Desta vez retomo as publicações sobre o convento de S. Domingos do Porto já elaboradas anteriormente, que se encontravam alojadas no seu antigo e específico blog.
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Instalados que estavam os frades de S. Domingos junto do pequeno burgo do Porto e iniciadas as obras de construção/adaptação das casas e igreja cedidas pelo bispo, seria de esperar que esta nova casa florescesse no ministério para a qual se criara. Contudo cedo, muito cedo, ainda durante aquele ano, foram os frades envolvidos em querelas com o clero local tal como os franciscanos que já sofriam a ira daqueles prelados desde pelo menos o ano anterior[1]. Quer para uma quer para a outra ordem mendicante serve bem as explicações que frei Manuel da Esperança e frei Luís de Cacegas/Sousa dão nas suas respetivas crónicas. No entanto opto aqui pelas palavras do dominicano do séc. XVIII que escreveu o livro de Foral do seu convento:
Pelos anos de 1238 pouco mais, ou menos vendo o cabido desta cidade, a muita devoção, que os moradores dela, que naquele tempo eram todos fregueses da Sé, tinham aos religiosos deste convento, de sorte, que desamparando a sua paroquial todos se queriam sepultar no nosso convento concorrendo a esta igreja com suas obradas e esmolas, e que estes interesses lhes faltavam lá na sua catedral, começaram a inquietar os religiosos com tanta paixão, que fazendo grandes queixas ao bispo D. Pedro Salvador, este insuflado pelo cabido começou a proceder contra os religiosos com tanta tirania, que logo lhes proíbiu o pregar, e confessar, e dizerem missa, embargando-lhes as obras da igreja, e convento, pondo excomunhão a todos os que trabalhassem nelas, revogando todas as doações feitas ao convento, anulando também todas as compras, que os religiosos tinham pago metendo-se de posse de algumas propriedades, que já possuía o convento, enfim buscando todos os meios com que mais molestasse aos religiosos até que desesperados deixassem esta cidade, e todo o seu bispado, querendo assim lançar fora de si, e seu bispado aos mesmos, que com tanto zelo, e instância tão honradamente chamou para a sua companhia...
Ainda em 1238 os dominicanos remetem uma missiva para Roma, dando conhecimento da situação e pedindo expedita resolução. Gregório IX reagiu enviando um breve ao arcebispo, deão e chantre da arquidiocese de Braga para que, como mediador, colocasse um ponto final na situação. Apenas quando este fez ver a D. Pedro Salvadores que teria de fazer o que o Papa ordenava é que foram enviados junto dele os seus representantes, alcançando-se finalmente um acordo[2].
Mas também o rei D. Sancho II quis ajudar os frades. Em janeiro de 1239 passou um documento onde refere que mandava fazer o convento em prol da sua alma, recebendo-o por isso debaixo do seu amparo, onde estipulava igualmente as sanções a quem de alguma forma prejudicasse os frades e/ou os seus criados/operários. Este diploma, estou em crer, insere-se na intensa disputa existente entre a Mitra e a Coroa sobre qual era o verdadeiro término do couto que D. Teresa doara ao Bispo do Porto em 1120. Disputa essa que, se adormecida durante o reinado de D. Afonso II, não estava de todo extinta, pelo contrário, vai-se prolongar bem para lá da época que aqui nos interessa! É que, quer franciscanos, quer dominicanos, pretendiam instalar-se (como efetivamente aconteceu) numa área entre o rio da Vila e o rio Frio, terreno disputado por ambos os poderes[3].
A travessa da Bainharia é o único resquício que nos ficou da rua da ponte de S. Domingos, que remontava ao início do século XVI. Atravessando essa mesma ponte (sensivelmente onde na foto se vê o tuktuk), subia-se a ladeira chegando no seu topo ao convento dominicano. No século XIII, este caminho para Miragaia, ainda uma rural azinhaga, fez com toda a certeza parte do calvário dominicano de indas e vindas à Sé, na tentativa de solucionar os problemas que o seu suposto protetor lhes havia criado...
