A descrição fonte da Arca que abaixo apresento e cujos restos viram de novo a luz do dia há poucas semanas[2], mas que terão de ser removidos para dar lugar ao futuro (a estação do metro da praça da Liberdade), será por ventura pouco conhecida por se encontrar no quinto dos sete volumes manuscritos de Henrique Duarte e Sousa Reis (1810-1876), que se mantêm inédito.
«Descrição documentada do edifício e Fonte da Natividade, situada na Praça Nova, Praça da Constituição, e ultimamente chamada Praça de D. Pedro, que foi edificada como bazar público e passeio, pelo Senado da Câmara no ano de 1682
A fonte da Natividade foi mandada levantar pelo senado da câmara, e à custa do cofre da cidade no ano de 1682, não só para aproveitar ao uso público a sua água, que naqueles sítios aparecia, como para junto dela se formar um passeio agradável nas tardes de verão, e assim acontecia, porque era sumamente frequentado pelos cidadãos de todas as classes pela frescura, que lhes ofereciam as muitas árvores, de que era rodeada esta fonte e o terreno próximo. A sua planta topográfica já a deixo riscada, e posto que não respondo por sua inteira exatidão, mostra ela tanto, quanto basta para esclarecer a descrição que me propus escrever deste edifício, do qual nem as sombras já existem. Pelo lado do norte confrontava com a Praça Nova fazendo face aos Passos do Concelho, pelo nascente igualmente com a mesma praça e ficava fronteiro este edifício ao do convento dos padres Congregados do Oratório, pelo sul corria a rua que atravessava da Porta de Carros para a Calçada dos Clérigos, à qual a esse tempo vulgarmente se chamava Passeio dos Loios, pelo poente corria uma linha de propriedades particulares que lhe ficavam encostadas, e pela frente delas havia a rua chamada de Entre Vendas, porque aí estavam estabelecidas de um e outro lado da mesma rua. Este edifício que se intitulava Fonte da Natividade teve primeiramente o nome de Fonte da Arca, e era ele um bazar de miudezas, posto serem estes estabelecimentos para ali levados muito posteriormente à sua fundação que só foi delineada para passeio público dos habitantes desta cidade; pelas suas três faces externas de nascente, norte e poente não apresentava obra mais alguma, que as paredes ligeiramente rebocadas com duas portas que davam ingresso ao bazar pelo norte, e as paredes rematava o beiral do telhado que obrigava as tendas ou pequenas lojas estabelecidas no seu interior. Pela parte do sul corria um parapeito talvez da altura de 7 palmos, que faceava ou nascia do pavimento do trânsito público, ao qual se encostavam as duas escadarias de pedra, que convergindo ao centro prestavam-se ambas a facilitar a descida para o tanque e suas bicas, que estavam soterradas abaixo do nível da praça e ruas laterais cousa de 15 a 20 palmos, e estas escadarias eram vedadas por cancelas de madeira, as quais estavam sempre fechadas com chaves possuídas pelos moradores próximos, que só tinham a servidão da água; posto que antigamente nem estas cancelas tinham por ser geral e público o passeio, e o desfrute de todas as avenidas desta ponte; porém como de tudo abusa o povo, e às autoridades cumpre cortar esses abusos, sem dúvida desta forma lhe estabeleceram uma barreira insuperável a seus desatinos. No primeiro plano, como se vê da planta, e(?) era mais baixo que o nível do pavimento público, estava assentada a grande taça ou tanque da água, que aí continuamente despejavam quatro bicas de bronze colocadas nas bocas de outras tantas carrancas de pedra, das quais três ainda se vêm no chafariz da praça de Santa Teresa; esta taça tinha a mesma forma, que o átrio ou pátio central deste edifício, que como está traçado continha três faces, das quais a central é a principal. Estas três fachadas, eram como partidas, ou para melhor dizer duas cornijas* salientes e portas separavam as duas do lado em dois corpos, e a do centro em três: a primeira destas cornijas* corria na direção do pavimento térreo das ruas e praça adjacente, e a segunda rematava o andar corrido em circunferência; se a fachada principal não contivesse o acrescento do terceiro corpo, em que excedia os laterais. Neste correr em circuitando o edifício internamente observavam-se as lojas das diferentes fazendas e miudezas, que são delineadas na planta, e facilmente se alcança, a sua servidão se fazia pelo corredor ao longo de toda a sua extensão sendo seu ingresso pelas duas portas, de que já falei voltadas para os Paços do Concelho, e outras, uma de cada lado assentes quase a par das cancelas, que fechavam a descida para o tanque. A luz que recebiam as lojas, era-lhes transmitida por frestas praticadas nas paredes voltadas para o pátio, E algumas clarabóias abertas e envidraçadas, que se viam salientes sobre o telhado. A fachada principal continha no primeiro corpo as quatro bicas e carrancas, no segundo via-se uma laje quadrilonga, que tinha a seguinte legenda.
