Um das aspetos a meu ver fascinantes quando se estuda a história de qualquer cidade, prende-se com o estudo da evolução da sua iluminação pública. Não posso aqui fazer uma resenha histórica dessa evolução, deixando para um futuro possível uma publicação que o faça. O que pretendo agora dar a conhecer são as condições que a edilidade estipulou em 1853, orientadores da forma como a empresa que ganhasse o concurso para essa iluminação se deveria comportar. Os seus encargos e garantias, direitos e deveres, para com o município. Peço-vos que não o leiam como um seco contrato de concessão, antes o aproveitem como uma janela para aquele mundo que aos poucos ia saindo do natural mover humano, para um mundo cuja artificialidade que hoje damos como garantida e até mesmo básica, ia tomando o lugar dos vagarosos movimentos naturais do dia e da noite e da real distância das coisas, que regulavam a vida sobretudo anteriormente ao advento da eletricidade.
A iluminação a gás chegou tarde ao nosso país. Na década de 10 do século XIX já Londres e Paris a tinham, enquanto no Porto apenas em 1824 se arrancava com a iluminação a azeite(!). Ainda no ano de 1834 a câmara de Lisboa recebeu propostas para dotar a cidade com esta inovação tecnológica, contudo só em julho de 1847 ela arrancaria na capital. No Porto as primeiras condições de que tenho conhecimento datam de dezembro de 1845, quando um indivíduo de nome J. B. Stears se obrigava a construir uma fábrica de produção de gás para iluminar a cidade. Mas ainda não era o momento. Enquanto em Lisboa as obras foram avançando em plena guerra civil, no Porto, mais uma vez o epicentro do conflito nacional, tal não chegou a acontecer. Foi necessário esperar pela Regeneração, tendo a iluminação a gás principiado em abril de 1855.
Em 1853, data das linhas que abaixo pode o caro leitor apreciar, quem detinha a concessão era Hardy Hislop[1]. Mas, no ano do arranque da iluminação - 1855 - este trespassou-a à Companhia Portuense de Iluminação a Gás. Vejamos então o que estava em jogo nestas condições:
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«1ª O Empresário ou Companhia de iluminação a gás é obrigado a estabelecer o aparelho de destilação, condensadores, depuradores e gasómetros fora de barreiras, em lugar não povoado, e só lhe será permitido o colocar dentro da cidade gasómetros para depósito de gás, precedendo para isso autorização da Câmara, e ouvindo o Delegado de Saúde.
2ª A Câmara oferece gratuitamente para este efeito o terreno, que for demarcado da denominada Quinta do Prado do Bispo, próximo do cemitério público, na margem direita do rio Douro, podendo o Empresário ou Companhia utilizar-se dele durante o tempo do seu contrato, findo o qual ficará outra vez pertencendo ao município[2].
3ª Outro qualquer terreno, que nos termos do artigo 1º melhor possa convir ao Empresário ou Companhia, será por ele obtido e pago à sua custa, precedendo aprovação da Câmara e ouvido o Delegado de Saúde.
4ª O número dos candeeiros a gás não será inferior ao da atual iluminação a azeite.
5ª Quando convir à Câmara aumentar o número de candeeiros, marcado na condição 4ª não pagará por cada um maior preço, do que estipula pelo presente contrato para cada um dos outros.
construção de um gasómetro para o armazenamento do gás . atrás do fotógrafo fica atualmente o bairro do Aleixo (d' O Comércio do Porto Ilustrado)
6ª A colocação e distribuição dos candeeiros de gás será feita com aprovação prévia da Câmara.
§ único - Se a Câmara a todo o tempo julgar necessário alterar a colocação de alguns candeeiros essa mudança será feita à custa da Câmara.
7ª Os candeeiros serão de chapa de cobre assentado sobre braços ou candelabros de ferro fundido, e todos numerados.
§1 - Nas praças e ruas largas que a Câmara designar, os candeeiros serão colocados em pedestais.
§2 - O modelo dos candeeiros, braços, pedestais e bicos de que trata a condição 10ª será da aprovação da Câmara, e depositado nos Paços do Concelho, para servir de padrão.
§3 - Os candeeiros, braços ou pedestais serão pintados a óleo pelo menos de dous em dous anos.
8ª A condução do gás será feita por tubos de ferro fundido de suficiente capacidade, e solidez, e devidamente experimentados perante um delegado da Câmara.
