sexta-feira, 16 de junho de 2023

José da Silva Passos

Não consigo adjetivar o meu pensamento em relação a José da Silva Passos e o que me traz de volta, de quando em vez, a esta personalidade da vida política portuguesa e portuense do século XIX. É ele o Passos esquecido, se me permitem, à face da relevância nacional que obteve o seu irmão mais novo, Manuel da Silva Passos. Sei perfeitamente que quando se fala de José da Silva Passos, imediatamente se associa à guerra da patuleia; mas ele foi mais do que isso.

Um curioso opúsculo publicado em 1848, pouco depois do humilhante armistício de Gramido, sai em defesa do Passos José; nome porque era mais conhecido esta personalidade. Ele é no entanto prematuro pois não colhe todos os principais factos da vida deste homem. Para isso, e numa síntese, recorro ao seu obituário publicado a 13.11.1863 n' O Comércio do Porto (se alguma nota está menos exata, por favor remeter a reclamação à redação do jornal...):

«Faleceu ontem pelas 11 horas da noite um dos homens que mais figuraram nos acontecimentos políticos dos últimos tempos. Foi o Sr. José da Silva Passos. Damos em seguida alguns apontamentos biográficos deste ilustre cidadão.

O sr. José da Silva Passos havia nascido em S. Martinho de Guifões, concelho de Bouças, distrito do Porto. Foram seus pais Manuel da Silva Passos e D. Antónia Maria da Silva Passos. Depois de haver cursado os estudos preparatórios, foi cursar a Universidade de Coimbra e formou-se bacharel em direito e cânones. Em 1823, ainda quando estava em Coimbra, redigiu, juntamente com seu irmão, o “Amigo do Povo”, folha em que se defendiam corajosamente as ideias liberais. A independência e o arrojo da defesa valeram-lhe as perseguições dos sectários do sistema absolutista, de modo que teve de procurar na Espanha, na França e na Inglaterra segurança que não achava no seu próprio país. Durante a emigração colaborou com seu irmão na escritura de alguns opúsculos, em que se tratavam diversos assuntos relativos à questão portuguesa daquela famigerada época. A coleção deles é hoje raríssima. Apenas sabemos que haja uma em Portugal. A maior parte deles eram em francês. O sr. Passos José fez parte da oposição constitucional em que entravam então os srs. Passos Manuel, barão da Ribeira de Sabrosa, Leonel Tavares Cabral, duque de Saldanha, e José Liberato. 

No cerco do Porto, o sr. Passos José serviu de tenente e depois da capitão do batalhão nacional provisório de Santo Ovídio. Eleito presidente da câmara municipal do Porto, partilhou na resistência à lei das indemnizações de 31 de agosto de 1833. Em 1834 foi eleito deputado às cortes pela província do Douro, e, juntamente com os srs. Passos Manuel, barão de Ribeira de Sabrosa, Leonel Tavares Cabral, José Plácido Campeão, e João Bernardo da Rocha, votou contra a regência do Sr. D. Pedro IV. Em 1836 foi de novo eleito. É bem conhecida a grande parte que tomou em muitos atos da administração, inaugurada em 10 de setembro de 1836. O código de 31 de dezembro de 1836 foi em grande parte redigido por ele. Como subsecretário de Estado dos negócios da fazenda e subinspetor do tesouro, trabalhou com pasmosa diligência e atividade. Em 1837 foi encarregado, juntamente com o sr. Visconde de Sá da Bandeira de vir às províncias do norte por causa da revolta dos marechais Saldanha, e Terceira contra o ministério setembrista. Colaborou também na constituição de 20 de março de 1838, e na lei das eleições diretas de 9 de abril de 1838. Preso no castelo de S. João da Foz, assinou o requerimento que em 19 de maio de 1846 redigiu o sr. Francisco Jerónimo da Silva.

É de todos sabida a parte importantíssima que nos negócios da junta do Porto teve o sr. Passos José. Como vice-presidente dela, tomou a seu cargo a direção do que nessa época havia de mais importante. S. Ex.ª, como encarregado dos negócios da fazenda, reduziu as sisas a 5 por cento, permitiu o livre fabrico do sabão, aboliu o Tribunal do Tesouro Público, e o imposto do pescado, mandou montar a casa da moeda em Monchique. S. Ex.ª votou contra a concessão do armistício pela saída da expedição, e pela não aceitação dos quatro artigos do protocolo na sessão de 5 de julho de 1847. Depois dessa época o sr. Passos José foi por diversas vezes eleito deputado, e pertenceu à comissão da câmara, nas quais era muito assíduo e trabalhador. Na Associação Industrial Portuense, e na Junta Geral do Distrito prestou relevantes serviços para a organização da Sociedade Agrícola, do Asilo de Mendicidade, das exposições industriais, etc. Pouco depois da revolução de abril de 1852 foi principal redator do Eco Popular. Como subsecretário de estado dos negócios da fazenda, subinspetor do tesouro público e da comissão de 1837, não quis receber nenhum dos honorários que lhe cabiam.

