Como creio que já todos os leitores saberão, estamos no ano 200 do pós revolução liberal de 1820[1]. Com efeito, no dia 24 de agosto desse ano, teve início o processo que trouxe Portugal para a modernidade e podemo-nos orgulhar de esse mesmo processo ter sido desencadeado no nosso Porto[2]. Vingando a revolução, apenas em 1822 sairia a primeira Constituição da monarquia portuguesa. O rei jurou-a, e podemos assim ver o último (esperado) rei absoluto português a jurar uma constituição, onde afinal pouco mais era do que uma figura simbólica de Estado, num país tradicionalista onde a revolução de mentalidades ainda não tinha verdadeiramente ocorrido. No ano seguinte, dá-se um contragolpe liderado pelo infante D. Miguel, que repõem o regime antigo. A partir deste momento desencadeia-se uma série de movimentos, golpes e contragolpes, revoltas, duas guerras civis; que são o pesadelo para os estudantes de história do secundário[3].
Voltemos ao Porto. Na sequência da revolução de 24 de agosto de 1820, a edilidade decidiu, em agosto de 1822, colocar na então Praça Nova, um monumento perpetuando aquele dia, bem como o documento que dele resultou. A construção situar-se-ia no mesmo local onde bem mais tarde foi colocada a estátua de D. Pedro IV, mas não terá a sua construção passado dos alicerces. Ora, na sequência da Vilafrancada, a nova vereação - presente já um Juiz de Fora, figura do antigo regime - foi intimada por Lisboa a destruir esse arrimo do monumento que se estava a formar. É precisamente a ata de vereação extraordinária a ele relativo que achei interessante arquivar neste blogue, vindo diretamente do 6.º volume dos Apontamentos para a verdadeira história... de Henrique Duarte Sousa Reis.
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Vereação extraordinária de trinta de junho de mil oitocentos e vinte e três, nesta cidade do Porto e casa da ilustríssima câmara dela aí compareceram o doutor Juiz e Fora do crime, movido[?] pelo do cível, e bem assim os vereadores da mesma com assistência do provedor da cidade todos abaixo assinados. E logo nesta vereação, que teve lugar para dar-se o pronto e devido cumprimento à portaria do governo de vinte e três do corrente mês e ano expedida pela Secretaria de Estado dos negócios do reino, que foi recebida pela ilustríssima câmara no dia sábado vinte e oito do corrente e é do teor seguinte = Sua majestade ordena, que a ilustríssima câmara da cidade do Porto mande demolir inteiramente o monumento que nessa cidade se começar a erigir consagrado ao anterior e extinto sistema, dando a mesma câmara conta de assim o haver executado. Deus guarde a Vossa Senhoria, Palácio da Bemposta em vinte e três de junho de mil oitocentos e vinte e três. Joaquim Pedro Gomes de Oliveira. - Senhor juiz, vereadores e mais oficiais da ilustríssima câmara da cidade do Porto = tendo dado a mesma ilustríssima câmara de antemão as necessárias providências para se verificar a demolição do alicerce do monumento decretado na dita portaria com efeito se procedeu a esta obra às cinco horas e meia da manhã com assistência da mesma ilustríssima câmara e arquiteto da cidade cercando o lugar do mesmo alicerce um piquete de cavalaria da polícia para evitar que o povo espetador não estorvasse os trabalhadores. Deu-se principio a esta obra, e chegando-se à primeira pedra que servia de tampa se mandou fazer em pedaços, bem como a pia sobre que estava depositada, para não haver em tempo algum vestígios, nem se encontrar os mais diminutos restos das mesmas, com a forma que tinham. Entre uma e outra cobrindo a pia se achava uma pedra de ançã, e nela gravada a inscrição seguinte = Porto vinte e quatro de agosto de mil oitocentos e vinte. = levantada esta se encontrou debaixo um caixão de prata quadrilongo abaulado, o qual assim como a pedra com a inscrição foi acompanhada para os Paços do Concelho pela ilustríssima câmara e conduzido por dous oficiais de justiça. Neste mesmo ato de condução por ser aquele que procedia a inteira e imediata demolição e aniquilação do mesmo alicerce foi lançada ao ar grande porção de foguetes. Colocada sobre a mesa da vereação a pedra mencionada, e o referido caixão de prata, ali com a porta da sala aberta, uma porção de povo presenciou a abertura do mesmo, a qual se efetuou com uma chave de prata, que se achava na casa da câmara, e que foi apresentada neste mesmo ato pelo guarda do mesmo.
