domingo, 6 de outubro de 2024

A Fonte da Arca

No passado mês de agosto de 2023 tive a possibilidade e felicidade de dar a conhecer aos interessados pela histórica portuense o aspeto do espaldar (e não só) da fonte da Arca na cidade do Porto, através da publicação de um artigo na já secular revista O Tripeiro; em parceria com o meu amigo, o arqueólogo Dr. Mauro Correia. Confesso que foi realmente um achado, um acaso, que ainda assim me deixou verdadeiramente contente por poder ser eu a dar a conhecer a imagem dessa fonte tão citada mas cuja traça se ignorava[1]. A publicação que o leitor poderá ver abaixo, contudo, não desenvolve o tema e a divulgação das plantas, antes repesca uma – mais uma – das publicações que se encontravam no meu antigo blog. Vale a pena lê-la bem até ao fim...


* * *


A descrição fonte da Arca que abaixo apresento e cujos restos viram de novo a luz do dia há poucas semanas[2], mas que terão de ser removidos para dar lugar ao futuro (a estação do metro da praça da Liberdade), será por ventura pouco conhecida por se encontrar no quinto dos sete volumes manuscritos de Henrique Duarte e Sousa Reis (1810-1876), que se mantêm inédito.


«Descrição documentada do edifício e Fonte da Natividade, situada na Praça Nova, Praça da Constituição, e ultimamente chamada Praça de D. Pedro, que foi edificada como bazar público e passeio, pelo Senado da Câmara no ano de 1682

A fonte da Natividade foi mandada levantar pelo senado da câmara, e à custa do cofre da cidade no ano de 1682, não só para aproveitar ao uso público a sua água, que naqueles sítios aparecia, como para junto dela se formar um passeio agradável nas tardes de verão, e assim acontecia, porque era sumamente frequentado pelos cidadãos de todas as classes pela frescura, que lhes ofereciam as muitas árvores, de que era rodeada esta fonte e o terreno próximo. A sua planta topográfica já a deixo riscada, e posto que não respondo por sua inteira exatidão, mostra ela tanto, quanto basta para esclarecer a descrição que me propus escrever deste edifício, do qual nem as sombras já existem. Pelo lado do norte confrontava com a Praça Nova fazendo face aos Passos do Concelho, pelo nascente igualmente com a mesma praça e ficava fronteiro este edifício ao do convento dos padres Congregados do Oratório, pelo sul corria a rua que atravessava da Porta de Carros para a Calçada dos Clérigos, à qual a esse tempo vulgarmente se chamava Passeio dos Loios, pelo poente corria uma linha de propriedades particulares que lhe ficavam encostadas, e pela frente delas havia a rua chamada de Entre Vendas, porque aí estavam estabelecidas de um e outro lado da mesma rua. Este edifício que se intitulava Fonte da Natividade teve primeiramente o nome de Fonte da Arca, e era ele um bazar de miudezas, posto serem estes estabelecimentos para ali levados muito posteriormente à sua fundação que só foi delineada para passeio público dos habitantes desta cidade; pelas suas três faces externas de nascente, norte e poente não apresentava obra mais alguma, que as paredes ligeiramente rebocadas com duas portas que davam ingresso ao bazar pelo norte, e as paredes rematava o beiral do telhado que obrigava as tendas ou pequenas lojas estabelecidas no seu interior. Pela parte do sul corria um parapeito talvez da altura de 7 palmos, que faceava ou nascia do pavimento do trânsito público, ao qual se encostavam as duas escadarias de pedra, que convergindo ao centro prestavam-se ambas a facilitar a descida para o tanque e suas bicas, que estavam soterradas abaixo do nível da praça e ruas laterais cousa de 15 a 20 palmos, e estas escadarias eram vedadas por cancelas de madeira, as quais estavam sempre fechadas com chaves possuídas pelos moradores próximos, que só tinham a servidão da água; posto que antigamente nem estas cancelas tinham por ser geral e público o passeio, e o desfrute de todas as avenidas desta ponte; porém como de tudo abusa o povo, e às autoridades cumpre cortar esses abusos, sem dúvida desta forma lhe estabeleceram uma barreira insuperável a seus desatinos. No primeiro plano, como se vê da planta, e(?) era mais baixo que o nível do pavimento público, estava assentada a grande taça ou tanque da água, que aí continuamente despejavam quatro bicas de bronze colocadas nas bocas de outras tantas carrancas de pedra, das quais três ainda se vêm no chafariz da praça de Santa Teresa; esta taça tinha a mesma forma, que o átrio ou pátio central deste edifício, que como está traçado continha três faces, das quais a central é a principal. Estas três fachadas, eram como partidas, ou para melhor dizer duas cornijas* salientes e portas separavam as duas do lado em dois corpos, e a do centro em três: a primeira destas cornijas* corria na direção do pavimento térreo das ruas e praça adjacente, e a segunda rematava o andar corrido em circunferência; se a fachada principal não contivesse o acrescento do terceiro corpo, em que excedia os laterais. Neste correr em circuitando o edifício internamente observavam-se as lojas das diferentes fazendas e miudezas, que são delineadas na planta, e facilmente se alcança, a sua servidão se fazia pelo corredor ao longo de toda a sua extensão sendo seu ingresso pelas duas portas, de que já falei voltadas para os Paços do Concelho, e outras, uma de cada lado assentes quase a par das cancelas, que fechavam a descida para o tanque. A luz que recebiam as lojas, era-lhes transmitida por frestas praticadas nas paredes voltadas para o pátio, E algumas clarabóias abertas e envidraçadas, que se viam salientes sobre o telhado. A fachada principal continha no primeiro corpo as quatro bicas e carrancas, no segundo via-se uma laje quadrilonga, que tinha a seguinte legenda.


