Como os amantes da história do Porto já estarão certamente ao corrente, no passado mês de maio foram encontrados os restos da ponte de S. Domingos, sobre o rio da Vila. Desta forma se demonstrou e mais uma vez a arqueologia comprovou que, se algures no tempo ela foi construída com materiais perecíveis de fácil desagregação, essa estrutura rudimentar foi a dada altura substituída por uma pequena ponte de pedra em arco [1].
A menção mais antiga que conheço a esta travessia data, indiretamente, de 1307. E digo indiretamente porque o documento é um traslado do século XVI feito a rogo do hospital de S. Crispim e S. Crispiniano, quando estes procuravam - e conseguiram - escapar à aglutinação pela misericórdia portuense. Nele se diz que os doadores do hospital «... edificaram na sua herdade da Ponte de São Domingos um hospital e o fizeram de fundamento...». Ora, se a ponte é mencionada, podemos inferir que ela já existe. Há é claro, a hipótese de a mesma ser à época ainda de madeira ou simples esteios, e não de arco em pedra. Não creio contudo que exista documentação sobrevivente que nos possa elucidar sobre esta matéria [2].
nesta imagem vemos, em primeiro plano, o local onde foram encontrados os restos da ponte de S. Domingos
A ponte é mencionada posteriormente, já no século XV, bastando ao curioso procurar on line no sítio do AHMP (embora outras menções a ela se encontrem nos livros do cofre da câmara, que não estão digitalizados). Durante este século - eventualmente já no final do anterior - o local da ponte de S. Domingos, pouco urbanizado e de aspeto quase rural, será ocupado por tendas de comerciantes, alguns deles judeus. Assim, o segundo registo mais antigo(?) que menciona a estrutura, reporta à ocasião em que a câmara aforou uma tenda a um judeu (aqui), em 1409.
parte do doc. de 1409, onde se lê « ... sob . a ponte de são domingos , a qual »
Sobre as pontes do rio da Vila transcrevo o texto de Ferrão Afonso, no seu trabalho já citado (ver nota 1): «O rio estava portanto, nessa zona [S. Domingos], como acima, no Souto, onde existia também uma "ponte", coberto com "padieiras" de pedra que permitiam a passagem (...). Outras pontes existiam para jusante...» [3]
Discordando há muito do douto investigador, agora visivelmente à vista dos achados do último mês de maio, estou em crer que em S. Domingos a ponte era efetivamente em arco, e não apenas uns esteios ou padieiras lançadas no rio. Mas este pensamento baseava-se unicamente no empirismo, por verificar que na documentação original que fui consultando, a expressão ponte de S. Domingos sobressai quase como exclusiva em relação às outras (mesmo da própria ponte nova, que sabemos ter sido efetivamente edificada em arco de pedra).
Poderíamos igualmente por a hipótese de que o que ali temos ser, não uma ponte, antes um troço da galeria lançada por cima do rio da Vila a partir de 1766, aquando da abertura da rua de S. João, cujo encanamento foi a obra basilar. Com efeito, foram construídas primeiramente as paredes laterais do referido encanamento, para depois sobre elas se firmar a abóbada. Esta deveria ser executada da seguinte forma: «... pedra lavrada de picão grosso, bem ajustada nos leitos e juntas em cal bem fechada para o que se farão fechaduras, e as aduelas terão três palmos de alto e grossura...». Seria portanto a esta descrição que se teria de vir buscar dados para poder confirmação ou não, sobre o arco que agora surgiu, pertencer à canalização do século XVIII. Não me parece. Creio contudo que a ponte terá sido realmente aproveitada, ao menos do seu lado norte, como abóbada para a nova galeria. Se o próprio contrato permitia a reutilização da pedra das casas compradas no local e demolidas, para abertura da rua, bem mais sentido faria numa construção que era já pública desde há séculos [4].
parte de uma planta guardada no TT, que nos mostra aquedutos construídos e a construir em 1788,na viela da Neta, sobre um ribeiro que vem a originar o rio da Vila
Mas após tanto falar da ponte, onde estão as fotos dela? As únicas disponíveis à população em geral são, creio, as cedidas pela Metro do Porto aos órgãos de comunicação social que o leitor pode ver aqui e aqui (e a sua localização aqui). De referir que as fotos nos mostram unicamente o lado norte, porque do lado sul o aspeto é bem mais desolador... Mas a partir daqui, caro leitor, só vendo as referidas fotos poderá compreender o que pretendo demonstrar a seguir.
