No ano de 1883 o Porto caminha a passos largos para a modernidade. É a década, por exemplo e para a cidade, da introdução do telefone, da luz elétrica e da água canalizada conforme modernamente a conhecemos. Vale a pena ler e meditar nas palavras que o ilustre académico, doutor Fernando de Sousa, em boa hora escreveu numa brochura sobre a banca do Porto no século XIX: «Nos últimos dois séculos as descobertas científicas, os progressos técnicos, a exploração e o controlo de novas e vastas fontes de energia, em suma, a Revolução Industrial (...), alteraram tão profunda e irreversivelmente a fisionomia económica e social do mundo, que os historiadores interrogam-se até que ponto a época contemporânea - séculos XIX e XX -, não constitui um período distinto, em qualidade e conteúdo, dos séculos precedentes. A partir da segunda metade do século XIX, o "passado" não estava simplesmente passado - estava morto.»
Falar por isso, de como era o Porto na década de oitenta de Oitocentos, é falar de um tempo híbrido, tempo em que o passado morto vai ficando cada vez mais esquecido, dando lugar a um presente a que não há como escapar: o do progresso. Esse mundo veloz de que hoje não queremos abrir mão.
Vão os leitores perdoar tão extensa argumentação para uma publicação que unicamente pretende trasladar uma porção de um texto de Ramalho Ortigão sobre a cidade do Porto, escrito em julho de 1883; que discorre unicamente do fascínio pelo Porto oitocentista que lhe deu origem. Posto isto, vamos ao texto:
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«O panorama, extraordinariamente belo, que se descobre da grande ponte sobre o Douro começa a desenrolar aos nossos olhos os seus diferentes aspetos tão variados, tão imprevistos. O rio, liso, e espelhado como uma chapa de vidro azul e verde. Uma extensa cordilheira de colinas, cobertas de pinheirais e desenhando no espaço vaporoso e húmido as curvas mais suaves e as perspetivas mais graciosas e mais risonhas. À beira da água, sulcada de barcos, de cor escura, esguios, da forma de gôndolas venezianas, remados de pé com largas pás que bracejam silenciosas e lentas, arredondam-se em grandes massas de um verde-escuro e espesso os velhos arvoredos das quintas do Freixo, da Oliveira, de Quebrantões e de Avintes.
Apeamo-nos finalmente na estação de Campanhã. Uma fila de carruagens sobre a linha do tramway. Um rumor diligente e alegre de tamancos novos sobre os largos passeios lajeados.
Mulheres bem feitas, caminhando direitas, de cabeça alta, cintura fina solidamente torneada sobre os rins, e alegres lenços amarelos, de ramagens vermelhas, encruzados sobre a curva robusta do peito. Canastras bem tecidas, grandes como berços, cobertas de pano de algodão em listras azuis e encarnadas.
As carruagens americanas recebem tudo, gente, cestos de fruta, canastras, trouxas de roupa branca, caixotes, seirões com ferramentas. Dos vinte passageiros de Campanhã que tomam lugar connosco no carro americano dois têm escrófulas, e um tem uma grossa corrente de ouro no relógio e um grande brilhante pregado no peito da camisa. Um pequeno, ruivo, sardento, de olhos azuis, apregoa o Jornal da Minhaum(1). As mulinhas trotam bem. E todas as casas, de um e de outro lado da rua, têm à porta a cancelinha baixa, de pau, pintada de verde. Estamos no Porto.
Os melhoramentos materiais na cidade que acabo de entrever são, na verdade, consideráveis. As novas ruas, a prolongação da Boavista, a de Mouzinho da Silveira, paralela à rua das Flores, a de Passos Manuel, desde Santa Catarina à Rua de Sá da Bandeira, a rua que liga a estação do Pinheiro(2) com a cidade, e outras, acham-se quase inteiramente guarnecidas de prédios e todos os prédios habitados. Outro tanto sucede nos bairros novos do Palácio de Cristal e da Duquesa de Bragança. O Bairro Herculano, entre o Jardim de S. Lázaro e as Fontainhas, é um recinto murado, fechado por uma grade de ferro, compreendendo duzentas ou trezentas casas, de rés-do-chão, ou de um andar, comodamente alinhadas, com um pequeno jardim comum, um mercado, lavadouros, enxugadoras, etc. Está já delineado, com as ruas em esboço, o projetado bairro do Campo do Cirne, em frente do Cemitério do Repouso, ao lado da Rua do Heroísmo.