i1 Planta topográfica do antigo edifício da Fonte da Arca chamada depois Fonte da Natividade, já demolida. A azul o autor representou os terrenos dos particulares, a vermelho o passeio, depois corredor e a amarelo o tanque (a legenda faz também menção às quatro bicas, na parede norte e às tendas que ladeavam a estrutura em três ângulos (exceção para o sul)


Divitias, offert, argentea munera fundit,

Thesauros populo consecrate arca suos,

Solvitor in liquidum christalus candida flumen.

Qui sitit accedat non nocet unda, bibat,

Hoc opus egregium cura obsequiosa Senatus

Extulit, excelsus thronus ut esset aquis

Expensis Publicis

AD 1682


E no terceiro em que excede, ou se avantaja aos dois laterais estava montada uma larga sacada com varanda de ferro, e duas grandes lanternas nos cantos e extremos dela, nas quais se alimentava constantemente luz de azeite, em honra de Nossa Senhora da Natividade, cuja imagem estava colocada em um oratório ou grande nicho em forma de santuário, que se eleva acima desta sacada, e na qual pousavam aos lados do oratório duas colunas de granito primorosamente lavradas; servia de remate a esta construção, no centro e parte superior do oratório as armas da cidade, e dali partiam para os lados em toda a extensão desta fachada central diversas curvas cujas eminências eram adornadas por pedestais, e neles pousavam as armas reais, pirâmides e estátuas diversas alternadamente colocadas. As cornijas* finais da[s] duas fachadas laterais também eram cobertas em distâncias iguais com estes embelezamentos. Projetou-se demolir toda esta obra, quando em 1820 se deliberou levantar na Praça da Constituição o monumento para eternizar o faustoso dia 24 de agosto desse ano, mas sobrevieram tais estorvos, que só depois de mais 13 anos decorridos, é que se conseguiu desobstruir esta formosa praça (...) »

* no original coronigens


i2 Parcial da planta de 1822 para o alinhamento da praça da Constituição, sentido de regularizar o terreno rumo à futura praça da Liberdade: a) o que restava da fonte da Natividade . b) tanque construído no final do século XVIII em substituição da fonte da Natividade e por vezes confundido com ela . c)
Palácio das Cardosas, hoje ocupado pelo Hotel Intercontinental . d) edifício da Congregação do Oratório, do qual apenas subsiste a igreja . e) Paços do Concelho oitocentistas, demolidos em 1916


De seguida o autor sumaria a documentação que saiu a lume no periódico Borboleta Constitucional de 2 de julho e de 31 de outubro de 1822, quando surge o litígio entre o Senado da Câmara e o Cabido portuense sobre a posse do terreno onde se construira o passeio e a fonte em 1682 (a esgrima de argumentos sobre quem era na verdade o seu verdadeiro possuidor estará na origem do atraso na demolição).