ponte do arquinho em Água Longa
Com efeito, duas pequenas pontes existentes não longe do Porto, me fazem muito lembrar a agora desaparecida ponte de S. Domingos. Ambas com a designação de ponte do Arquinho; a primeira situada em Água Longa (Santo Tirso), e a segunda atrás da igreja de Nossa Senhora da Paz, em Alfena (Valongo). Em comum têm o franquear o atravessamento de duas pequenas ribeiras pertencentes à bacia hidrográfica do Leça. Notar que a pontezinha de Água Longa foi alvo em 2017 de um trabalho de recuperação, conferindo-lhe o aspeto que o leitor pode verificar acima, foto que colhi a 10 de agosto do corrente ano (aqui para o seu aspeto antigo). A de Alfena ainda não teve essa sorte, encontrando-se a 11 de agosto com o aspeto que o leitor pode verificar abaixo.
ponte do arquinho em Alfena
Comparemos as fotos que aqui coloco com as da ponte de S. Domingos. Achará descabida esta comparação das diferentes estruturas, com a que a Metro do Porto descobriu? Não são totalmente concordantes, a bem da verdade. Talvez a mais notória diferença seja a aparente arco quebrado, presente na ponte de S. Domingos. No entanto a similitude é, segundo creio, inquestionável.
Como apontamentos finais sobre este assunto e meramente curiosos, refira-se que o local onde se encontrava a ponte, também conhecido por cruz de S. Domingos, embora perdesse muita da sua rusticidade ainda em pleno século XIII, não deixou num momento longo da história em que o rural e o urbano se confundiam, de sofrer a pressão da urbanização. Posteriormente, nas primeiras décadas do século XVI alguns dos espaços à volta da pontezinha foram sendo ocupados por casas, quer pertencentes à Mitra, quer à cidade, quer aos dominicanos. Assim, pelo menos uma das tendas do século XV foi transformada em casa (possivelmente aquela a que os frades dominicanos permitiram que o enfiteuta da câmara pudesse encostar à parede da sua horta). Também diversos terrenos da Mitra vieram a formar a rua da Biquinha, cujo leito, como as plantas do século XIX para a abertura da rua Mouzinho da Silveira mostram, encontra-se hoje incorporado no saguão das casas no correr da Papelaria Peninsular; e finalmente os próprios dominicanos desmantelaram parte do seu cemitério medieval, emprazando os terrenos, num ato que levou ao surgir de duas já desaparecidas ruas: uma delas, precisamente, a rua da Ponte de S. Domingos.
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Reflexão final: A ponte de S. Domingos, como tudo o que a obra da metro já nos proporcionou descobrir sobre a cidade e pelo qual estarei sempre agradecido, foi destruída no final do mês passado. Desmantelada peça a peça, será possivelmente remontada num outro local da cidade onde, historicamente, não tem qualquer valor. Convenhamos e tenhamos bom senso: não era possível, com a obra necessária e prevista para o local, manter ali aquela memória multissecular da cidade in situ; nem várias outras, noutros locais. E para isso mesmo existe consagrado na lei, o mecanismo da conservação pelo registo científico. Temo contudo que este mecanismo se tenha tornado um autêntico dogma de fé na nossa cidade; sobretudo no que concerne às obras promovidas pela Metro do Porto... E com esta reflexão muito recordo um episódio do programa televisivo Visita Guiada consagrado ao mosteiro dos Jerónimos, onde se refere o caso do século XIX e XX, em que a unidade de estilo se sobrepunha a tudo, tendo mesmo posto em risco a existência da capela-mor maneirista -- a original! -- daquele mosteiro, por não ser manuelina como a restante igreja (felizmente essa estupidez não foi para a frente). Ainda assim o dogma estilístico levou a perdas irreparáveis (como a demolição da chamada Sala dos Reis), para além da enorme massa de volumes acrescentados ao mosteiro já no século XX, criando assim uma - muito bonita - artificialidade histórica.
