sábado, 23 de novembro de 2024

da Condição Humana

Como tive oportunidade de referir ao iniciar este blog, não pretendo dedicá-lo completamente à história da cidade do Porto, ou mesmo de algum elemento dos seus arredores. Ele é um pouco mais do que isso, pois que também o pretendo tratar como um espaço de reflexão pessoal. O leitor(a) poderá concordar ou não com elas, e poderá mesmo, dentro da urbanidade que caracteriza o ser ponderado, declarar que discorda na caixinha do comentário.

Isto tudo para justificar o porquê de, mais abaixo, apresentar o excerto de um texto que o escritor Ferreira de Castro apôs à quarta edição da sua obra Emigrantes. Com efeito, quando a li, pensei para comigo que bem poderia ter sido eu a escrever (não teria a capacidade do já desaparecido literato) pois que inteiramente o subscrevo! Ele nunca passará de moda, essa é a infeliz verdade. O que abaixo se descreve faz parte da própria condição humana, enquanto a sociedade não procurar uma outra forma de se organizar.


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Os homens transitam do Norte para o Sul, de Leste para Oeste, de país para país, em busca de pão e de um futuro melhor.

Nascem por uma fatalidade biológica e quando, aberta a consciência, olham para a vida, verificam que só a alguns deles parece ser permitido o direito de viver. Uns resignam-se logo à situação de elementos supérfluos, de indivíduos que excederam o número, de seres que o são apenas no sofrimento, no vegetar fisiológico de uma existência condicionada por milhentas restrições. Curvam-se aos conceitos estabelecidos de há muito, aceitam por bom o que já estava enraizado quando eles chegaram e deixam-se fir assim, humildes, apagados, submissos, do berço ao túmulo -- a ver, pacientemente, a vida que vivem outros homens mais felizes. Alguns, porém, não se resignam facilmente. A terra em que nasceram e que lhes ensinaram a amar com grandes tropos patrióticos, com palavras farfalhantes, existe apenas, como o resto do Mundo, para fruição de uma minoria. E eles, mordidas as almas por compreensíveis ambições, querem também viver, querem também usufruir regalias iguais às que disfrutam os homens privilegiados. E deslocam-se, e emigram, e transitam de continente a continente, de hemisfério a hemisfério, em busca do seu pão.

Mas, em todo o Mundo, ou em quase todo o Mundo, vão encontrar drama semelhante, porque semelhantes são as leis que regem o aglomerado urbano. Não esmorecem, apesar disso. Continuam a transitar de olhos postos na luz que a sua imaginação acendeu, enquanto os mais ladinos, aproveitando todas as circunstâncias favoráveis ou criando-as até, fazem oiro com a ingénuidade dos ingénuos.

Ferreira de Castro (1898 -1974)

Eles continuam a transitar com uma pátria no passaporte, mas, em realidade, sem pátria alguma, pois aquela que lhes é atribuída pertence apenas a alguns eleitos. Para eles, ela só existe quando nos quartéis soam as cornetas da guerra ou nas repartições públicas se recolhem tributos. É assim na Europa e é assim nos outros continentes.

Nasce o homem, e, se não dispõe de riqueza acumulada pelos seus maiores, fica a mais no Mundo. Entra na vida -- já se disse e é bem certo -- como as feras nos antigos circos -- para a luta! Luta para criar o seu lugar, luta contra os outros homens, luta pelas coisas mesquinhas e não pelas verdadeiramente nobres, por aquelas que contribuiram para uma maior elevação humana. Para essas quase não há tempo na existência de cada um.

Transite ou não no Planeta, a maioria perece durante a batalha, porque não se removeu ainda, conforme a mais clara inteligência e o mais digno sentimento, a construção social erguida pelos potentados de outrora, e que hoje constitui, para a Humanidade, perene fonte de inquietação e de desditas.

(...)

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Para refletir.

Viriato

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