Viriato


ӽӽӽ

1. Já em 2019 o arq. Aguiar Branco, notável investigador e divulgador de temas portuense, havia produzido um muito bom artigo sobre esta fonte, recreando-a quase ao pormenor e de forma correta. Vale bem a pena conhecer esse artigo do iníco ao fim, pois creio que o meu apenas vem complementá-lo.

2. Escrevia originalmente em março de 2022.

FONTE: Henrique Duarte e Sousa Reis, Apontamentos para a Verdadeira História Antiga e Moderna da Cidade do Porto... vol. 5 (inédito, mas agora digitalizado) IMAGENS: 1. Cópia de Henrique Duarte e Sousa Reis do desenho publicado na Borboleta Constitucional - 2. Plano da Praça da Constituição, levantado para designar o lugar em que se há-de colocar o monumento designado a perpetuar o fausto dia 24 de Agosto de 1822


E eis aqui a fonte da Arca, informalmente fonte da Natividade, em toda a sua beleza! Para mais pormenores sobre o projeto em que a mesma se insere e restantes plantas anexas ao mesmo, remeto o leitor para o artigo de O Tripeiro acima citado.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

As litografias do Barão de Forrester

Abaixo transcrevo um pequeno texto que descobri quando folheava um dos primeiros periódicos da cidade, o quase desconhecido jornal O Artilheiro, que no dia 4 de março de 1836 publicou o seguinte texto:


«BELAS ARTES

É com o sentimento do mais entusiástico amor da pátria, que lançamos mãos da pena para noticiar que a heroica cidade do Porto principia a desenvolver de si o gosto particular de fazer conhecer os magníficos pontos de vista, que a fazem saliente entre as mais pitorescas cidades da Europa. De gravuras representando algumas paragens do Porto, só temos notícia da grande e antiga estampa, de antes de 1790, de toda a elevação da cidade, vista do Choupelo, a qual foi depois resumida para a Descrição de Agostinho Rebelo da Silva [sic]; bem como de uma vista de S. João da Foz, na mesma descrição.


Há seis anos pouco mais ou menos, que numa obra periódica publicada em Londres, das principais cidades da Europa, se incluiu a cidade do Porto em um dos folhetos, contendo somente 4 vistas - de quatro diferentes pontos, duas ao nascente, e duas ao poente dela. Estava porém reservado para esta época, que Mr. Joseph James Forrester, mancebo inglês pertencente à casa comercial da firma aqui estabelecida com este sobrenome, principiasse a dar uma regular descrição de todas as belezas pitorescas do Porto, de que acabam de publicar-se duas partes, em 9 finíssimas estampas, gravadas primorosamente, e tiras em papel da China.

Os objetos escolhidos para princípio dessa coleção são: O Porto visto do alto da Serra da Arrábida, olhando para o nascente [i6]. O convento da Serra, visto do lado do sul fora da estrada que fechava a posição militar deste baluarte da liberdade no sítio de 1833, em um momento de ataque e defesa. A vista do anfiteatro de toda a cidade, desde as Escadas do Codeçal até à Porta Nobre, tomado o ponto de vista do sítio das Alminhas nos Guindais de Vila Nova. A vista de todo o lado da Serra, desde a Bateria da Eira, até à Bateria do Castelo de Gaia tomada do sítio em meio caminho da Corticeira [i2].


A vista do cais, e frontispício da escadaria e igreja de Vale da Piedade, tomada da barreira que lhe fica contígua[i1]. Uma vista tomada do muro do Jardim do Freixo, olhando pelo rio abaixo até às Baterias no alto e no Cais do Prado [i3]. Uma vista tomada do alto de Avintes, sobre a margem oposta, desde Valbom até ao Freixo [i4].