E a nova ponte, que vem da serra do Pilar às proximidades do Paço do Bispo, demolirá e transformará em novas avenidas os bairros antigos do Barredo e da Sé(3).
Aqueles que há vinte anos partiram daqui, como eu, arriscam-se, regressando depois de mim, a não atinar com o seu caminho, a não encontrar a sua casa, nem a sua rua, nem os seus sítios. Deixou de existir a antiga Rua do Souto, a das Congostas, a dos Mercadores, a da Bainharia e a tão pitoresca e tortuosa Rua da Reboleira(4), com o seu arco da Porta Nobre, as suas janelas em ressalto como as das velhas casas flamengas, e as suas tanoarias, por entre cuja frescura era tão bom no Verão passar à sombra, no picante cheiro da aduela e dos vimes do vasilhame, ao vir da Foz em char-à-bancs sob o sol a pino!(5) Dir-se-ia que os nossos pais morreram para nós muito mais completamente do que morreram para eles os seus avós e os seus bisavós, levando consigo, ao desaparecerem, quase tudo quanto os rodeava na vida: a casa, o jardim, a rua que habitavam.
As modernas construções não têm aqui, como não têm no resto do país, carácter artístico. As casas novas do interior da cidade são tão chatas e tão inconfortáveis como aquelas que vieram substituir, e estão longe de dar ideia da encantadora reforma porque têm passado as edificações urbanas nos países setentrionais da Europa, especialmente a Prússia e o Hanôver. A estrutura geral dos prédios apresenta, porém, um aspeto consistente, não desagradável à vista: os telhados de lousa, as fachadas revestidas de azulejos, as padieiras de granito, tão nitidamente esquadriadas, dão ao todo um ar rijo, saudável, alegre, harmonizado bem com os tons frescos da paisagem, com a verdura das colinas, com as árvores das praças, com os parreirais dos jardins, com as nebrinas do Douro esbatendo no vapor aquático, polvilhando de sol, o risonho contorno da casaria e das montanhas.
Têm os progressos do espírito acompanhado a evolução dos melhoramentos exteriores? Esta questão é mais complexa, e não tenho tempo para a estudar em detalhe, nem espaço para a tratar por inteiro. O que vou fazer é transmitir as minhas primeiras impressões de turista em viagem na minha própria terra, com a superficialidade profissional de um repórter ao acabar de chegar a um país desconhecido, e propondo-se compará-lo a um país que conhece: o Porto de hoje posto ao lado do Porto de há trinta anos.»
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Daqui para a frente o Porto vai consolidar a sua imagem comercial e fabril, ganhando o epíteto de cidade do trabalho. Resta-me convidar o leitor interessado a saber mais sobre este trabalho de Ramalho Ortigão, a ler o texto original, publicado em 1887, no 1.º tomo d' As Farpas, subintitulado A Vida Provincial.
Viriato
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1~ O ditongo ão usado na linguagem popular na finalização ã, era característico no Porto da época. José Leite de Vasconcelos, que cursou medicina na cidade, ainda a notou e anotou, no seu opúsculo sobre a linguagem popular portuense.
2~ Hoje denominada estação de Campanhã.
3~ Referência à projetada, mas ainda não construída, ponte Luiz I.
4~ O autor queria referir-se, muito certamente, à rua dos Banhos.
5~ Ramalho Ortigão refere-se a um período que antecede imediatamente o ano de 1883. Com efeito, desde 1865 até c. 1883, o casco histórico da cidade vai em boa parte desaparecer, dando lugar a modernas e largas ruas, desafogadas e higiénicas. Ruas necessárias dado o crescimento comercial que o mundo sentia; consequência, creio, das comunicações mais seguras e rápidas possibilitadas pela navegação a vapor. Precisamente em 1883, desaparece o renque de casas na rua do Infante D. Henrique cujo espaço, necessárias à criação do jardim do mesmo nome.
NOTA: Recuperei esta publicação graças ao copia e cola de outro blog. Revi-a e reconstruí as suas notas, uma vez que o autor do referido blog copiou as referências sem as ditas! A data de publicação original terá de ser forçosamente anterior a 27 de fevereiro de 2018.
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