Sob o título Nas linhas das Carris - Descarrilamento de um comboio, surge num periódico portuense hoje esquecido, a notícia de um acidente com a chamada "máquina"; meio de transporte público pertencente à Companhia Carris de Ferro do Porto e utilizado na linha para Matosinhos (via Boavista), de 1878 até 1914. Foi em certa medida um percursor do atual metro portuense[1], pois que consistia numa pequena locomotiva a vapor que rebocava, por norma, três carros dos chamados americanos. A companhia teve vários destes veículos a operar a sua linha da Boavista a Matosinhos; com um primeiro e principal lote de máquinas adquiridas à firma Henschel (mas não só...). A locomotiva acidentada foi a n.º 4, que chegou a ser fotografada em serviço. Abaixo transcrevo boa parte da notícia referida:
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O DESASTRE
Eram 6 horas e 40 minutos da manhã, quando a máquina n.º 4 da Companhia Carris de Ferro, partiu da paragem do Pinheiro Manso rebocando os carros números 6, 44 e 10. Esse comboio partira de Matosinhos às 6 horas e 15 minutos e devia chegar à estação da Boavista às 6 e 50 da manhã.
O comboio trazia muitos passageiros, na maior parte operários que se dirigiam às oficinas. Guiava o comboio o maquinista António Alves[2], por alcunha "O Cardoso", casado de 30 anos, residente na casa n.º 2 da ilha 152 da rua Visconde de Setúbal, que trazia como fogueiro um rapaz de nome João Teixeira, solteiro, morador na rua de Agramonte. Na máquina vinha também um rapazito de 12 anos, de nome Domingos Leite, filho do maquinista Jacinto Leite, que se dirigia para o trabalho[3]. Nos outros carros vinham os condutores n.º 46, José Manuel dos Santos, 105, José Gonçalves e 55, Henrique Pinto e o guarda-freio n.º 46, Manuel Gomes.
A 100 metros, pouco mais ou menos, da paragem do Pinheiro Manso, em frente à fábrica de José Maria Paiva, a linha ascendente, por onde vinha o comboio, não estava bastante sólida, em virtude de um buraco enorme que ali existe junto do «rail» exterior. Esse buraco no solo, segundo nos informaram, já ali existe há muitos dias e é devido a ter aluido um cano que por ali passa. Os maquinistas estavam prevenidos de que deviam afrouxar a marcha naquele local, mas como único sinal preventivo havia apenas uma lanterna suspensa de um pequeno pau.
O comboio, ao chegar àquele ponto, deu um enorme solavanco e descarrilou. A máquina tomou logo nova direção e arrastando os atrelados foi de encontro a um dos «rails» da linha descendente encurvando-o. Isso obrigou a máquina a voltar para baixo fazendo tombar logo o primeiro carro, que ia cheio de passageiros. A locomotiva voltou também para o lado da valeta, colhendo nessa ocasião o infeliz maquinista que ficou com o crânio esmigalhado sob a face lateral e superior da máquina e o braço fraturado sobre os varões de ferro.
Apenas os carros saltaram fora dos «rails», um pavor enorme se apoderou de toda aquela gente que vinha no comboio. Muitos passageiros procuraram saltar abaixo dos carros, entre os gritos aflitivos das mulheres e dos espetadores de tão horrivel cena. Todos viam que em breve a máquina galgaria um pequeno muro e se despenhava para o campo do Bessa, conhecido pelo lugar da Ribeira do Antunes, cujo nível fica inferior à rua cerca de 15 metros, arrastando os carros do comboio.
Imediatamente se juntou muita gente, pois que era a hora de entrada para as fábricas, comentando cada pessoa o caso a seu modo. Compareceu também logo o cabo Fernandes n.º 272 da 8.ª esquadra policial, que tomou conta da ocorrência, participando-a para o comissariado.
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OS SOCORROS
Logo que se deu o desastre levantou-se uma enorme confusão. As mulheres gritavam e pediam socorro, os homens corriam para o comboio a prestarem os seus serviços. O desespero de todos era enorme e indescritível. A máquina partira-se em vários pontos. A alavanca, as válvulas partiram-se também deixando sair jorros de água a ferver enquanto o vapor sibilava no ar. Da estação da Boavista partiu logo o sr. José Barros, chefe do movimento, com o pessoal de socorro e de via e obras, para prestar os socorros aos feridos que gemiam e se lamentavam alguns ainda dentro dos carros, uns com os dentes quebrados e jorrando sangue da boca, outros com escoriações ou lesões de maior ou menor importância.
Os primeiros socorridos foram o fogueiro João Teixeira e o rapazito Domingos Leite, que estavam na máquina recebendo os jorros de água a ferver em contorções horrorosas e que ficaram muito queimados. Com as alavancas necessárias tratou-se de levantar a locomotiva para retirar o corpo do infeliz maquinista que ficou num estado horroroso. Esse trabalho levou cerca de 20 minutos, sendo depois o cadáver metido numa máquina até à Boavista, onde depois de colocado num carro elétrico, foi levado ao Hospital Geral de Santo António, onde o sr. dr. Alberto Ribeiro verificou o óbito. O cadáver foi depois removido no mesmo carro para a casa mortuária do cemitério de Agramonte[4]. Os outros feridos também foram transportados em carros elétricos ao Hospital da Misericórdia, onde depois de socorridos pelo sr. dr. Alberto Ribeiro, uns recolheram a suas casas e outros às enfermarias do hospital.»