Além destas sete estampas, de cenas pitorescas em agradáveis pontos de vista, juntou-lhe o habilidosíssimo autor duas cenas domésticas, de merecimento igualmente distinto. O interior da paroquial igreja de S. Nicolau em ocasião da celebração da missa do dia[i5]. Uma cena no Mercado da Cordoaria, em ocasião de dia de Feira.


Por certo, que tudo quanto disséssemos de correção de desenho, beleza de edição, e merecimento geral da obra, seria gastar palavras supérfluas em elogios, que num lance de olhos se podem prestar vendo-se obra tão primorosa e tão lisonjeira para os portuenses, e seus admiradores. O autor juntou a estas 9 vistas do Porto, um do Castelo da Figueira, tomada da parte da terra, em posição que mostra abranger três ou quatro milhas de costa.

Nós não sabemos que Mr. Forrester tenha de venda estes dous cadernos, que abrangem as 10 mencionadas vistas: sabemos só que muitos dos seus amigos foram subscritores (em cujo número tivemos a honra de entrar) e que a subscrição foi de 4$800 reis. Não há nada mais barato, nem que tanto mostre o gosto e independência do autor, do que tratar ele de dar à luz estes ensaios de seu génio tão distinto em pintura de perspetiva, sem mais algum interesse, porque estamos certos de que estampas iguais, e do mesmo cunho, custam ordinariamente muito mais do dobro.


Como portuense, é nosso único fim agradecer por este modo publicamente ao Sr. Forrester este tributo da sua afeição a uma cidade, em cujo seio ele foi nosso companheiro no tempo do memorável sitio, defendido debaixo das ordens do imortal Duque de Bragança.»

No dia seguinte, o mesmo periódico publicava a seguinte adenda: «No artigo a respeito do merecimento das estampas da cidade do Porto por Mr. Forrester, escapou-nos mencionar, que também tínhamos notícia de uma vista da entrada do Rio Douro pelo Sr. Kopke.». E no dia 24 de Março surge também:

«Já n' O Artilheiro demos conta da publicação de várias vistas do Porto, pelo Sr. Forrester. Para que se não julgue que o nosso juízo foi apaixonado no todo, sabemos que uma das pessoas inteligentes e de gosto desta cidade, a quem foram mandadas, por se achar ao presente numa quinta, escreveu a um amigo o seu juízo crítico parcial sobre cada uma das estampas, o qual é o seguinte:

"Restituo as vistas e agradeço o obséquio: resta-me dizer o juízo que faço delas. Quanto ao desenho está bom - a litografia é da melhor que se faz em Inglaterra, mas de algumas Vistas não sei se foram escolhidos os pontos para as tomar.


A Vista da Arrábida para cima, não faz grande efeito: o ponto junto ao rio para dar a mesma vista, abrangendo ambas as margens, parecia-me melhor escolhido: se o A. tomasse o ponto para esta vista de cima da montanha da Torre da Marca, em forma que abrangesse a linda vista do Candal até ao rio, e para cima, parte de Vila Nova &c seria de muito melhor efeito. A do interior da igreja de S. Nicolau, está muito exata e linda: é pena que não fosse antes o interior da antiga e bela igreja dos frades de S. Francisco, ou a de S. Bento.

A perspetiva do Freixo, apresenta o Seminário e a China, demasiado pequenos, e nada mais dos muitos cotages que seguem para cima: esta vista seria melhor toada da Pedra Salgada, abrangendo o Freixo quase na sua totalidade, o esteiro de Campanhã e suas imediações. O convento da Serra no tempo do cerco, está excelente em todo o sentido. A da cidade tomada do princípio da calçada da Serra, igualmente está muito boa: porém precisava para complemento, de outra vista da cidade tomada do alto da Bandeira, para abranger até à Lapa etc e outra tomada do castelo de Gaia, para abranger de Miragaia, às Virtudes, Hospital Novo, etc. Certo estou que quem tão bem soube desenhar as duas precedentes, igualmente o faria a estas, que em parte viriam a completar os três lados principais, donde o Porto precisa ser visto, e donde apresenta perspetivas diferentes. A da feira da Cordoaria está linda e exata, mas se fosse tomada mais de longe, e não tanto no centro do local, talvez fizesse melhor efeito: talvez que do mercado do peixe, ou mais no Norte donde a vista abrangesse melhor espaço, seria melhor. A de Santo António de Vale da Piedade está muito exata e boa.


