Desde o meado de setecentos, as ordens religiosas vinham sentindo uma forte queda na sua reputação, pela falta de vocações, pelo indecoro e relaxação(1), e má administração, por quem devia zelar pela sua subsistência. Sem querer aprofundar este assunto, que é complexo e exige a leitura de bibliografia especializada, refiro apenas que, no tocante ao convento da Ordem dos Pregadores do Porto, chegado o ano de 1822 a situação era tão má, que todas as obras de maior vulto foram suspensas. Consultando o livrinho que abaixo apresento, torna-se notória a razão pela qual, nesta altura, praticamente todas as estruturas do convento portuense se encontravam reduzidas a armazém, à exceção da antiga igreja dos extintos Terceiros, e do dormitório novo(2). O dinheiro escasseava, em época em que já de pouco valeria ter como paga de foros, galinhas boas de receber...
Foi já no final do consulado de Sebastião José de Carvalho e Melo(3), o célebre Marquês do Pombal, que o também célebre fr. João de Mansilha foi por ele eleito para encabeçar uma reforma dos conventos da OP, à qual pertencia. Mas poucos anos exerceu o cargo: a Viradeira em 1777 torna-o persona non grata, passando os seus últimos dias enclausurado no convento de Pedrogão. O que poderá ler abaixo, é uma carta de João de Mansilha, endereçada ao vigário in capite(4) do convento portuense, onde se mostra que em 1775 o convento dominicano do Porto seria o que em linguagem atual se afirma, uma empresa em falência técnica. Pertence este documento a um volume publicado em 1901, composto por cartas de Mansilha endereçadas a responsáveis de vários conventos dominicanos, retiradas da sua documentação pessoal (ver aqui). Eis o documento:
«R. P.e Prezd.° Vigário in capite do nosso convento de S. Domingos do Porto,
Estimo muito, que V. P.e ficasse socorrido, e sossegado com a providência, que lhe mandei para pagar essa dívida de seiscentos mil reis, que barbaramente se contraiu no governo passado, assim como o foram todas as outras, que deram causa à quase irremediável ruína, em que esse nosso convento se acha. Sobre esta matéria direi agora a V. P.e, o que se tem passado, e que até o presente lhe não disse para o não desanimar.
Logo, que manifestei ao Ilmo. e Exmo. sr. Marquês de Pombal o excessivo cúmulo de dívidas, com que esse convento estava gravado, e o pequeno rendimento anual que tinha; me disse S. Ex.ª — Que não havia outro remédio senão extinguir-se; posto que estivesse em uma cidade grande como essa é(5).
Para escapar deste golpe, procurei todos os modos mais submissos, e jeitosos; propondo ao dito Sr. = Que visto ser convento de uma cidade tão populosa, e daquelas, em que a nossa Ordem podia exercitar com fruto a sua instituição no serviço de Deus e do rei; me parecia estar nos termos de se conservar pelo meio de uma rigorosa administração; residindo nele tão somente um vigário administrador com dous religiosos sacerdotes, e um leigo; tudo na mesma forma, que S. Ex. me tinha mandado praticar em outros conventos: o benigno ânimo do dito Sr., sempre propenso a favorecer a nossa Ordem, anuiu a esta proposta.
Porém como V. P.e, por uma parte, foi temperando as urgências do convento, tendo mão nos litígios, vexações feitas pelos credores; e por outra parte, ainda eu não tinha tomado inteiramente o pulso ao miserável estado, em que o convento se acha; por estes motivos, suspendi até agora a expulsão de todos os religiosos desse para outros conventos; constituindo a V. P.e vigário administrador, como fiz em outros muitos, que se acham na mesma ruína.
Mas, tendo eu já o total desengano, de que a ruína desse convento se não pode remediar sem o golpe da administração, pelo qual se removam os religiosos assistentes nele: E receando, que o Exmo. Sr. Marquês de Pombal me ache negligente no meu ofício, e venha a perceber, que eu o enganei com a minha sobredita proposta; tomei o eficaz partido de instituir nesse convento uma meia administração; deixando a V. P.e prelado dele com doze até quinze frades, dos que tivessem melhor procedimento, e capacidade: Este é o projeto eficaz, em que estou fixo; nem posso obrar outra cousa sem o grande risco de incorrer na justa indignação do Exmo. Sr. Marquês de Pombal; suposto o que tenho passado com o dito Sr. sobre esta matéria.
