Em 1883, José Leite de Vasconcelos acompanhou um estudante da Academia Politécnica do Porto, Manuel António Branco de Castro, à sua terra natal de Duas Igrejas, aldeia transmontana localizada no concelho de Miranda do Douro. O objetivo? Melhor conhecer o mirandês, língua da qual Leite de Vasconcelos é responsável pelos primeiros estudos científicos. O texto abaixo apresentado é a descrição da sua viagem de ida, e é demonstrativo de como era ainda morosa a viagem ao interior do país. Se não é uma publicação sobre o Porto, não deixa de diretamente o envolver, uma vez que foi nesta cidade que a jornada de descoberta do grande investigador iniciou.
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«Saímos ambos do Porto em meados de Agosto; e só chegamos a Duas Igrejas, termo da nossa viagem, passados cinco dias!
Até o Pinhão tivemos comboio. Aí tornou-se-nos necessário esperar pela diligência que seguia para Macedo de Cavaleiros. O Pinhão fica no Alto Douro, nas margens do rio, entre montanhas. Nunca estive em terra mais quente: não se podia chegar à janela com o calor; parecia a zona tórrida. Finalmente chocalharam na rua as campainhas da diligência, e nós continuamos nela a nossa viagem até Macedo, subindo a íngreme estrada de Favaios debaixo das frechadas ardentes do sol, atravessando aos fins da tarde os vinhedos de Alijó, e passando, já de noite, por Murça, a da célebre porca, e, ao romper da madrugada, por Mirandela, de que o cocheiro disse, segundo o provérbio, mira-a de longe, e foge dela, não sei com que fundamento, a não ser o da aliteração e da rima, pois a vila, estendida nas margens do Tua, é pitoresca, e tinha, para matar a fome e a sede dos passageiros, boa vitela e melhor vinho verde.
Vêm os leitores que a viagem foi demorada. Se eu a isto acrescentar que a diligência não oferecia cómodos de qualidade nenhuma, e, pelo contrário, nos levava aos solavancos, sem nos deixar dormir um momento, compreenderão que conseguir o prazer de ouvir in loco dois ditongos mirandeses não custa tão pouco como à primeira vista parece.
Valeu-nos ao menos pelo caminho a ótima, e de mim sempre lembrada, companhia do meu excelente amigo, o Rev.do P.e António Caetano Vaz Pereira, de Parada, a par de Bragança, o qual, apesar de só então travar conhecimento comigo, logo na nova viagem que fiz a Trás-os-Montes, no ano seguinte, me acolheu na sua casa, e, além de me dar algumas informações linguísticas acerca da Beira Baixa, onde ele tinha estado, me auxiliou muito nos estudos a que eu nesse ano procedi nos domínios da dialetologia e etnografia raianas. Receba mais uma vez o virtuoso e lhano sacerdote os meus agradecimentos.
Em Macedo de Cavaleiros, por falta de condução pronta, dormimos uma noite, e estivemos, parte de dois dias, aquartelados na estalagem da Braguesa, boa mulher do Minho, que, como do seu santo arcebispo D. Fr. Bartolomeu dos Mártires refere o cronista Fr. Luís de Sousa, nos deu muito riso, mas nada de vaca, pois nos tratou quaresmalmente, se bem me lembro, a bacalhau e batatas.
De Macedo seguimos em burros, levando duas mulheres e um rapaz por arreeiros. A viagem, através de descampados infinitos, cobertos de resteva de centeio, o que dava à paisagem monotonia horrorosa, foi extremamente fatigante. Aqui e além via-se um monte, cujo mato ardia (queimadas), descia-se por uma ourreta, ou atravessavam-se rios como o Sabor, o Maçãs e o Angueira. A estrada é sempre bastante acidentada, mas nas ladeiras vizinhas ao rio Sabor e ao rio de Maçãs é que ela se torna muito difícil: só se pode caminhar a pé. Ambos os rios ficam em fundos vales; o do rio Sabor, todavia, é realmente majestoso! Uma série de montanhas altas, primeiro; depois um imenso declive, apenas com um carreiro tortuoso para se passar; por fim lá em baixo o rio, escuro e soturno.
Pelo caminho fui observando diversos costumes populares, e copiando xácaras que as arreeiras me ditavam. Nas eiras trabalhavam homens e mulheres, trilhando ou talhando pão. Chama-se trilho um instrumento de lavoura destinado a extrair o grão da espiga dos cereais: tem forma retangular, com uma das extremidades levemente virada para cima, e a parte inferior cravejada de seixinhos; é arrastado por um boi. Quem não conhecer o tribulum romano, descrito por Varrão, tem aqui o modelo, e o próprio nome ainda. A operação chama-se trilha. Os carros de bois diferem dos da Beira Alta: o timão é formado por duas hastes que a certa distância se encontram angularmente, e depois se fundem numa única. Encontram-se frequentemente, em meio do deserto, pombais redondos, de pombas bravas; e nas povoações as fontes são cobertas de telhados em forma de ângulo diedro, com uma cruz por cima, como vestígio cristão do antigo culto pagão das águas.