A do Freixo parece demasiado pequena, e que se podia tirar mais partido deste belo edifício e local. O Castelo da Figueira não o conheço; porém a vista é bela; só lhe acho lá um pescador, que me fez lembrar os napolitanos na bela peça do Massaniello: os portugueses não trazem botas, nem se ataviam tanto; ao menos os que tenho visto na maior parte das costas. A Serra vista das Fontainhas está muito exata e linda."»


Creio, caro leitor, que as imagens serão conhecidas da maioria dos apaixonados pela história da cidade; não creio contudo que os textos  que aqui as acompanham sejam assim tão conhecidos (se o eram de todo!). São eles, principalmente, que aqui pretendo divulgar, no sentido de ancorar às imagens um esboço de uma contextualização das mesmas na época exata em que foram publicadas. Espero ter sucedido.

Viriato


ӽӽӽ

Esta publicação foi originalmente colocada no blog que perdi (A Porta Nobre) em 29-07-2016 e revista em 15-11-2019.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Miragaia

Ah! Os cobertos de Miragaia... alguém hoje os consegue imaginar sem o grande bloco da alfândega a ocupar o local onde antes existiu o areal a eles adjacente? É esse cenário que o leitor poderá encontrar abaixo, nas linhas que transcrevo de um romance do magistral Camilo Castelo Branco, intitulado Onde Está a Felicidade?


« »


«Era em uma noite, vinte e oito de Junho de 1845, véspera do milagroso apóstolo S. Pedro.

Sabes como, nesta religiosissima cidade do Porto, se festejam todos os santos da corte celestial, e particularmente Santo António, S. João e S. Pedro. Este, mais prestante que todos, pela importante missão de claviculário da bem aventurança, gloria-se de ser festejado anualmente na cidade da Virgem com uma porção fabulosa de estoiros, um inferno indescritível de fogueiras, e o consumo sobrenatural de pipas de vinho, fritadas de linguiça, postas de pescada, e bebedeiras sem cifra conhecida no Bezout.


o areal de Miragaia, quando ia sendo já preenchido pela sapatada do novo edifício da alfândega . à esq. a igreja de S. Pedro com origem numa ermida altimedieval, à dir. a porta Nova ou Nobre, peça constituinte da muralha do século XIV.


S. Pedro de Miragaia é incontestavelmente, de todos os Pedros santos o mais querido. Aquele espaçoso areal não basta para os jorros de povo, que afluem das ruas sobranceiras. Surgem, como por magia, as fileiras de lâmpadas variegadas; os mastros de palha e alcatrão, que fedem e abrasam; as orquestras militares, que consomem metade do tempo vozeando nas trompas estridulosas, e outra metade nas libações homéricas, fornecidas pela liberdade dos mordomos; as tendas, gratas à gastronomia suja da farrapagem, que as atulha, dando vivas ao santo, e praguejando obscenidades e insolências contra a taverneira tardia no ministrar da meia-canada por cabeça; finalmente, o areal de Miragaia é um misto de todas as regalias que entusiasmam o populacho, azando-lhe ocasião para que naquelas caras sobressaiam todas as linhas grotescas de uma alegria estúpida.

No longo quarteirão de casas, que se estende ao longo do arraial, vereis nessa noite caras insuportáveis, que o reflexo meio fantástico da iluminação vos afigura belas. Vereis outras, realmente belas, colocando-se de modo que a projeção tíbia da luz as favoreça, na exposição noturna, aclarando-as aos olhos do paciente amador, que passeia em baixo, sorvendo pelos pés a humidade da areia.