i1 Planta topográfica do antigo edifício da Fonte da Arca chamada depois Fonte da Natividade, já demolida. A azul o autor representou os terrenos dos particulares, a vermelho o passeio, depois corredor e a amarelo o tanque (a legenda faz também menção às quatro bicas, na parede norte e às tendas que ladeavam a estrutura em três ângulos (exceção para o sul)
Divitias, offert, argentea munera fundit,
Thesauros populo consecrate arca suos,
Solvitor in liquidum christalus candida flumen.
Qui sitit accedat non nocet unda, bibat,
Hoc opus egregium cura obsequiosa Senatus
Extulit, excelsus thronus ut esset aquis
Expensis Publicis
AD 1682
E no terceiro em que excede, ou se avantaja aos dois laterais estava montada uma larga sacada com varanda de ferro, e duas grandes lanternas nos cantos e extremos dela, nas quais se alimentava constantemente luz de azeite, em honra de Nossa Senhora da Natividade, cuja imagem estava colocada em um oratório ou grande nicho em forma de santuário, que se eleva acima desta sacada, e na qual pousavam aos lados do oratório duas colunas de granito primorosamente lavradas; servia de remate a esta construção, no centro e parte superior do oratório as armas da cidade, e dali partiam para os lados em toda a extensão desta fachada central diversas curvas cujas eminências eram adornadas por pedestais, e neles pousavam as armas reais, pirâmides e estátuas diversas alternadamente colocadas. As cornijas* finais da[s] duas fachadas laterais também eram cobertas em distâncias iguais com estes embelezamentos. Projetou-se demolir toda esta obra, quando em 1820 se deliberou levantar na Praça da Constituição o monumento para eternizar o faustoso dia 24 de agosto desse ano, mas sobrevieram tais estorvos, que só depois de mais 13 anos decorridos, é que se conseguiu desobstruir esta formosa praça (...) »
* no original coronigens
i2 Parcial da planta de 1822 para o alinhamento da praça da Constituição, sentido de regularizar o terreno rumo à futura praça da Liberdade: a) o que restava da fonte da Natividade . b) tanque construído no final do século XVIII em substituição da fonte da Natividade e por vezes confundido com ela . c) Palácio das Cardosas, hoje ocupado pelo Hotel Intercontinental . d) edifício da Congregação do Oratório, do qual apenas subsiste a igreja . e) Paços do Concelho oitocentistas, demolidos em 1916
Viriato
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1. Já em 2019 o arq. Aguiar Branco, notável investigador e divulgador de temas portuense, havia produzido um muito bom artigo sobre esta fonte, recreando-a quase ao pormenor e de forma correta. Vale bem a pena conhecer esse artigo do iníco ao fim, pois creio que o meu apenas vem complementá-lo.
2. Escrevia originalmente em março de 2022.
FONTE: Henrique Duarte e Sousa Reis, Apontamentos para a Verdadeira História Antiga e Moderna da Cidade do Porto... vol. 5 (inédito, mas agora digitalizado) IMAGENS: 1. Cópia de Henrique Duarte e Sousa Reis do desenho publicado na Borboleta Constitucional - 2. Plano da Praça da Constituição, levantado para designar o lugar em que se há-de colocar o monumento designado a perpetuar o fausto dia 24 de Agosto de 1822