Mas foi a doação da rainha D. Mafalda[4] em junho de 1239 de uma importante igreja que lhe pertencia, que fez com que o senhor do Porto acalmasse os ânimos em relação aos dominicanos. Com essa doação - igreja de Santa Cruz de Riba Leça, hoje de Santa Cruz do Bispo - vieram todas as suas posses e rendimentos. O motivo é precisamente «in recompensationem graviminis, si in aliquo ex praedicatorum Fratrum commorantione Ecclesia Portugallensis fuerit aggravata»; ou seja, para que o bispo e restantes cúria episcopal não ficassem sem os seus rendimentos garantidos[5].
Depois de sanadas as divergências que acima resumi, poderemos dizer que em 1241 se aquietaram finalmente os frades no sítio que o bispo lhes cedera. Quanto a D. Pedro Salvadores, ainda que tenha passado à história como perseguidor quer dos dominicanos quer sobretudo dos franciscanos; é notável que tivesse, em testamento, nomeado para executor das suas últimas vontades o prior dos Pregadores e fr. Gualter (franciscano?). Este prelado morreu em 1247, não sem dois anos antes ter feito doação ao convento de duas fontes suas que nasciam nas hortas da Cividade (onde mais tarde foi erguido o convento de S. Bento das Freiras e depois a estação de S. Bento), conforme descreve o frade anónimo do livro do Foral de 1728:
...no ano de 1245 também nos deu duas fontes das quais uma nasce nas hortas, que hoje são das freiras de S. Bento ... que chamam da Samaritana, e a outra nasce de baixo do coro das ditas religiosas, da qual temos a área entre o primeiro, e segundo botaréu, que está da sua portaria até às escadas da entrada da igreja, cuja doação nos confirmou o Sr. bispo D. Vicente seu sucessor, no ano de 1293...
E agora sim, na próxima publicação vamos embrenhar-nos no latim medieval dos contratos notariais! Prometo que será apresentado em "doses" suaves.[6]
Viriato
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1 - As primeiras bulas de censura enviadas pelo papa Gregório IX - uma ao Bispo a outra ao Cabido - datam de 25 de maio e 23 de junho de 1237 respetivamente. Embora a primeira carta que o mesmo papa enviara ao bispo do Porto D. Martinho Rodrigues(†1235) datasse de 20 de maio de 1233, não é certo que os franciscanos se tenham instalado logo nesse ano.
2- Provavelmente estes desenvolvimentos deram-se já em 1239, não obstante o Breve papal datar de setembro de 1238.
3- Corresponde aproximadamente ao terreno compreendido entre a rua Mouzinho da Silveira e a igreja de S. Pedro de Miragaia. O rio da Vila formava-se de dois pequenos riachos que se uniam em frente aos Congregados e rio Frio nasce no Carregal, vindo ao Douro pelo vale das Virtudes.
4 - D. Mafalda, filha de D. Sancho I e tia de D. Sancho II, tinha o título de rainha por ter sido rainha de Castela, ainda que por um pequeno período de tempo, antes de ser repudiada pelo marido. Voltou a Portugal dando entrada no mosteiro cisterciense de Arouca, onde jaz.
5 - Após esta doação, entre os anos de 1239 e 1247, vários particulares com bens adstritos à mesma igreja foram passando as suas propriedades para a mão da sede portuense. Pelo menos até 1241 os motivos das doações são, em várias: «ob gratiam Fratrum Predicatorum» e numa «ad preces fratrum predicatorum».
6 - Frase que faz agora apenas meio sentido, mas era adequada aquando da publicação original (28/11/2018).
Bibliografia: Scriptores et Notatores - produção documental da Sé do Porto 1113-1247, da Dr.ª Maria João Oliveira e Silva.
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