O sr. Passos não tinha nenhuma comenda, hábito ou título; e, entretanto, quer em 1837, quer poucos anos antes da sua morte, era a sua influência junto dos ministérios bem conhecida em todo o país. Também não amontou riquezas. No seu testamento, datado de fevereiro de 1860, apenas deixa os campos de Perafita a seu sobrinho Francisco Pinto Soares da Silva Passos; 400$000 reis em inscrições a seu já defunto irmão Passos Manuel; algumas terras a suas sobrinhas D. Beatriz de Passos Manuel (hoje viscondessa de Passos) e D. António, e o resto de sua fortuna a seu sobrinho e testamenteiro José Pinto Soares da Silva Passos. Estes bens havia-os, na maior parte, herdado de seus pais. O sr. Passos José completava 61 anos em 18 de novembro de 1863. Era homem de muita coragem, de rara abnegação, tolerante, firme nos seus princípios, de uma vasta memória e de muito tino administrativo.

A doença mais terrível, mais triste, e mais dolorosa o tomou há alguns anos. À alienação mental sucedeu a paralisia. Daquela antiga energia, daquele cidadão laboriosíssimo, do agitador das massas, não restava senão uma massa inerte. E para que esta declinação para o túmulo fosse ainda mais horrorosa, S. Ex.ª, na sua alienação havia-se tornado inimigo daqueles que mais amava e queria. A história fará justiça a este cidadão prestante, e que prezava a sua pátria com sumo desinteresse. O seu cadáver há de dar-se à sepultura amanhã no cemitério de Nossa Senhora da Lapa.»

Quem quiser ler o testamento mencionado no texto, basta carregar aqui e consultar a digitalização disponibilizada pelo AHMP. Se se procurar, vai-se também encontrar o testamento de sua mulher ou o de seu pai. O de sua mulher, falecida poucos anos depois, está também digitalizado e tem esta curiosa passagem:


Foi por aqui que descobri ontem que José da Silva Passos e sua esposa haviam morado na denominada Quinta da Torre, na viela da Neta. Aliás, que ele morava na viela da Neta é já de conhecimento geral, o mesmo não acontece, segundo creio, quanto ao nome da casa. Mas não se pense que fosse uma casa senhorial ou de brasileiro torna-viagem esta quinta. António Maria Batista, a pp. 93 do seu Uma Década da História Contemporânea, lá diz que José Passos viveu do rendimento dos terrenos herdados de seu pai «numa casa de modesta aparência, na viela da Neta, da cidade do Porto». Não seria portante uma das mais degradadas habitações daquela «alfurja tortuosa e imunda», no dizer de Pinho Leal; mas não estávamos efetivamente, na presença de uma grandiosa habitação burguesa. Mas ela não deixaria de ser espaçosa, ao menos é o que se constata através da leitura do anúncio da sua venda que surge n' O Comércio do Porto de 28 de maio de 1872, onde ela é descrita da seguinte forma: «uma propriedade de casas, com um grande quintal, com poço e água de rega de preza, um dia sim outro não, denominada Quinta da Torre, situada na viela da Neta, com os ns.º 22 a 28 e o n.º 48 na mesma viela, que dá entrada para um armazém que lota 500 pipas». O anúncio refere o foro anual a pagar aos herdeiros de Leonor Ludovina Ferraz, a senhora mencionada no testamento da viúva de José da Silva Passos (ver imagem acima). Este pormenor é importante, pois embora a quinta fosse do domínio útil dos herdeiros do casal Passos e pudesse efetivamente ser vendida; essa venda não podia contudo ocorrer sem autorização do detentor do domínio direto. Quem acabou por comprar a quinta foi D.ª Antónia Adelaide Ferreira, a célebre Ferreirinha, que não teve muito tempo para dela fazer uso uma vez que poucos anos depois todas a propriedade foi expropriada para a continuação da rua do Sá da Bandeira (continuação porque nessa época o nome estava atribuído à atual rua de Sampaio Bruno).

No pormenor de uma panorâmica oitocentista, em boa hora colhida da torre da igreja dos Clérigos apresentada abaixo, assinalo, com a letra a, o terreno que acredito fosse outrora propriedade de José da Silva Passos. Com o b, por curiosidade, assinalo a quinta das freiras de S. Bento; os últimos grandes espaços rurais junto da cidade antiga (para ver onde ficava o terreno, em confronto com a rua que agora existe, poderá consultar a planta do AHMP, aqui).


Voltando a José da Silva Passos, vários são os autores que o referem, ainda que muitos não o tenham efetivamente conhecido, pois são de geração posterior. Um que o conheceu, tendo mesmo escrito um romance em torno da época da Junta do Porto, foi Teixeira de Vasconcelos (Um Prato de Arroz Doce); para quem remeto o leitor interessado.
Viriato

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