Entre estes, na mencionada noite, podíeis ter visto Guilherme do Amaral, só, com os olhos mergulhados além nas trevas do rio Douro, absorto, recolhido nesse esconderijo de tristeza, que o homem de algum senso íntimo leva consigo a toda a parte. Como ele, ajuizado desprezador desses júblios boçais, viera ter a Miragaia, não o saberia dizer. Achava-se aí, sem saber ao que viera, e sentia não ter asas de querubim ou de hipógrifo para transportar-se ao deserto da Líbia, ao pelo menos ao seu quarto da Águia d'Ouro.

a rua arménia

Neste pensamento, cuja impossibilidade o incomodava, caminhou pela travessa escura e despovoada que se lhe ofereceu. Atravessou um beco de aspeto pavoroso e nojento trilho: desembocou em uma rua, que o conduziu a outra, na direção oposta da Água d'Ouro, para onde queria caminhar.

Achou-se bem, apesar do fétido nauseento que ressumava das fisgas das portas. Não via ninguém, ninguém o via, nem o mais ligeiro sussurro: era caminhar na escavação de uma rua de Pompeia, pela vista, e no aqueduto de despejos de uma cidade, pelo cheiro. O romanesco tem seus caprichos sórdidos. Amaral não trocava aquela atmosfera enjoativa por os perfumes de nardo e rosa do toucador de alguma das suas numerosas admiradoras.»

« »

Guilherme do Amaral é o personagem principal deste (e de outros) romances de Camilo. A rua aqui não especificada, mas que o autor mais à frente nomeia, é a rua da Arménia. Também o autor/transcritor destas linhas por ali passou nos seus melhores anos de meninice, a caminho da rua Nova da Alfândega, e também ele sentiu, ainda, como Guilherme do Amaral, o perfume nauseabundo de um saneamento tão antigo como aquele personagem, mas de isento valor arqueológico. O areal, esse é que já o não pode ver senão em fotografias antigas e granuladas; desaparecido que está há pelo menos cinco gerações.
Viriato

domingo, 15 de setembro de 2024

Alves dos Reis e o Porto

O que tem este conhecido nome a ver com o Porto? Bem, a título pessoal, no normal desenrolar da sua vida, possivelmente nada. De facto, Alves dos Reis, ou melhor, Alves Reis (AR), seu verdadeiro nome,[1] não era do Porto nem nele morava. No entanto, esta cidade comercial e burguesa desempenhou papel importante na descoberta do seu ardil, em 5 de dezembro de 1925, faz hoje precisamente 95 anos![2]


AR, que fora para Angola com um emprego obtido à custa de um falso diploma de engenheiro, acabou preso por passar cheques sem cobertura, cumprindo cerca de 50 dias de prisão na cadeia da Relação do Porto entre julho e agosto de 1924. Foi aqui que, com tempo para pensar e ambição de vencer, terá começado a elaborar o plano que o celebrizou e que veio a culminar na duplicação de um grande volume de notas de 500 escudos. Facilitou tal embuste o facto de naquela época as notas do Banco de Portugal (BdP) serem produzidas no estrangeiro, por se encontrarem as suas máquinas avariadas. Há que reconhecer que foi um plano arriscado, elaborado, e que só poderia ter sido perseguido e executado por uma mente brilhante.[3]

imagens da revista Ilustração de janeiro de 1926. Com o nº 1, a filial do Angola e Metrópole no Porto, com o n.º 2 a casa de câmbio e com o n.º 3 o largo de S. Domingos, mostrando a enorme fila de pessoas que se dirigiram ao BdP a trocar os vascos


A primeira remessa de notas chega a Lisboa em fevereiro e março de 1925. De pronto foi organizada uma rede de agentes para trocá-las por moeda estrangeira; rede essa que operou com realce no norte do país, sobretudo na cidade do Porto. E isto tem uma explicação: existia aqui um mercado paralelo de troca de moeda estrangeira em franca atividade, motivado pelo comércio do vinho do Porto bem como pela presença de uma grande comunidade inglesa a ele afeto. Assim, foram contratados vários especialistas nestes câmbios - os zangões - que trocavam as notas de 500, sem discutir o preço. Por mais de meio ano tudo corre bem e AR pode levar uma vida faustosa com a sua esposa, bem como os seus associados. Consegue nova remessa de notas, que começa a chegar a Portugal em outubro de 1925, mês em que embarca para Angola a tratar de negócios. Ainda antes, em abril, contra a vontade do BdP mas coadjuvado pelo ministro das Finanças, AR consegue fundar um banco: o Banco de Angola e Metrópole.


