Conforme prometido na publicação anterior sobre a Meridiana, coloco aqui algumas palavras que portuenses de há um século atrás (1908) nos arquivaram nas páginas d' O Tripeiro sobre um outro mecanismo, também ele dependente da Torre dos Clérigos. Tudo começou com uma pergunta colocada por um leitor no n.º 10 deste secular periódico que diz: «Possuo uma gravura antiga onde se vê a Torre dos Clérigos com dois sacos de café, salvo seja, pendurados fora da varanda superior, como indicadores de qualquer coisa. Em pequenito ouvi dizer que estava instalada uma meridiana na Torre.» Ora, em relação à Meridiana tem só o leitor atual que reler a publicação anterior; por agora pretendo dar a conhecer as respostas oferecidas a este leitor de há cem anos atrás, para que também nós cem anos depois possamos ler o testemunho de quem ainda conheceu o tema. Para isso recolho parte de três respostas que surgem no número imediatamente a seguir ao da pergunta n' O Tripeiro:
1.ª) «Não eram sacos de café o que o Sr. B. S. vê na antiga gravura que possui, representando a Torre dos Clérigos. Eram bandeiras, como poderiam ser balões de folha de flandres, ou de zinco pintado. Eu explico: Até 1856, pouco mais ou menos, o único meio de transporte para a correspondência do Porto com a Grã-Bretanha, eram os paquetes da companhia inglesa P. & O. (Peninsular and Oriental), que apareciam à vista da nossa barra de quinze em quinze dias. Os vapores, naquela época, eram de pequenas dimensões e pouca força, comparados com os que se empregam atualmente na navegação transatlântica; por isso, não se podendo contar, senão aproximadamente, com o dia e hora da chegada, e para obtemperar às conveniências do comércio, que tinha interesse em receber a correspondência no dia da chegada, foi combinado, entre a direção da Associação Comercial e o diretor do correio, com consentimento da Irmandade dos Clérigos que, logo que, pelo telegrafo comercial, houvesse noticia de estar à vista o paquete, fosse colocado um sinal na Torre dos Clérigos, que era avistada de quase todos os pontos da cidade, avisando os comerciantes para mandarem buscar a correspondência ao correio, que era então no extinto convento das Carmelitas [...].
O Iberia de 1836, um dos primeiros paquetes da P&O, que regularmente paravam na barra do Douro
Aquele sinal consistia, para os dias de bom tempo, em duas bandeiras com as cores da Companhia P. & O. pendentes de um travessão de cada lado (norte e sul) do varandim superior da Torre; e, para os dias de chuva, em dois balões de lata, pintados com as mesmas cores.
Os caixeiros, a quem competia o serviço de ir ao correio esperar pela distribuição da correspondência para a levarem a casa dos patrões, tinham ordem de estar atentos à colocação do sinal, nas proximidades da chegada dos paquetes, que principalmente de inverno, demoravam um ou mais dias, o que os fazia arreliar, porque os privava de algumas horas de descanso ou de recreio.
Os paquetes, apesar de pequenos, não podiam entrar a barra do Porto; por isso havia uma catraia do sota-piloto Manuel Francisco, encarregada de ir fora da barra levar e receber as malas de correspondência e alguns passageiros, que houvessem de embarcar ou desembarcar e que, naquele tempo, eram raros: pois com o mar agitado era muito arriscada a entrada ou saída da catraia.
Muitas vezes sucedia a catraia entrar ao fim da tarde, obrigando os empregados do correio a irem fazer a separação de noite, serviço esse que algumas vezes levava até às 10 ou 11 horas».
De facto nos vários jornais que já tive a oportunidade de consultar na BPMP muitas vezes se vê uma pequena notícia referindo a passagem do paquete e em algumas delas este nem parava porque o tempo estava mau. Tempos muito diferentes dos que hoje vivemos...
Segue-se:
2.ª) «O que o Sr. B.S. julga ser dois sacos de café, não o são, pois que nessa época a Cristina, da Cancela Velha, era a única que tinha o monopólio do saboroso e aromático produto, não tendo como rival o café da Brasileira, e por essa razão não precisava de réclame para chamar a freguesia ao seu estabelecimento bem conhecido na cidade e até nas províncias.
São, sim, dois sinais com bandeiras, indicando a entrada ou o estar para entrar vapor ou, como hoje se diz, paquete trazendo correio.»
E para finalizar:
3.ª) «(...) Os tais dois sacos de café, salvo seja, que era costume exibirem-se às vistas do público, já então respeitável, dependurados nas extremidades de duas pequenas varas, ou paus, colocadas horizontalmente na última varanda da Torre dos Clérigos, serviam para anunciar que era dia de paquete, isto é, para prevenir quem tivesse de mandar correspondência pelo paquete para o estrangeiro, principalmente para o Brasil, que devia entrega-la nesse dia no Correio Geral, que então era no largo do Correio.»
Como se vê, esta última resposta e a primeira não são propriamente coincidentes. Haverá alguma que fuja à verdade? Ou simplesmente reportar-se-ão a épocas diferentes? A partilha do conhecimento é uma virtude da qual espero que o leitor sabedor esteja investido.
Viriato
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NOTA: Publicada originalmente em 14.02.2017 e agora ligeiramente revista.
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