§ único - Os canos parciais da condução do gás para os edifícios públicos ou particulares serão de chumbo feitos com segurança.
9ª A Empresa ou Companhia abrirá à sua custa as vias de canalização pelas ruas ou praças restituindo as mesmas ao seu antigo estado.
10ª O sistema de iluminação a gás será de leque como se acha estabelecido nas principais cidades da Europa. A chama não será menor de quatro polegadas de altura[3], de luz clara, brilhante, e sem o menor traço de fumo.
11ª A iluminação dos edifícios públicos ou particulares será feita a avença das partes, e nunca o seu preço excederá a dous reis por pé cúbico de gás[4]: este será completamente purificado, mas o sistema da luz será a avença das partes, e a colocação dos tubos condutores, lustres, candeeiros, ou bicos luminosos, não será da obrigação do Empresário ou Companhia.
12ª Os candeeiros de gás estarão acessos ao anoitecer, e serão apagados ao amanhecer. Nas noites de luar claro, desde o nascer até ao desaparecer da lua, se dará à chama a altura de duas e meia a três polegadas.
13ª Quando aconteça que uma ou mais luzes não tenham a altura e mais requisitos marcados nas condições 10ª e 12ª, será descontada ao Empresário ou Companhia, a quantia de duzentos e quarenta réis por cada luz e em cada uma das noites em que ocorrerem essas faltas.
§ único - Essa falta será participada à Câmara pelo Inspetor de Iluminação, e sendo verificada, o preço da multa ou multas a que se refere este artigo será descontado no primeiro pagamento que se houver de fazer à Empresa ou Companhia.
fábrica do gás em Lordelo do Ouro . hoje todo este terreno encontra-se abandono (postal antigo)
14ª A Câmara cede gratuitamente ao Empresário ou Companhia os candeeiros e objetos relativos da actual iluminação, os quais lhe serão entregues à medida que forem substituídos pelos de gás.
§ único - Os primeiros cem candeeiros que vagarem são excetuados desta disposição, e ficarão pertencendo à Câmara como propriedade municipal, sendo depositados nos Paços do Concelho, para em caso de incidente imprevisto poderem substituir temporariamente e parcialmente a iluminação de gás pela de azeite: e para aumento da mesma iluminação a azeite nos locais onde se julgue necessária.
15ª Antes que o Empresário ou Companhia principie a iluminar a gás, todas as obras e aparelhos deverão ser examinados e aprovados pela Câmara, e só procedendo a esta aprovação é que a Câmara ficará obrigada aos pagamentos respetivos do presente contrato.
16ª Para os processos de destilação, purificação, canalização e mais particularidades relativas à iluminação a gás, o Empresário deverá empregar todos os meios conhecidos, tendentes a precaver todo o perigo na segurança ou detrimento na salubridade pública, e para esse fim fica obrigado à observância dos Decretos de 10 de Março de 1847, e 10 de Outubro de 1848, e bem assim das instruções do Prefeito de Paris de 31 de Maio de 1842.
17ª Todas as obras de iluminação por meio de gás deverão estar concluídas no prazo de trinta meses, no de quinze meses as da cidade baixa e mais frequentada, e nos outros quinze, as do resto da cidade e ruas contíguas das freguesias suburbanas.
18ª Logo que o Empresário ou Companhia tiver realizado a iluminação de quinhentos candeeiros a gás, terá princípio o tempo de duração do presente contrato, estipulado na condição 24ª e será obrigado a tomar a seu cargo a iluminação provisória de azeite no resto da cidade e das freguesias suburbanas.
§ único - O preço da iluminação a azeite será calculado para cada candeeiro pelo termo medio do custo da mesma aos últimos cinco anos.
19ª - Todas as despesas na prontificação das obras, reparos, limpeza necessária, e costeamento da iluminação são da competência do Empresário ou Companhia, e a Câmara somente fica obrigada ao pagamento trimestral do preço porque foi contratada a iluminação.
20ª Todo o incidente imprevisto que obrigar a interromper a iluminação a gás, e a substitui-la pela de azeite em algum ponto da cidade, deve ser participado à Câmara, e perante ela justificado no prazo de vinte e quatro horas.
§1 - As despesas de substituição serão à custa do empresário ou Companhia. A Câmara somente se obriga a emprestar-lhe os candeeiros que conservar em depósito, se ainda os não houver empregado.