parte da planta para a colocação do monumento . trata-se da atual praça da Liberdade ainda longe aspeto do atual (para o documento na sua totalidade ver aqui)
Dentro dele se achou o seguinte = Um pergaminho pútrido em razão da muita água, que se achou dentro do caixão, que devia conter o Auto de que há cópia o livro de vereações do ano passado existindo no arquivo da câmara, o qual não pode ser lido por se desfazer por si mesmo no ato de ser tirado em consequência da sua mesma podridão; = tinha este o selo das armas da cidade pendente de uma fita, que mal se via ser branca e azul. Debaixo do dito Auto se achou uma medalha grande de prata em cuja circunferência no inverso dela se lê a seguinte inscrição = Porto vinte e quatro de Agosto de mil oitocentos e vinte. = Cortes gerais e por elas a Constituição. = No centro tem uma figura com coroa cívica, que segundo a informação dada significa o governo constitucional, tendo na mão esquerda uma alabarda, e sobre ela o Píleo, aos pés um jugo quebrado, insígnias respetivas à mesma figura, e com a direita apresenta sobre uma lápide um livro e nele escrito o seguinte = Mantida a religião católica, e a dinastia da Casa de Bragança. = E na lápide o seguinte = Na Praça, onde soou o primeiro brado da Regeneração Portuguesa se levante um monumento. / Portaria da Junta Provisória de vinte e três de dezembro de mil oitocentos e vinte. = No reverso tem a inscrição seguinte = No ano do senhor MDCCCXXII, = XXIII do pontificado de Pio VII, reinante D. João VI. Primeiro rei constitucional do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, ano segundo da primeira legislatura em XXIV de agosto foi lançada esta primeira pedra. = Junto com esta medalha se achou outra que tem a figura, que pela informação dada significa o amor da pátria com as quinas portuguesas gravadas no peito; tem na mão esquerda uma vara, e o Píleo na extremidade da mesma insígnia do governo constitucional proclamado em vinte e quatro de agosto de mil oitocentos e vinte: na mão esquerda tem raios em ação de abrasar um jugo, e um turbante que tem aos pés, insígnias representativas desta figura; na circunferência desta medalha tem a seguinte legenda: Por amor da pátria em vinte e quatro de agosto de mil oitocentos e vinte. = O Porto deu nome ao reino em mil cento e trinta e nove; restaurou-o em mil oitocentos e oito; regenerou-o em mil oitocentos e vinte. = Achou-se mais uma coleção de moedas todas do reinado de el-rei senhor D. João sexto, cunhadas no ano de mil oitocentos vinte e dois: a saber uma de ouro do valor, outrora de seis mil e quatrocentos réis, hoje de sete mil e quinhentos réis, outra dita de amatede daquele valor, seis moedas de prata, uma de quatrocentos e oitenta réis, outra de duzentos e quarenta réis, outra de cento e vinte réis, outra de cem réis, outra de sessenta réis, outra de cinquenta réis, uma moeda de bronze de quarenta réis, e finalmente uma de cobre de dez réis. Neste mesmo ato foi apresentada uma condessa, que nesta mesma manhã foi entregue ao guarda da câmara por um homem, que não disse quem era, nem declarou quem a remetia, nem ele guarda conheceu[-o?], a qual sendo também aberta continha o seguinte = uma trolha de prata, um martelo de prata com cabo de pau de buxo, uma esquadria de prata, uma régua de prata, e uma vassoura de fios de prata, com anel da mesma. O que tudo foi guardado em um dos cofres da câmara à exceção do pergaminho, por não se achar em estado senão de ser lançado fora, até que sua majestade se digne declarar o destino, que se lhe deve dar; ultimamente passou a ilustríssima câmara as suas ordens ao arquiteto da cidade, para que fizesse trabalhar os operários até que pusessem aquele local justamente no estado, em que antes se achava, sem que ficasse o mais leve vestígio do fundamento do mesmo monumento. Deste modo louvaram[?] por cumprida a portaria do governo acima transcrita, e por esta forma houveram por finda esta vereação, de que se fez este auto, que eu João Joaquim de Oliveira e Castro pelo respetivo escrivão escrevi.
Chocha do Couto = Souto = Freire de Andrade = Cirne = Lima
Que eram
O Juiz de Fora Manuel Nunes Cocha do Couto[4], Domingos Pedro da Silva Souto e Freitas, Henrique Carlos Freire de Andrade Coutinho Bandeira, Francisco de Sousa Cirne de Madureira, o procurador da cidade António José de Lima.
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É este apenas um dos vários documentos que Sousa Reis, com paciência de monge, copiou para os seus cadernos; preciosas escrituras para o conhecimento da cidade do século XIX. Outros haverá que o leitor avalie porventura de interessantes, e, a bem da verdade, eles valem mais se lidos e estudados em sequência cronológica. Contudo, para aqui optei por transcrever este, por descrever um ato físico que teve lugar na cidade à vista da sua população, mas também como simbolismo de todo um processo que, desencadeado na nossa cidade em agosto de 1820, apenas ficaria definitivamente estabelecido bastantes anos depois, à custa do sangue, miséria e desespero da população do país; que no geral era completamente alheia aos processos políticos que cornucopiavam à sua volta, ainda que no final isso significasse melhorar a sua condição, como se provou.
Viriato
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1 - Esta publicação foi originalmente colocada n' A Porta Nobre em 27.08.2020.
2 - Aliás, a nossa cidade seria politicamente fundamental durante todo o século XIX e princípio do seguinte.
3 - Creio mesmo que os mais graduados devem portar, oculta algures nos seus bolsos, uma cábula com datas e nomes que os impeça de meter o pé na poça, tal é a confusão que todo este período gera!
4 - Primeiro Juiz de Fora pós 1820, vale a pena ler o que sobre ele se transcreve no 1.º volume de Os Presidentes da Câmara do Porto (coordenação de Fernando de Sousa), onde nos é revelado como um absolutista tolerante; motivo pelo qual, possivelmente, logo em novembro foi exonerado. Era natural de Ílhavo.
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