sexta-feira, 5 de julho de 2024

Compra de terrenos pelos dominicanos

Causará algum espanto ao leitor que este assunto aborde pela primeira vez, que uma das zonas mais centrais da cidade do Porto fosse por vários séculos propriedade de dois conventos: o convento de São Domingos e o Convento de São Francisco. É no dominicano que irei centrar a vossa atenção. Com efeito este cenóbio foi proprietário de uma grande parcela de terreno onde tiveram sua horta e pomar, da qual tiraram rendimento, também arrendando parte dela.[1]


As plantas mais antigas da cidade, que ainda mostram a cerca dominicana, não o fazem na realidade em toda a sua extensão posto que todas foram elaboradas já no século XIX. De facto, até ao início do século XVI ela era bem maior, englobando terrenos que foram absorvidos pela crescente urbanização. Assim, a parte superior da rua do Comércio do Porto, uma boa parte da rua de Belomonte até ao largo de São Domingos junto ao cunhal do edifício do hotel A.S. 1829 eram hortas e pedreira pertencente ao convento. Também a rampa que hoje une o mesmo largo à rua Mouzinho da Silveira teve casas, dessa forma criando dois pequenos arruamentos já desaparecidos: a rua da Ponte de S. Domingos e a viela da Palma. Seguia depois pela rua das Congostas, do lado do convento, quase até ao cunhal da rua do Infante D. Henrique, onde hoje está o jardim.

Mas atentemos na imagem, que melhor nos demonstra esta realidade passada:

Imagem 1

A amarelo temos representada uma aproximação à extensão máxima da cerca dos dominicanos, alcançada no final do século XIII. Sofreu um primeiro corte a sul para a construção de rua do Infante D. Henrique, cerca 1395 (pelo que é possível que na realidade o terreno ainda se encaminhasse mais para sul do que aqui se vê). A vermelho temos representada a dimensão com que ficou cerca de 1525, após a coroa ter ordenado a abertura de várias novas ruas na cidade bem como à iniciativa urbanizadora do próprio convento. Isto veio subtrair uma grande fatia de terreno à sua cerca. Para ajudar o leitor no reconhecimento do terreno, assinalei alguns locais/edifícios notáveis na paisagem:

1 - Palácio das Artes; 2 - Mercado Ferreira Borges; 3 - Praça do Infante D. Henrique; 4 - Palácio da Bolsa; 5 - Hospital da Ordem Terceira de S. Francisco; 6 - Miradouro da Vitória. Optei por não marcar, para não criar confusão visual, os caminhos medievais que existiam ladeando esta cerca. Assim, tínhamos a O a azinhaga que ia para S. Nicolau (desativada no século XV), a E a azinhaga que se tornará na rua das Congostas (obliterada no século XIX) e a N o caminho que ia para Miragaia (que corresponderia a um caminho aproximado ao traçado da rua de Belomonte).


Os Padres Pregadores tiveram o cuidado - ou a necessidade - de registar e trasladar por mais de uma vez a documentação referente à compra destes terrenos. Os mais antigos traslados datam de 1319. Esta data é importante, pois estando os frades com alguns problemas com o Cabido face às novas obras que andavam a fazer de ampliação das suas instalações, poderá querer dizer que estes documentos - compilados em apenas dois pergaminhos de grande dimensão - teriam sido produzidos para uso como prova perante o Vigário Geral, como veremos mais para a frente.[2]


Nas próximas publicações vamos explorar estas compras e doações, para dentro do possível aproximar as referências que estes documentos nos legaram, com a atualidade. E para isto peço ao leitor que tenha sempre em conta, que a cota atual de toda a área compreendida, pelo menos, entre a rua Ferreira Borges e Mouzinho da Silveira e a rua do Infante D. Henrique a o largo de S. Domingos, foi bastante rebaixada com os terraplanos do século XIX.


***

Não longe do convento da OP, descendo a rampa que hoje se enquadra no amalgamo topónimo de largo de São Domingos, uma pequena ponte existia que permitia o acesso à subida para a cidade velha, na Penaventosa. Esse ponte, necessária para galgar o famoso mas agora inexistente rio da Vila, durante séculos ali esteve, num caminho de aspeto quase rural onde num espaço curto se encontrava uma capela e o seu hospital (São Crispim e São Crispiniano), um cruzamento de estreitas ruas (Congostas, Biquinha), e um arquinho por baixo de uma casa onde existia uma das antigas fontes da cidade. A tudo isto juntavam-se, antes da urbanização da área, várias tendas; i. é, lojas de venda ao público, muitas delas arrendadas a judeus que viviam na judiaria do Olival.

Imagem 2

Mas veio o mundo moderno, e com ele a construção a partir de 1765, da rua de São João. Esta suprimiu a rusticidade do terreno por ela ocupada, maioritariamente quintais das casas da rua dos Mercadores e Congostas. Pelo meio destruiu também pelo menos uma torre medieval e uma azenha que ainda laborava no rio da Vila (talvez junto ao pátio de São Salvador). Cem anos depois, uma nova e gigantesca rua - para a época - veio a ser rasgada, levando um grande pedaço de chão medievo portuense: a rua Mouzinho da Silveira. Com esta rua, o rio da Vila que em grande parte seguia já entubado foi completamente relegado para o subsolo, mais sevícias sofrendo no final do século XIX e início do seguinte, com a machadada final a ser dada pela construção das linhas de metro já no XXI; ao ponto de hoje praticamente já não existir, e apenas por wishful thinking se lhe poder chamar de "rio da Vila"...

Mas isto tudo para dizer que, por estes dias e muito surpreendentemente, parece ali ter sido encontrados uns parcos restos aparentando medievalidade... Por lá passei, tirei fotos pelo exterior, mas delas apenas uma se aproveita. Assim, o arco que assinalo na imagem acima com o retângulo laranja parece ser o que resta dessa pontezinha. Tantos anos a ler documentos que a ela se referem (o mais antigo de 1307), considerei eu, agnóstico dos quatro custados, um verdadeiro milagre poder reter nos olhos mesmo que por forma indireta, aquele pedacinho de história que subsistiu até ao século XXI.[3]

Resta-me legendar a minha foto: a letra a representa a direção da rua Mouzinho da Silveira, quer sul quer norte. A b a direção da rampa que sobe para o largo de São Domingos e finalmente a c a direção da travessa da Bainharia. Por coincidência, a localização deste achado encontra-se na aresta mais à direita do traçado amarelo da imagem 1!

Viriato


ӽӽӽ

1. O termo mais correto seria aforando, contudo optei pelo uso da expressão atual para uma mais fácil compreensão. Ainda assim advirto que uma e outra não são totalmente equivalentes.

2. Os outros traslados são, o já referido anteriormente do século XVIII e um outro, ainda do século XV, que se encontra no Livro das Capelas, um volume de grande dimensão depositado no Arquivo Distrital do Porto, que tem a particularidade de estar completamente chamuscado nas suas pontas, provável consequência de um incêndio que o convento sofreu.

3. Tudo o que se vê na foto desapareceu na semana passada. Fica-nos a conservação pelo registo científico...

publicação originalmente colocada a 4 de fevereiro de 2018 no blog específico do tema do convento dominicanos, agora revista e aumentada

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