O que abaixo pode ler são seis registos, da pena de tantos outros autores, onde cada um em sua época e sua forma aludem ao convento
dominicano do Porto.
1) O primeiro, de João de Barros, remonta a meados do século XVI e foi-nos legada em duas versões: a mais antiga, de 1548, tida como o manuscrito original do autor e hoje à guarda Biblioteca Pública Municipal do Porto (aa), a outra numa cópia do século XVII disponível em linha na BND (bb):
aa) « É este mosteiro de S. Domingos de nobre templo e grandes capelas alpendres e jardins com tanta água que pode bastar a uma vila. Têm os frades muitas relíquias e uma parte do lenho da cruz, não tem muitas rendas mas tem muitos religiosos. (…) O mosteiro de S. Francisco é um edifício muito singular, grande, claro, aprazível (...)»
bb): «O templo deste mosteiro é nobre e de nobres capelas, claustros, alpendres, e jardim com tanta água que bem pode abastar a uma vila. Têm os frades muitas relíquias e do lenho da Vera Cruz, não tem muita renda, mas tem sempre muitos religiosos, e pouco há que se reformou da observância, tem uma cruz de prata de muito preço e valor. O mosteiro de S. Francisco parece edifício mais novo, é grande, claro, e aprazível, com muitas capelas de fidalgos que aí jazem (...)».
A passagem relativa ao convento franciscano não é aqui colocada gratuitamente: poderemos ler, na comparação que o autor faz entre os dois conventos, que as instalações do Frades Menores seriam mais recentes do que as dos Frades Pregadores? Acaso registará ela uma reedificação mais chegada ao seu tempo, apresentando por isso o convento dominicano aspeto mais antigo? Esta comparação, embora vaga, revela-se, a meu ver, de alguma importância: é que algumas décadas antes destas linhas serem escritas o dormitório dominicano havia ardido, sendo razoável que em 1549 o seu substituto já se encontrasse concluído… De certo sabemos apenas que o convento franciscano seria quase completamente renovado na segunda metade de setecentos, bem depois do tempo de João de Barros; o convento dominicano recebeu um novo dormitório por volta de 1619 e um novo claustro cerca de 1677. Quanto à igreja, principal espaço de qualquer casa religiosa, a franciscana ao tempo de João de Barros era a que ainda hoje se pode admirar, o que não sucederia com a dominicana caso tivesse sobrevivido, por ter sofrido alterações de vulto em época posterior. No entanto, ficará para sempre a dúvida sobre quais são as palavras exatas do autor e quais as acrescentadas pelos copistas do século seguinte.
2) O segundo registo, do mais conhecido Manuel Pereira de Novais, descreve-o da seguinte forma na Anacrisis Historial (obra pronta para edição c. 1690 mas nunca levada ao prelo):
«La iglesia es capacíssima y hermosissima, con mucha claridad, que le entra por hermosissimas vidrieras, y tiene un anchuroso claustro, y en el una capilla magnifica, que sirve de general de la lección de moral que allí se lee a los estudiantes de la ciudad, en orden a saber casos de conciencia para administrar los sacramentos. Los dormitorios son capacíssimos, anchos y de mucha luz, principalmente uno que sobresale a la parte de medio día, sobre eminente a la calle de las Congostas y rua Nueba, descubriendo con la vista casi a todo el rio Duero, obra moderna y que se començo por los anos de 1617, poco mas o menos. Todas las demás oficinas son admirables y la huerta y jardín de mucho recreo (...)».
Alguns pequenos comentários merece esta descrição: Sobre o amplo claustro torna-se difícil discernir a qual se refere Pereira de Novais, uma vez o autor viveu grande parte da sua vida apartado da sua cidade natal, e embora a sua obra fosse terminada por volta de 1690, ela havia sido iniciada décadas antes, muitas vezes com informações fornecidas por terceiros, ficando assim em dúvida se o autor se refere ao claustro antigo ou ao novo, ambos seus contemporâneos. Por esta altura, também o dormitório não era já o que João de Barros conheceu, mas sim o que viria a ser destruído pelo incêndio de 1832 cujas paredes arruinadas ainda foram captadas em fotografia. Ao terminar o capítulo sobre o convento dominicano, de forma pertinente e facilmente comprovado na planta da cidade antiga, o autor diz que ele «casi viene a ser centro de la ciudad moderna que hoy conocemos y habitamos» .