Voltando ao Porto, no que reporta aos múltiplos achados na praça da Liberdade, viu-se ser publicitado o achado dos restos da fonte da Arca. Contudo, ali mesmo ao lado, de mais feito aspeto porém bem mais robustos e importantes para a história da cidade, apareceram importantes restos do torreão da muralha fernandina, com a "cereja no topo do bolo" de nos apresentar, incólume, alguns metros do encanamento do ribeiro de Liceiras, um dos dois que formava o rio da Vila, alguns metros mais abaixo. Foi tudo destruído, ou melhor, conservado pelo registo. Mas questiono: sendo a muralha fernandina monumento nacional desde 1910, não estariam aqueles restos protegidos por lei? E bem perto dali, quando à pouco mais de uma década se descobriram os restos do convento dos padres lóios também eles foram destruídos, dando origem e salvo erro, a uma queixa na UNESCO...
restos da porta da corredoura, em Torres Vedras. Preservar esta ruína in situ, mesmo que abraçada por um mono de betão e vidro, permite que as gerações futuras a possam recuperar e enquadrar condigmanente, assim a mantendo como uma memória viva por oposto a bytes armazenados num qualquer servidor
Na história em geral, mesmo na da arqueologia, só a décadas de distância se poderão tirar conclusões das opções que se fizeram num determinado momento da história e da menor ou maior responsabilidade dos seus promotores/executores (e suas limitações impostas por fatores externos e/ou internos...), em face dos resultados posteriores à passagem desse momento no tempo. No caso da conservação pelo registo científico, já cá não estaremos para ver a avaliação que daqui a duas ou três gerações farão os técnicos da altura, das opções por nós tomadas (à imagem do que hoje fazemos com as decisões e os critérios da DGEMN[5]). Como olharão os historiadores do futuro para tudo o que desapareceu com a "carta branca" da conservação pelo registo científico? Quanto à solução alternativa, remontar a estrutura à moda de lego num jardim ou outro qualquer recanto citadino deslocado do local original, assim a descontextualizando, é a meu ver construir uma falsa ruína como as que se encontravam tão em moda no século XIX (veja-se a da quinta das lágrimas), mesmo que com a melhor das intenções. Isto já para não falar dessa bonita ruína poder redondar em mais um arco da bruxa... [6].
Viriato
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1 - Amândio Barros, a p. 37 do seu estudo Porto - A construção de um espaço marítimo no início dos tempos modernos, dá a construção desta ponte como tendo ocorrido entre 1556 e 1559. Creio contudo que o douto historiador se equivoca com a construção da ponte nova, que veio dar nome a um arruamento ainda existente, hoje cortado em dois pela rua Mouzinho da Silveira. Esta ponte foi construída de facto a partir de 1556, tendo levado à destruição de duas casas, uma delas vinculada à capela dos Alvarinhos e não propriamente a capela dos Alvarinhos como refere (capela essa aliás, sediada na Sé do Porto). Para esta afirmação baseio-me na obra de outro historiador, o Dr. Ferrão Afonso, a pág. 109 da sua obra A Rua das Flores no Século XVI.
2 - Ver Palmeiros e Sapateiros: a confraria de S. Crispim e S. Crispiniano do Porto (séculos XIV e XVI), a p. 35. Trabalho editado pela Fio da Palavra, e escrito pelos investigadores Arnaldo Sousa Melo, Henrique Dias e Maria João Oliveira e Silva. Esta confraria, embora em moldes diferentes, ainda existe e localiza-se ao topo da rua de Santos Pousada.
3 - A rua das Flores..., p. 160 (nota 261).
4 - Utilizo o trabalho do investigador Joaquim J. B. Ferreira Alves, O Porto na época dos Almadas, a p. 213 do vol. 1.
5 - No caso das reintegrações da DGEMN por exemplo, sempre me sinto defraudado quando descubro que determinada capela-mor (por exemplo Rates), rosácea (por exemplo matriz de Barcelos), etc.. são obras com menos de um século de existência, fazendo-se passar por medievais.
6 - O próprio nome da ruína pode ser enganador. Veja-se o recente anúncio de que a fonte da Natividade iria ser remontada no novo jardim a construir onde existiu o bonito jardim de Sophia; quando na realidade são os restos da fonte da Natividade que vão ser remontados no novo jardim.
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