terça-feira, 26 de setembro de 2023

O Teatro Baquet

É bem conhecido o infeliz destino deste teatro, destruído por completo num incêndio, que em março de 1888 tirou a vida e mais de uma centena de pessoas. No entanto não é esta tragédia que pretendo abordar, antes apresentar duas descrições do próprio teatro, cada um por seus particulares olhos. A primeira chega-nos pela mão de Sousa Reis, que a deverá ter escrito c. 1870:


I

«Provêm o nome a este teatro de seu edificador e proprietário António Pereira Baquet, alfaiate, que pela sua agilidade, zelo e inteligência soube juntar uma fortuna que bem poucos da sua arte podem alcançar, ainda quando se envolvem em empresas de mais volumoso tráfico, enfim a importância da riqueza que ostentava e como adquirida em poucos anos, foi sempre tida como um dos factos raros acontecidos na presente época.

Possuidor já de uma bela casa situada na rua de Santo António desta cidade, e demais adornada com gosto e riqueza, na qual habitou até ao seu falecimento, sucedido no ano de 1867, montou nela o primeiro e melhor estabelecimento de fato feito que havia no Porto, e não obstante a sua riqueza mais que superabundante para a decente sustentação, nunca abandonou a profissão nem cessou de trabalhar durante a sua vida, antes pelo contrário ocupado de contínuo na direção do estabelecimento para sustentar-lhe o crédito adquirido arrojava-se com ânimo firme em tentativas de lucro em grande escala e a diosa fortuna incessantemente o favoreceu em todas.

entrada do Teatro Baquet pela rua de 31 de Janeiro . Quase em frente ao acesso, uma consola de gás, iluminação pública da época; na loja à esquerda temos o que parece ser um botequim (?), lendo-se na lateral Chocolates Matias.... e na loja à direita temos o que parece ser uma chapelaria . Em cartaz anuncia-se, para sábado, a ópera Rigoletto (estreada em 1851)


Tendo por vezes viajado na Europa em razão de suas especulações e confiado em demasia na ventura, que o seguia por toda a parte sem temor imaginou construir na dita rua um teatro, pondo de parte as considerações sérias e dignas de atenção, de muitas ocasiões faltar até a concorrência ao teatro de S. João, que tem em si todas as circunstâncias de um bem construído teatro, e demais havendo ainda outras casas destinadas ao recreio do povo, e levou o seu pensamento a efeito com a coragem de um capitalista, sem que ao menos solicitasse o menor subsídio do governo.

Aí está pois esse edifício como monumento que não se exprime a sua larguíssima compreensão e superior gosto que tinha de transportar para a nossa terra, o que achou e bom no estrangeiro, mas também a combinação que fez nessa construção da solidez com o belo, do útil com o agradável, do recreio com estudo e finalmente do ensino até com a aprendizagem de alguns mestres que na obra trabalharam e nela por direção e preceito do proprietário ficaram sabendo novos sujeituras(?) de edificação de prédios. Notando-se ainda, para seu louvor, o curto espaço de tempo consumido nessa obra, que seu dono sempre acompanhou desde os alicerces, até ao remate e conclusão. Sendo o solo pantanoso(1) firmou o teatro sobre estacaria, e sobre ela assentou fortíssimas paredes tecendo-lhe um fortíssimo travejamento tão excelente e vigoroso pousado em colunas de ferro, que o ficou seguríssimo o pavimento e em forma de sustentar não só o peso de numerosos concorrentes aos espetáculos, mas também a considerável impressão da fábrica interna, feita com tantos materiais volumosos; é sobretudo digno de reparo espacial o guarda pó e sua respetiva armação, pois a sua construção sem se usar de pregos, que foram substituídos por parafusos com suas respetivas porcas, permite a pronta reparação de qualquer pau, linha ou tesoura que se inutilize sem grave prejuízo da restante parte do madeiramento armado, o qual é de bom castanho e escolhido flandres.

o teatro numa planta de planificação da rua de Sá da Bandeira, de 1875 (aqui): 1- o Baquet e a sua passagem para a viela da neta (a), 2- teatro Príncipe Real (hoje Teatro Sá da Bandeira) e a sua passagem para a viela da Neta (b), existindo também uma passagem em escadaria para a rua de 31 de Janeiro

A planta deste teatro foi traçada por Guilherme Correia, não sei se com algumas alterações aconselhadas por outros engenheiros e arquitetos, lançando-se a primeira pedra dos alicerces em 22 de fevereiro de 1858 achou-se concluído em 13 de fevereiro de 1859, pois nesse dia se inaugurou e abriu com divertimentos públicos, consistentes em um baile de máscaras.

É muito elegante o frontispício, delineado e executado com aspeto de palacete de um andar: dividido em três corpos por pilastras nos quais tem sete janelas rasgadas até ao pavimento, contando três no centro com sua soleira geral de sacada, e duas de cada lado sem ela, são guardadas as do meio por varanda de ferro, as laterais por baixos varandins chumbados e firmes nas ombreiras de pedra para evitar-se a saliência externa à frontaria. Correspondem às janelas outros tantos portais no[s] corpos laterais, admitindo o do outro um único portão, que é a principal entrada do teatro: dentro fica o átrio e as portas de servidão interna do edifício.

traseiras do teatro no cotovelo da rua Sá da Bandeira (retângulo laranja). O corpo com frente para a rua terá sido construído posteriormente, dado que este lado esteve virado à viela da Neta


Uma empena elegante e em harmonia com todo o prospeto remata esse corpo do meio que no seu tímpano em letras dourada diz = THEATRO BAQUET = correndo dela para os lados varandas de granito abalaustrado, colocadas entre quatro pedestais sobre os quais assentam as estátuas pedestres(?) da Pintura, Música, Comédia, e Artes, que foram feitas em França. o interior é belo na vista, pois não se lhe pouparam adornos para tornar rico na entalha dourada que por toda a parte reluz, guarnecendo os peitoris dos camarotes, divididos por colunas de ferro fundido, grandes medalhões com os bustos de Camões, Gil Vicente, Garret, Moliere, Carrite(?), Auber, Mozart, Sheller, Rossini, Alfieri, Shakespeare, Quintana, Calderou, e Cervantes, homens que souberam, ilustrar os seus nomes e de tal forma que hão de atravessar os séculos vindouros; vêm-se igualmente representados ali Faunos e Anjos, fantasiado pensamento em que se ligou o sagrado e profano.