A notícia segue falando dos feridos. Os mais agravados eram o fogueiro João Teixeira com graves queimaduras nas costas e nos pés e Domingos Leite, também com queimaduras graves; ambos ocupantes da locomotiva. Feridos ficaram também o serralheiro da Companhia Carris, Martinho Pedro Ferreira (da Senhora da Luz); Manuel Inácio Allen, carpinteiro (da Foz). Todos estes ficaram internados. Os que logo tiveram alta foram Miguel Batista, carpinteiro (do Monte do Castro); Cesário Cunha, serralheiro (da Foz), Manuel Carvalho, picheleiro (Gondarém), Maria Dias, vendedeira (Perafita). Ficou também levemente ferido o condutor n.º 46, José Manuel dos Santos. Alguns dos feridos apresentaram-se posteriormente na sede da Companhia Carris de Ferro do Porto, solicitando passagem gratuita nos carros durante os dias que fossem receber curativos ao hospital, o que logo foi concedido pelo administrador delegado, sr. Tomás Joaquim Dias.
A locomotiva ficou completamente inutilizada, segundo o jornal, com «a chaminé toda partida bem como as manivelas e válvulas; os eixos todos desconjuntados, os rodados e os eixos torcidos, o tejadilho quebrado, etc.». O carro nº 6, o mais chegado à locomotiva, ficou também completamente inutilizado, com «as plataformas partidas, bem como todos os vidros; o tejadilho todo levantado, as portas saltaram fora dos seus lugares e as bombas partidas e torcidas». O carro 34, o segundo atrelado, ficou «com vidros e portas partidas, bem como os estribos e uma plataforma». O terceiro carro terá sido o que menos sofreu. Estes veículos foram rebocados, cerca de uma hora depois do desastre e por outra máquina, para a remise; e a locomotiva foi também rebocada por outra máquina, pelas 11 horas.
No local rapidamente se apresentaram os engenheiros da companhia, Joaquim Torcato Alvares Ribeiro (chefe dos serviços de construção), Jaime Nogueira de Oliveira (subchefe dos serviços de exploração) e o administrador delegado Tomás Joaquim Dias (que cedou rumou ao hospital para se inteirar do estado dos feridos), assim como os chefes de fiscalização de movimento e via e obras.
O movimento ficou momentaneamente interrompido, tendo posteriormente sido restabelecido com uma frequência de meia hora e apenas na linha descendente. O chefe de movimento dirigiu o serviço até ao completo restabelecimento pelas 13h45. A linha e o pavimento da rua foram reparados por trabalhadores, sob ordem do encarregado António de Freitas. Também José de Barros se deslocou para o local do sinistro, junto com o pessoal do socorro, num carro elétrico. Como ao chegar ao Bessa faltasse a corrente, fez-se o restante percurso com este carro descendo à velocidade imprimida pelo declive.
A notícia poderia ficar por aqui. No entanto, O Porto recebeu uma carta de um H. Pheysey, publicada em sequência da notícia, que em breves palavras descreve a completa evitabilidade da tragédia. Com essa carta fecho esta publicação:
«(...) Para mim, o que hoje aconteceu, não me surpreendeu, porque além do material circulante ser ordinário e cansadissimo por um serviço aturado de 30 anos, e por consequência impróprio para circular com uma velocidade como a que atingem os comboios no lugar do descarrilamento, a linha estava em tal estado que se notava, há dias, um salto das carruagens ao passar em tal sítio.
Eu que moro perto do lugar onde aconteceu o desastre, e por essa circunstância necessito utilizar-me com frequência desses comboios, faço-o sempre com certo receio e outro tanto acontece a minha família ou amigos meus que residem por aqueles lugares.
Agora que um desastre vem por em evidência, oportuno seria tomar a Ex.ma Câmara ou a quem competir, uma resolução enérgica sobre a maneira pouco segura e cómoda como é feito o serviço na cidade e especialmente nos lugares servidos pelos tais comboios americanos, que são o que há de mais velho e perigoso. (...).»
E de facto não foi o primeiro, muito menos o último, acidente com estas viaturas; e com vítimas mortais. Mais para a frente iremos também explorar um outro acidente, desta feita com um carro elétrico na linha marginal, ao qual anda erradamente associado o elétrico 163 do museu...
Viriato
ӽӽӽ
1. O nosso metro é na verdade um sistema do tipo light rail.
2. Única vítima mortal do acidente, este indivíduo recém casado desempenhava as funções de maquinista desde dezembro de 1909. Por desgraça, havia pedido despensa de trabalho para aquela manhã, mas por o seu pedido não ter dado entrada a tempo, não lhe fora concedida. Para além da vúva, deixou igualmente desamparada sua velha e doente mãe; num mundo em que é praticamente desconhecida a assistência social do Estado.
3. Com 12 anos a trabalhar não é nada de novo para aquela época, ainda assim é sempre um choque quando nos deparamos com esta triste realidade, que em boa verdade, demoraria ainda décadas a desaparecer!
4. O funeral foi depois costeado pela entidade patronal.
FONTE: periódico O Porto de 18 de dezembro de 1910.
LEGENDA DA IMAGEM: «O Desastre da Boavista - Os trabalhos do encarrilamento da locomotiva para ser rebocada para a «rémise», depois da desgraça».
publicado primeiramente em gcongostas@blogs,sapo,pt, a 11 de abril de 2022
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