Frei Manuel da Esperança (FME), franciscano portuense responsável pela crónica da sua ordem[1], relata no primeiro volume dela a difícil instalação da OFM na cidade do Porto. Acredite leitor, que se a instalação dos frades parece complicada na narrativa cronística, ela tem total adesão ao que se terá passado. Com efeito, pouco conhecidos, os documentos franciscanos relativos à sua instalação estão hoje totalmente disponíveis on line na Torre do Tombo[2], pelo que apesar de se encontrarem redigidos em latim, podem ser facilmente consultados e interpretados pelos investigadores atuais.
O processo durou 11 anos, tendo começado em 1233 com um breve emitido por Gregório IX a recomendar ao bispo portuense Martinho Rodrigues e ao seu Cabido, que permitissem a instalação dos frades na cidade se alguém lhes oferecesse um terreno para tal. Segundo a missiva, foram os franciscanos já residentes em Portugal que solicitaram esta carta ao papa, coordenados com os homens bons do Porto. Talvez já adivinhassem a tempestade que viria a seguir...[3]. Não é certo quando eles se instalaram. Mas é certo que se instalaram onde ainda hoje se encontra a sua igreja, na Redondela, microtopónimo há muito desaparecido[4]. Certamente tal ocorreu talvez mesmo ainda naquele ano ou no máximo no seguinte, pois o responsável pelas primeiras perseguições e vexames foi o Deão, figura máxima do Cabido portuense[5]; uma vez que o bispo Martinho Rodrigues estava ausente em Roma, a tratar dos seus interesses postos em causa por Sancho II[6]. Em vários breves de 1237, 1238 e 1239 se desfez o papado para conseguir levar avante o intento dos franciscanos, sem dúvida ainda movidos pelo espírito original de pobreza e humildade do seu fundador há poucos anos falecido... No entanto tal veio a acontecer apenas em 1244: onze anos, dois papas, um período de Sede Vacante em Roma e um bispo portuense depois!
Desculpar-me-ão a longa introdução, para afinal apenas pretender transcrever um documento que o ainda papa Gregório IX enviou ao Conselho e habitantes do Porto. É um documento elogioso que não se pode encontrar nos arquivos da câmara. FME refere-se assim a ele: «O pontífice, que só isto desejava, lhes mandou em resposta uma carta tão honrada, que a cidade a houvera de guardar no seu tesouro, ou copiá-la para eterna memória no mais fino e precioso metal. Foi feita em Roma a 17 de maio de 1241. (...) E depois de lhes louvar a caridade de nos terem recolhido: a afeição do lugar onde nos deram casa: o valor com que se punham em campo contra quem nos metia em tantas tribulações: por tudo isto lhes rendia muitas graças, empenhando sua lembrança, para outras, que fossem muito maiores, se o tempo lhe desse ocasião.»
O documento, esse mesmo, é este:
«Gregorius Episcopus servus servorum dei . Dilectis filiis Consilio et populo portugalensi . Salutem et apostolicam benedictionem . Spes grandior que potest in esse patribus de futuris profectibus filiorum consisti in hoc precipue quod ipsos perspiciunt virtutum cultui humiliter deseidare . Sane per litteras quas nobis misistis letantes accepimus quod pia meditatione pensantes vos posse de facili eterni Regis granis(?) per caritatis studia promereri . Dilectis filijs fratribus de ordine fratrum minorum in Portugalia constituis locum ordini congruentem in loco qui dicitur Retundella pro ipsorum ecclesia et domibus construendis pro divina et sedis apostolica reverentia liberaliter concessistis . Verum cum ex hoc vobis fiducia secura proveniant quod in bonis temporalibus et eternis ampliati poteritis si operibus misericordie continuam operam tribuatis . de processu laudabili habito circa fratres ipsos devotionem vestram dignis in domino laudibus commendamus . Sinceritatem vestram rogantes in domino ihu xpo ac in remissionem vobis peccaminum iniungentes quatinus fratres eosdem quos ad locum ipsum quo fuerant nequiter spoliare per venerabilem fratrem nostrum . . Archiepiscopum Compostellanum sicut a nobis eisdem literas postulastes mandamus restitui in quorum operabus et doctrina vobis semita patrie celestis ostenditur . inchoati favoris presidio proseque et pietatis oculo studeatis jugiter intueri . Seituri quod per hoc eo levius omnium conditorem poteritis habere propitium quo sibi dicti fratres dilecti sunt pre pluribus faciente maiori suffragio meritorum . Nos etiam vobis ex hoc ad grates in oportunitate tenebimur cum prometeres(?) pauperum precipue dilectionis brachio complectamur . Datam Lateranes xvj kalendas Junij Pontificatus nostri Anno Quintadecium(?)»
Como se pode confirmar, o breve foi emitido em Roma no paço papal de Latrão. Notar que embora na data nos surja o mês de junho, a palavra kalendas remete-a sempre para o mês anterior. Neste caso em particular, o documento foi lavrado a 17 de maio de 1233 (Gregório IX iniciou o seu pontificado em 21 de março de 1227). Os sublinhados que coloco no texto são os mesmos que o documento original apresenta.
E aqui está, caríssimos leitores, um documento elogioso à cidade, dado pelo servo dos servos de Deus, que não consta nos arquivos da câmara. Merecem contudo ser recordados, quer este quer os restantes diplomas com ele relacionados, por se tratrarem de mais uma fonte, uma peça do puzzle da história medieval da cidade, onde os documentos e a informação em falta é seguramente maior do que aquela que aos nossos dias chegou.
Viriato
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1- Pode consultá-la aqui.
2- Aliás, praticamente todo o tombo franciscano o está, quer na TT quer no ADP. O porquê dos investigadores sempre se referirem à crónica de FME, não consultando os documentos originais, ou o facto de ainda não ter existido uma boa tese de doutoramento que versasse a história possível dos franciscanos portuenses a partir das fontes primárias, é coisa que me espanta. Fica a dica para um aluno da FLUP que aceite o desafio!
3- Não nos admiremos, os mendicantes tiveram sempre forte oposição do clero diocesano, quer cá quer nos restantes reinos onde se pretenderam originalmente instalar. Simplisticamente, para os bispos, cabidos e restantes cónegos, os mendicantes traduziam-se em rivais na disputa das doações monetárias dos paroquianos da Sé.
4- Nos documentos papais surge na forma latinizada de Rotundella. Talvez substituído pelo da Reboleira, continua contudo a existir em outras localidades portuguesas e galegas.
5- De seu nome Mendo Pais, manteve-se no cargo de 1221 a 1249, intervindo na fundação do convento franciscano e dominicano, pelo que deverá ter tido um papel significativo na animosidade a eles movida.
6- Papas, bispos e arcebispos medievais eram também eles senhores feudais.
Originalmente publicado a 31 de outubro de 2022, no blog alojado no sapo
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