Contêm três ordens de camarotes, divididos uns dos outros por baixos tapamentos, visto cada ordem ser uma única galeria, ficando-lhes inferior em toda a circunferência uma tribuna geral e corrida com assentos à maneira de degraus.

O palco é pouco fundo, as plateias amplas mas nota-se-lhes a falta de ventilação, por quanto ficando em ponto muito mais baixo do que o pavimento da rua torna-se necessário para a servidão das mesmas plateias, galerias e tribuna o descer extensos lanços de escadarias; tem ainda um defeito sensível mas natural qual é o sentir-se a humidade que dimana do solo, o que às vezes incomoda a estada demorada dentro deste teatro.

Um enorme lustre de ferro fundido com 150 lumes de gás projeta nas noites de espetáculo abundantíssima claridade dentro do recinto, e dispensa outra qualquer iluminação; diz que custou 1:700$000 reis.

Foi a Companhia do Ginásio de Lisboa que veio ao Porto estrear o Teatro Baquet com representação de comédias, que em 17 de julho de 1859 pisou aquele palco pela primeira vez, e seguindo-se-lhe no dia 18 a infausta notícia da morte da rainha de Portugal D. Estefânia, esposa de el rei D. Pedro 5.º a mesma companhia se retirou para a capital temporariamente para depois terminar o seu contrato.»

*


Um outro texto também conhecido é o publicado por António A. Leal no seu Roteiro do Porto, parte integrante do Arquivo Popular, publicação semanal própria, dos finais do século XIX. Diz este autor:


II

«É bastante regular e até elegante a fachada deste teatro, em tudo muito inferior ao de S. João. O interior é asseado; mas não se atendeu aí muito às condições de comodidade.

Tem três ordens de camarotes, com vinte e oito cada ordem, e por baixo da primeira ordem, pouco superior ao plano da sala, corre uma espaçosa galeria, com cento e sessenta lugares. A plateia superior tem cento e cinquenta lugares e a inferior duzentos e quarenta; as varandas quarenta. Mas tanto os camarotes como os lugares das plateias, são muito mais estreitos do que os de S. João.

A primeira ordem de camarotes fica ao nível da rua, e à sala do espetáculo desce-se por duas escadas laterais.

É a sala bastante elegante. Do centro pende um magnífico lustre, cuja infinidade de luzes reverbera na grande cópia de dourados que decoram a sala. Os parapeitos dos camarotes têm elegantes ornatos de molduras douradas; e nos da segunda ordem aparecem, no centro dos ornatos, e em letras encarnadas sobre o fundo de outo os nomes de Cervantes, Calderon, Quintana, Alfieri, Shakespeare, Corneille, Rossini, Schiller, Mozart, Auber, Molière, Gil Vicente, Garret e Camões.

Foi lançada a primeira pedra para o teatro Baquet no dia 22 de fevereiro de 1858 e a 13 de fevereiro do ano seguinte abriu-se com um baile de máscaras; mas a verdadeira inauguração, depois de concluídas todas as obras de ornamentação, foi na noute de 16 de julho de 1859, representando a companhia do teatro do Ginásio, de Lisboa, o drama O Segredo de uma Família.

A planta geral do edifício(2) foi dada pelo seu proprietário António Pereira Baquet, já falecido, cujo busto se vê, colocado no centro de um medalhão de bronze, na frente da fachada do teatro. O plano desta é do sr. Guilherme Correia. É simples, mas elegante, como dissemos. Serve-lhe de remate uma balaustrada de pedra, sobre a qual assentam quatro estátuas de mármore, que representam a pintura, a música, a comédia e as arte.

Custou o edifício cinquenta contos de reis».

*

Espero que a leitora destes excertos tenha sido prazerosa e informativa para si, leitor(a). Quanto a este teatro, voltaremos mais â frente a ele, nomeadamente ao seu desgraçado fim.

Viriato


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1. É zona de passagem de vários aquíferos, que acabam por desaguar no desaparecido rio da Vila.

2. A planta a que o texto alude, de 1858, pode o leitor encontrá-la aqui. Sobre ela, comentou o técnico da câmara Joaquim da Costa Lima Júnior: «A planta que apresenta António Pereira Baquet, considerada como fachada isolada das outras da rua de Santo António está nos termos de ser aprovada; porém vê-se claramente que o portal largo que ocupa o centro tem muito pouca altura em relação à sua largura, e como dessa mudança não resulta inconveniente nenhum ao resto da decoração, antes concorre a dar-lhe melhor harmonia, parece justo que o particular suba a padieira quanto lho permitir o cachorro do centro. § Porto 4 de março, de 1858»

FONTES: Apontamentos para a Verdadeira História da Cidade do Porto (vol. 5), por Henrique Duarte e Sousa Reis, à guarda da BPMP e Roteiro do Porto inserto no semanário Arquivo Popular (1871-1874), de António A. Leal

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