Em cujos termos, enviei a V. P.e as seis assignações, e hei-de ir enviando sucessivamente todas as outras, até que nesse convento fiquem somente os doze até quinze frades:
Depois do que hei-de dar parte a S. Ex.ª desta minha disposição; e se o dito senhor a aprovar, ficará tudo neste ser: Porém se S. Ex.ª insistir na administração rigorosa; não tenho remédio senão lançar fora daí os religiosos todos, ficando só V. P. com dous sacerdotes, e um leigo.
É verdade, que V. P.e me não falou em assignação para os dous religiosos fr. Rodrigo da Vitória, e fr. António de Santa Teresa; antes me tinha avisado, que esse fr. Rodrigo era cousa da casa desse credor dos seiscentos mil réis; e que por esse motivo não seria boa ocasião para o tirar daí.
capa de uma edição mais recente do livro, composto por cartas de Fr. João de Mansilha |
Porém admiro-me muito, que V. P.e entenda, que eu tenha ânimo capaz para semelhantes vinganças frívolas, e inúteis.
Deve V. P. estar certo, que eu não inquieto aos meus súbditos por vinganças particulares; e só o faço por justíssimas causas.
Quando V. P.e me avisou, que esse fr. Rodrigo era cousa da casa do credor, que nos vexa; já eu tinha mandado a assignação para o dito P.e, sem saber cousa alguma de tal amizade.
Também lhe não mandei a assignação pelo motivo de ficarem aí poucos religiosos; pois que, nesses poucos, que eu deixava ficar, o queria incluir a ele; por que é meu patrício; nunca tive queixa dele; e foi meu discípulo Teólogo nesse convento:
Porém sucede chegarem-me aqui certas; e graves queixas sobre as suas arengas, e familiaridades de beatas, com que anda, e a quem confessa.
Este crime, além de ser daqueles, sobre que mais se exaspera a justa ira do Il.mo e Ex.mo Sr. Marquês de Pombal (o que bastava para eu lhe ocorrer de remédio pronto) é daqueles defeitos, que, não acautelados no princípio, podem facilmente em breve tempo dar um descrédito gravíssimo à nossa Ordem; assim como o deram outros religiosos nossos que principiaram por essas beatices; e um deles é dessa mesma cidade.
Na queixa, que se me fez desse fr. Rodrigo, se incluia também o outro P.e fr. António de Santa Teresa, pelo qual V. P.e me diz lhe pedira a Ex.ma sr. Condessa de Bobadela.
A. este respeito contarei a V. P.e, o que aqui me disse o Ex.mo Sr. Marquês de Pombal, em caso quase semelhante = Responda (disse S. Ex.ª) a essas pessoas altas, que o empenham por esses Frades, que os levem para suas casas, e os sustentem nelas.
Isto mesmo responderá V. P.e à Ex.ma sr. Condessa de Bobadela, da minha parte; e que para tudo, o que não encontrar ao serviço de Deus, e do ministério régio; me achará sempre muito pronto para servir a S. Ex.ª no pouco que cabe no meu limitado préstimo; porém quando os seus empenhos forem opostos às duas referidas; cousas nada posso obrar.
Suposto pois ver-me eu precisado a tirar desse convento muitos religiosos até que fiquem os doze, quinze; bem vê V. P.e, que é impossível anuir aos empenhos; por que anuindo a eles, nunca poderei mudar daí para fora religioso algum; porque todos eles tem suas valias; e neste caso, fica impossível o remédio à ruína desse convento; e eu exposto ao desagrado de S. Ex.ª
Nesta corte tem sucedido o mesmo com empenhos para muitas cousas, quase todas impraticáveis; e por isso nada obrei, cingindo-me unicamente às insinuações, e Ordens do Ex.mo Sr. Marquês.
O mesmo quero praticar nessa cidade com o Ex.mo Sr. João de Almada; por que sei, que tem os mesmos intentos, e a mesma probidade do Ex.mo Sr. Marquês seu primo: Em cujos termos, ordeno a V. P.e, que logo execute as assignações que já mandei; e as que agora mando, sem atenção alguma a empenhos de pessoas de qualquer qualidade, e condição que sejam:
E tão somente exceto desta generalidade, a estimadíssima pessoa do II.mo e Ex.mo sr. João de Almada.
