Caro leitor, hoje vamos passear até ao século XIX com Camilo Castelo Branco. Sou, como saberá quem lê este blog assiduamente, um fã deste autor. Ele escreveu numa época que me é particularmente tocante: os últimos anos do século XIX, antes da modernidade nos inundar de "progresso". Neste pequeno texto o autor transporta-nos um pequeno arraial em Oliveira do Douro; saboreemos:
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«No último domingo de julho de 1848, era a celebrada romaria de Santa Ana de Oliveira, situada a curta distância do antigo convento daquele nome, na margem esquerda do Douro, a uma légua do Porto[1]. É esta uma das popularíssimas festas, que, apesar da descrença, do despoetisamento das turbas, e da apagada e tediosa civilização, permanece ainda com algum brilho do seu antigo resplendor. Há quinze anos, abalavam-se os espíritos na véspera da festa de Santa Ana de Oliveira. A alvorada deste dia era uma alvorada de geral alegria na classe comercial, e nos homens mecânicos da laboriosa cidade. Ao repontar a aurora do belo dia de julho, o Douro que banha o Porto, desde o cais da Corticeira até o de Massarelos, retratava em suas águas serenas e cristalinas as bandeiras e listrões de vistosas cores, que os últimos bafejos da viração matutina ondulavam brandamente, sobre os mastros dos barquinhos, e na orla dos pavilhões que os defendiam do calor. Ao lampejar tremente do sol nas cristas da serra doirada, lá naqueles tão poéticos longes das montanhas, começavam as famílias a desembocar das estreitas ruas de Miragaia, das arcarias escuras de Cima do Muro, da majestosa rua de S. João, e de quantos becos descem do antigo burgo, que lá se está esboroando aos pés da catedral.
Que formoso de ver-se era o espetáculo observado da outra margem do rio, das praias da gentil Gaia, que, vista de longe, faz pensar que por ali demora ainda a encantadora castelã, dando às suas colinas, que tão barbaramente a viram morrer, alguns toque da sua mágica varinha! Também do lado de além, àquela hora, os botes embandeirados recolhiam as sécias de Vila Nova, as trigueiras do Candal, as mocetonas da Bandeira e Santo Ovídio, aquela formosa casta de mulheres, que ainda semelham em alguns dotes as astatuárias mulheres da beira-mar, que tu, leitor cansado de belezas pintadas e estofadas, deves ir, uma vez, procurar em Espinho, em Ovar, em Ílhavo, naquela raça fenícia, enquanto a mim, a menos imaculada de estranho sangue, que ainda se viu na Europa.
Em quantos ranchos de senhoras, umas de rosa, outras de branco, outras de azul, todas lindas a mais não poder, saltavam aos barquinhos com grande alarido de guinchos, já de fingido medo, já de expansiva e doida alegria, outros botes se iam cogulando de músicos, uns de profissão, outros curiosos. O flautista, no seu barco, gemia às primeiras melodias do seu mavioso instrumento, enquanto a orquestra se não ordenava; além, noutro barco, o violinista tirava algumas alegres rabecadas, que alvoratavam os ânimos; num barquinho, mais ao longe, já um solitário romeiro fazia como chorar o seu violão, para que a dama prevenida lhe entendesse no som plangente dos bordões a suave tristeza que lhe ia na alma. Um moço inquieto, da proa da sua gôndola, assoprava pela trompa uns sons desentoados, que faziam rir as moças. Tudo ali saía bem; tudo agradava a novos e velhos; os próprios pais consentiam que suas filhas palestrassem dos seus barquinhos para os barquinhos que lhes vinham na alheta, ou vogavam a par, obrigados pela ciosa pujança dos remadores.
Depois, lá ia rio acima aquela galharda esquadrilhas, por uma e outra margem, com suas afinadas músicas. De alguns barcos rompiam, a intervalos, dúzias de foguetes, que eram grande parte no tumultuoso júbilo daqueles felizes. Quem iria triste ali? Os namorados, somente os namorados; mas a tristeza destes que alegria terá o céu que se lhe compare!? A tristeza dos namorados! Que doce fel aquele! Que voluptuoso veneno filtram as rosas que todo o ar lhes perfumam! Que bem estar do coração, nunca mais sentido, senão um ano, nas existências mais ricas de ventura!
Lá ia, pois, rio acima a mais ditosa gente do mundo sublunar naquela manhã de 26 de julho de 1848.
Alguns botes desatracavam mais tarde do cais da Ribeira; e, entre estes, um, mais que todos, arrancava, a quatro remos, para se ajuntar à embandeirada esquadrilha. (...) Ali, pelas alturas da Pedra Salgada, os possantes barqueiros já brandamente cortavam o rio, que se alargava e adormecia em berço de cintilantes areias (...)»
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in Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado (1863), cap. IV
Termino com uma pequena nota: Terá o autor visto o que descreve, aqui e ali preenchendo-os com apontamentos da sua imaginação, uma vez que viveu no Porto, já que viveu na cidade por volta desta época?
Este texto faz-me também deambular mentalmente pelos apontamentos dos livros das despesas dominicanos, onde os frades anotavam a despesa feita com os fretes das embarcações, cozinheiro, galegos, covilhetes.. enfim; que os mesmos utilizavam quando se deslocavam à sua quinta de Oliveira do Douro, hoje transformada num hotel onde só muito poucos conseguem penetrar! História esta, que ficará para outra publicação.
Viriato
ӽӽӽ
1 - Esta capela já não existe, segundo informação do meu amigo Fábio Soares, a quem agradeço.
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