Notar que o autor é sempre bastante liberal em distribuir magníficos por toda a sua obra, pelo que o convento dominicano seria realmente de uma fábrica majestosa a julgar pelas suas palavras. A realidade não seria certamente assim.
o convento dominicano na mais antiga representação conhecida da cidade do Porto (Pier Maria Baldi, 1676)
3) A terceira descrição não o é propriamente. Trata-se da referência ao convento feita nas Memórias Paroquiais de 1758:
«(…) o convento é grande, a sua igreja ao presente se reforma, tem trinta religiosos e muito pouca renda: há na igreja deste convento uma imagem do senhor Jesus que nela colocaram os cidadãos para que o mesmo senhor os livrasse de uma peste que lavrava; tem muita devoção e no lado desta imagem se expõem todas as sextas-feiras o Santíssimo Sacramento em Lausperene».
Neste curto parágrafo constam duas importantes menções, que exploraremos à frente: a reconstrução da igreja, no próprio ano deste escrito; e a referência à confraria de Jesus, confraria polémica que fez correr muita tinta na cidade de Quatrocentos.
4) Segue-se o castelhano Enrique Florez, que no volume 21 da sua España Sagrada sucintamente refere:
«Su iglesia es de tres naves, con once altares, entre los cuales sobresale el del Rosario y el del Señor Jesus, donde todos los viernes se expone su majestad por breve de Benedicto XIV. En medio del claustro, que es espacioso, tiene una fuente y estanque de agua continua y nativa. Mantiene 40 religiosos. Junto a el está la iglesia de los terceros de S. Domingos, obra de las mejores de la ciudad, cuya orden empezó en Porto en el 1676. Aquí hace la chancilleria, o Rellazaõ, su fiesta en el primera octava del Espíritu Santo».
Esta descrição merece alguns breves comentários, que optamos por não elaborar, deixando a explicação para publicações futuras.
representação quase fotográfica de Marques de Aguilar na sua perspetiva da cidade do Porto desde a Torre da Marca até às Fontainhas (1791)
5) Avançamos agora para Agostinho Rebelo da Costa, autor que apanha já as estruturas conventuais no seu declínio (1789):
«A sua igreja, que era de três naves, foi devorada pelo fogo em mil setecentos e setenta e sete: presentemente servem-se os seus religiosos da capela pertencente à Ordem Terceira da Santíssima Trindade. Tem Lausperenne perpétuo todas as sextas-feiras por breve de Benedito XIV. É habitado por quarenta padres, que precisam para sua côngrua sustentação, de assistir em corpo de comunidade aos ofícios dos defuntos, e a acompanhar os enterros, a que são chamados».
Por esta altura serviam-se já os frades do templo barroco que fora propriedade da sua extinta ordem terceira; embora o incêndio que o autor refere tenha na realidade ocorrido em 24 de abril de 1778. No que toca aos rendimentos do convento, Agostinho Rebelo da Costa parece transmitir uma ideia de pobreza que se do ponto de vista teórico não se desenquadrava da exegese mendicante, na prática parece demonstrar um parco sustento para a comunidade que albergava.
6) Finalmente, abordemos as confusas referências feitas por Sousa Reis (c. 1865). Este autor não foge à maioria dos que se lhe seguiram, repetindo o ano errado de 1777 para o incêndio na igreja gótica (errado é também pensar que toda ela foi destruída, mas lá iremos...); dizendo que, consequentemente, «a nova igreja de S. Domingos, que foi demolida em 1835 foi construída depois», inferindo que a última surge em consequência da destruição da anterior. Para o autor o convento dominicano teve três igrejas no mesmo local: o primeiro templo teria ardido ainda no século XIV, o segundo seria o edifício gótico construído em substituição dele, e finalmente, após o incêndio do século XVIII, surgira o templo de 1835. A realidade não foi essa: no primeiro ponto, a suposta igreja e convento que ardeu no século XIV advirá de um lapso ou mesmo de um falso facto promovido por D. Rodrigo da Cunha no seu Catálogo (outro exemplo de uma informação repetida sem grande escrutínio até hoje); em segundo, Sousa Reis parece inferir a construção da igreja barroca como consequência da ruína da igreja gótica, ignorando que elas chegaram a coexistir, tendo a mais recente sido erguida pelo terceiro ramo da OP na primeira metade do século XVIII.
Caro leitor, nas próximas publicações e conforme for abordando os diversos temas, voltaremos de quando em vez a estes e outros autores.
Viriato
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Catálogo e História dos Bispos do Porto 2ª parte (1623), por Rodrigo da Cunha : Apontamentos para a Verdadeira História Antiga e Moderna da Cidade do Porto (c. 1865), de Sousa Reis : Descrição Topográfica, e Histórica da Cidade do Porto (1789) por Agostinho Rebelo da Costa : España Sagrada vol. 21 (1797) de Enrique Florez : Memórias Paroquiais vol. 30 : Anacrisis Historial (c. 1690) de Manuel Pereira de Novais : Geografia de Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes (c. 1548) de João de Barros
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