§2 - O preço da iluminação a azeite, por cada candeeiro desta substituição será calculado, e pago ao Empresário ou Companhia em conformidade com o estipulado na condição 18ª § único.
21ª Até à conclusão completa de todas as obras para a iluminação a gás, o Empresário ou Companhia será obrigado a prestar uma fiança a aprazamento da Câmara, pela quantia de dez contos de reis, e perderá além dessa quantia todas as obras que tiver feito, se não levar a cabo as condições do contrato.
22ª Todas as perdas ou danos causados a particulares, ou ao público, pelo Empresário ou Companhia, resultantes das obras, ou processo de iluminação serão por ele indemnizados.
§ único - Para este fim prestará fiança no ato de se efetuar o contrato, por meio de Escritura Pública.
23ª Os atuais empregados da iluminação da cidade serão preferidos, em igualdade de circunstâncias para o serviço da Empresa, e da mesma forma serão preferidos sempre que seja possível operários nacionais a estrangeiros.
24ª A duração do presente contrato é pelo prazo de vinte anos, contando desde a época marcada na condição 18ª.
25ª As fábricas, aparelhos, utensílios, e quaisquer outros materiais, ou obras que a Empresa adquirir, ou fizer para levar a efeito a iluminação a gás, serão no fim do contrato cedidos à Câmara, e por ela pagos à mesma Empresa, precedendo avaliação por peritos.
§ único - O Empresário ou Companhia perderá as fábricas, aparelhos, utensílios, e quaisquer outros materiais, ou obras que a Empresa adquirir ou fizer para levar a efeito a iluminação a gás, e ficarão sendo propriedade municipal se durante os vinte anos abandonar a iluminação sem que ele possa exigir indemnização alguma.
26ª Um ano antes de finalizar a duração do contrato quando tenha de se abrir novo concurso, o Empresário ou Companhia que tiver existido será preferido em igualdade de circunstâncias.
desenhos aprovados pela Câmara Municipal do Porto em 1854 para a construção de consolas e candelabros de gás (ver aqui)
27ª Em caso de dúvida, contestação, ou divergência, entre o Empresário ou Companhia, e a Câmara será essa dúvida, contestação, ou divergência, decidida por árbitros da forma seguinte:
§1 - A Câmara nomeará dous vogais, e um suplente, e a Companhia ou Empresário nomeará igualmente outros dous vogais, e um suplente.
§2 - Estes vogais e suplentes não serão empregados da Câmara, nem da Empresa.
§3 - Os quatro vogais reunidos resolverão a dúvida contestação, divergência, e no caso de empate um dos suplentes tirado à sorte, decidirá.
28ª O Empresário ou Companhia, se for estrangeiro, desistirá de todos os privilégios que nessa qualidade lhe possam pertencer, e fará essa desistência no acto de celebrar o presente contrato.
29ª Quando a Câmara julgar necessária a fiscalização ou exame da densidade, pureza do gás, e de todo o mais que diz respeito à policia de iluminação, a Empresa será obrigada a facilitar todos os meios para isso necessários, e quando isso não cumpra, a mesma Empresa perderá da prestação que a Câmara é obrigada a pagar-lhe a parte correspondente ao tempo que durar a repugnância.
CONDIÇÕES TRANSITÓRIAS
1ª O concurso para a iluminação a gás estará aberto por espaço de quarenta dias; o preço máximo será de dezasseis mil e quinhentos reis anuais por cada candeeiro; a Empresa será cedida a quem por menos preço a tomar com as condições referidas.
2ª Os concorrentes deverão fazer depósito no Banco Comercial desta cidade, ou na Caixa Filial do Banco de Portugal da quantia de dez contos de réis em dinheiro de metal. Este depósito será restituído logo que a Empresa seja cedida e adjudicada. O Empresário preferido só receberá o depósito, depois de ter satisfeito as condições 21ª e 22ª.
Está conforme. Porto e Paços do Concelho de fevereiro de 1853
O escrivão da câmara, Domingos José Alves de Sousa»
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Viriato
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1 - Igualmente relacionado com o arranque da iluminação a gás em Coimbra.
2 - O gasómetro nunca naquele terreno se instalou.
3 - Aprox. 10 cm.
4 - I. é, 0,30 m3.
Originalmente publicada n' A Porta Nobre em 27.10.2013, foi revista e aumentada em 06.04.2019
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