Atravessamos tristes lugarejos, como Limãos e Gralhós. Os habitantes estranhavam a comitiva, mas cortejavam-nos quando passávamos. A gente trasmontana, como diz um documento do séc XV, citado por Viterbo, é simples. Uma vez perdemo-nos no caminho, e andamos mais de quanto tempo à toa por uma serra solitária; tendo lobrigado casualmente lá ao longe um rebanho de gado miúdo, dirigimo-nos para ele, na ideia de obtermos do pastorico informações a respeito da estrada, mas, como o gado, à aproximação da cavalaria e das duas mulheres e do rapaz, começasse logo todo em debandada, o guardador aterrou-se, e sumiu-se de tal modo entre os penedos, que o não pudemos ver.
Já cansado do caminho, eu perguntava de vez em quando ao rapaz se ainda faltava muito para chegarmos à Matela, onde iamos pernoitar. O rapaz respondia a princípio: inda falta um cacho bem bô!; depois: inda falta um cacho; por fim, querendo com o diminutivo suavizar a minha agrura: só falta um cachico. Mas, pelo que depois vi, o cachico era mais de uma légua, mesmo das estiradas léguas transmontanas; e então no cacho e no cacho bô nem falemos! Que só as pernas do meu burro poderiam dizer ao certo a significação dessas palavras terríveis. Geralmente os transmontanos medem as léguas e as meias léguas pelas distâncias das povoações; contam uma légua, se estas são muito afastadas umas das outras; contam meia, se o são pouco. Às léguas grandes chamam léguas de pero.
Ao anoitecer entravamos na Matela, cujas ruas, por ser ocasião de ceifas e malhas, estavam cobertas de palhiço. Dormimos em casa de uns benévolos camponeses, comodamente, em boas camas de lençóis de linho, ao som do canto estrídulo dos ralos e do coaxo das rãs, que velavam lá fora no campo da porta.
Da Matela partimos no dia seguinte para Duas Igrejas, passando por Campo de Víboras e S. Pedro da Silva.
A hospitalidade e a afabilidade dos Trasmontanos daqueles sítios são dignas do maior elogio. Muito devi eu a essas duas virtudes na minha viagem. Apenas chegávamos a uma venda, que as vendas eram, as únicas estalagens, eu tratava, como é meu costume, de investigar os costumes e a literatura populares: imediatamente se aglomeravam em volta de nós mulheres e homens prontos para patentearem o tesouro das suas tradições, de modo que o que a maior parte das vezes me faltava, não eram informadores, era tempo para escrever. (...).
Campo de Víboras, ou, como lá dizem, o Campo, é pequena aldeia, triste, e escondida atrás de enormes penedos chamados a Vila Velha, porque aí aparecem vestígios de construções antigas; não se vê na povoação nem sequer um só edifício caiado, e o horizonte é o menos largo possível. A Matela tinha melhor aspeto, com os seus quintais arborizados a darem-lhe alguma vida.
A nossa demora em S. Pedro da Silva foi muito curta. Quando cheguei aqui, respirei com os pulmões completamente à vontade, porque enfim, post tot tantosque labores, entrava na Terra-de-Miranda, e podia à farta ouvir falar o maravilhoso e enfeitiçado dialeto dos meus amores. Estivemos em casa do sr. abade, cuja irmã, de grossas polainas, e de vestido de burel, nos deu queijo e vinho. . . já em mirandês.
Pela tarde do mesmo dia as cabeças dos nossos burros aproavam em Duas Igrejas, termo da digressão. Oh! abençoada terra! tantas vezes invoquei o teu nome, quando me vi perdido nas montanhas, ou desci, cheio de calma, as ladeiras do Sabor! Agora direi com Virgílio: hic dormis, haec patria est .. não a minha, mas a do mirandês, que eu ia estudar.»
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E assim se viajava para o interior profundo, nas últimas décadas de oitocentos. Onde era já possível encurtar os imensos dias que anteriormente eram necessários, pela existência de um meio de transporte que ainda hoje o país não percebeu ser imprescindível para a sua união...
Viriato
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FONTE: Estudos de Filologia Mirandesa (vol. 1), de J. Leite de Vasconcelos, publicado em 1900.
Quem se atreveria hoje a viajar nessas condições?
ResponderEliminarÉ verdade. Parecer-nos-ia de loucos. Embora muitos aventureiros existam hoje, que atravessam continentes inteiros de bicicleta, mesmo que muitas vezes com a viagem facilitada pela existência do asfalto.
EliminarUma coisa no entanto os antigos tinham em melhor perspetiva: uma melhor sensação das reais distâncias entre os povoados, numa forma menos artificializada de viajar!