Pelo que, se o dito senhor lhe ordenar, que, sem embargo dos defeitos do P.e fr. Rodrigo fique nesse convento; o deixe V. P.e ficar, assim como a todos os mais, que o dito sr. quiser; e aos outros mande logo sair, sem demora alguma.
Já disse a V. P. = Que eu não sou desafeto ao P.e fr. Rodrigo; e por isso o mandei para Vila Real, que é duas léguas ao pé de sua casa; quando merecia, pelas suas culpas, passar para o Alentejo.
Ele certamente está melhor, junto de sua casa, do que aí no Porto; e bem se vê, que o demónio das beatices, é o que o prende, e obriga a não sair dessa cidade, na qual nenhum lucro faz; porque nem sabe pregar, nem tem capacidade para nada mais do que para agasalhar essas beatas por presentinhos, que lhes mandam(6); e queira Deus, que não chegue a ser por outros motivos; que, quase sempre, andam anexos a semelhantes jacobeias. Das confissões de beatas dos ditos referidos dous P.es, estou eu muito bem informado; porém consta-me (ainda que sem maior certeza) haver nesse convento outros alguns P.es, que praticam as mesmas jacobeias: V. P.e me informará disto, o que houver na verdade para lhe dar a providência, que já dei a dous de Mancelos, e a um de Viana, aos quais mudei para a Batalha, sem embargo dos fortes empenhos do governo eclesiástico de Braga; e os proibi de confessar; cuja pena hei-de impor a todos os cúmplices em tal crime: E fique V. P.e na certeza, que se me ocultar alguma cousa nesta delicada matéria; e depois suceder caso público, que venha à notícia do Ex.mo Sr. Marquês de Pombal, ficará V. P.e responsável por tudo; pois que; eu não posso saber, o que se passa pelos conventos onde não assisto, sem que os prelados locais me façam sabedor.
Por ora vá V. P.e pagando os seiscentos mil réis, deixando uma clareza no cofre, do dia em que os tira, e satisfaz a dívida; e a seu tempo lhe avisarei o mais que se deve fazer.
Escuso advertir a V. P.e que antes de executar estas minhas ordens, manifeste tudo ao Il.mo e Ex.mo sr. João de Almada: pois que esta diligência deve V. P.e sempre fazer, quando eu lhe ordenar cousas relevantes; a fim de executar, tudo que o dito sr. quiser, que se execute; e de suspender, o que quiser se suspenda: Porque já disse a V. P.e, que este meu governo, em tudo, e por tudo há de ir de acordo com as vontades do Il.mo e Ex.mo Sr. Marquês de Pombal, e do Il.mo e Ex.mo Sr. João de Almada; tanto porque são cheios de toda a probidade, e retidão; como por serem as duas únicas pessoas, em que tenho reconhecido afeto sincero, e a quem devo infinitas obrigações.
Deus guarde a V. P.e &. S. Domingos de Lisboa, em o primeiro de julho de 1775.»
Deveremos interpretar certas passagens desta carta à letra, i. é, terá o convento realmente corrido o risco de ser extinto ainda antes da instituição da famosa Junta do Exame do Estado Atual e Melhoramento Temporal das Ordens Regulares? Não custa a acreditar em tal, dada a mão de ferro com que Pombal governava. Ainda assim tal não veio a acontecer e, melhor ou pior, conseguiu sobreviver até ao ano de 1832; só para nesse ano sofrer o coup de grâce às mãos do liberais de D. Pedro IV.
Viriato
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1) Admitindo a óbvia existência de bons frades, que procuravam manter a retidão do caminho que haviam escolhido.
2) Estruturas que Vila Nova desenhou e que cuja fachada ainda hoje existe.
3) 1774.
4) Responsável na ausência de um prior.
5) Notar que, contrariamente ao convento da ordem franciscana - da mesma antiguidade e índole da dominicana - o convento portuense não tinha a relevância nacional equivalente à cidade em que se encontrava estabelecido.
6) Num dos livros deste convento, depositado na Torre do Tombo, existem algumas referências à excessiva amizade de alguns frades, com o sexo feminino...
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