavam a cobertura tinha 6 metros de altura. O chão era em betonilha na parte em que os automóveis parassem e em calçada à portuguesa na zona onde os mesmos eram lavados e consertados. A oficina, equipada para efetuar reparos de carpintaria, serralharia e pintura, era isolada em tijolo e ficava no ângulo sudoeste da garagem, entre a rua Dr. Alves da Veiga e a escada de comunicação para os escritórios no andar de cima, cujas divisórias seriam construídas de «tabique dobrado coberto a cal»
segunda imagem do A.M.P. da garagem (aqui), tirada para o lado oposto
Estes apontamentos, embora curtos, não deixam de nos transmitir pequenas frestas de história neles próprios. É o caso da referência ao pó com que os automobilistas forçosamente trariam consigo, provável consequência das estradas em macadam e terra batida então existentes. Igualmente as referências a oficinas de carpinteiro e serralheiro deixam antever a ainda imberbe tecnologia das carroçarias dos automóveis, indústria que nas primeiras décadas do século passado estava a dar os seus primeiros passos rumo à massificação. Curioso é igualmente notar que, embora as fachadas fossem construídas em cimento e nas oficinas se usasse o tijolo (de que tipo?); a compartimentação do primeiro andar se processava pelo velhinho tabique, que ainda hoje muito vemos por aí em edifícios velhos degradados ou em pequenas parcelas recuperadas, como motivo decorativo.
Importa também referir que as imagens acima estão indicadas, no AHMP, como mostrando o mercado Ferreira Borges. Mas creio que saltará à vista que tal é impossível. Ainda que não se possa inequivocamente afirmar que se trata da Garagem Automotora do Porto, tudo aponta para que assim seja.
Finalizo deixando-vos uma ligação para o projeto original da garagem (aqui), bem como uma imagem do edifício na atualidade; aliás ainda utilizado na finalidade para a qual foi construído!
entrada pela rua Alves da Veiga - antes Malmerendas - em 2015
Esta publicação foi originalmente colocada no meu antigo blogue A Porta Nobre, em 16.06.2020. À época, as imagens do Arquivo Municipal do Porto ainda se encontravam classificadas como sendo do mercado Ferreira Borges. Recordo, pouco tempo após a publicação, as referidas imagens terem tido a sua legenda retificada (ao que foi informado através de um comentário na publicação, por responsável do mesmo). Mais recentemente tive oportunidade de ver uma imagem do mercado Ferreira Borges da mesma época, onde fica definitivamente claro este ponto. Ela encontra-se neste site do Dr. Manuel Martins Ferreira.
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