Entretanto surge uma certa inquietação gerada pela grande quantidade de notas de 500 em circulação, nomeadamente por parte dos comerciantes que as começam a rejeitar, apesar do BdP afirmar que tudo está bem. O jornal O Século, a serviço de outros interesses, publica alguns artigos que colocam em causa o Angola e Metrópole e a credibilidade dos seus dirigentes. No Porto, os artigos desse jornal saídos em novembro são muito comentados nos cafés, e é certamente de uma dessas conversas que nasce a 'pulga atrás da orelha' ao tesoureiro da casa de câmbio José Pinto da Cunha, Sobrinho, fornecedor de moeda estrangeira ao banco de AR; pois ele sabia que as transações não eram escrituradas. Convencendo-se da falsidade das notas e comentando tal apreensão a colegas do Banco Espírito Santo, a notícia acaba por chegar ao BdP.

a filial portuense do Angola e Metrópole localizava-se no local assinalado, n.º 19 e 20 da praça da Liberdade, no informalmente denominado Palácio das Cardosas (imagem do googlemaps a substituir por própria, cf. publicação original)[4]


É então que o governador envia ao Porto inspetores bancários, acompanhados de agentes da polícia criminal, para investigar a casa José Pinto da Cunha, onde descobrem uma grande quantidade de notas de 500 escudos. Não obstante estas serem dadas como verdadeiras, a casa de câmbios é encerrada uma vez que o seu valor não estava lançado nos livros de caixa (são presos o gerente e guarda-livros). De seguida os inspetores visitam a caixa filial do Angola e Metrópole: mesmo sem provas, o banco é encerrado e apreendido todo o montante encontrado nos cofres, com a prisão do seu gerente. Desnorteados, um dos inspetores propõem levar as notas de 500 que estavam no banco para a caixa filial do BdP, ao largo de S. Domingos, e aí compará-las exaustivamente com as que lá existiam. O trabalho prolonga-se madrugada dentro, e é já no dia 5 de dezembro que finalmente surgem duas notas com o mesmo número de série. Segue-se a 6 a prisão de AR, que acabava de desembarcar em Lisboa, e na mesma data o BdP decide recolher todas as notas de 500 escudos com a efígie de Vasco da Gama.


O julgamento de AR e seus cúmplices teve inicio em 6 de maio de 1930, sendo a sentença lida a 19 de junho. Veredito: 8 anos de prisão e 12 de degredo para o mentor. Acabava assim, já em plena ditadura militar, o episódio que fora mais um problema lançado para cima da desprestigiada e moribunda primeira república.

a casa de câmbio onde se empilhavam notas de 500 vindas do banco de Alves Reis, localizava-se num edifício à época muito recente, à entrada da rua de Sá da Bandeira, encostado à igreja dos Congregados (imagem do googlemaps a substituir por própria)


E eis então explicado, caro leitor, como o Porto foi cenário do ato inicial e final do sonho de Alves Reis. Não quero deixar de terminar esta publicação, que espero tenha sido agradável de ler, com uma 'curiosidade'. Em 1 de janeiro de 1926, no primeiro número da 2.ª série d' O Tripeiro, na rubrica Correspondência entre leitores, secção Novas Perguntas, surge esta questão:

«NOTAS DE BANCOS: Que bancos do Porto tiveram a faculdade de emitir notas antes de passar esse exclusivo ao Banco de Portugal?» Ora, quem pergunta intitula-se A. Reis... Coincidência certamente, ou brincadeira malograda, porque logo no número seguinte veio a resposta, que aproveito para transcrever em jeito de despedida:


«Deseja um leitor saber quais eram os bancos do norte de Portugal que no tempo da liberdade de emissão, traziam notas em circulação. Eram os seguintes: Nova Companhia Utilidade Pública; Banco União; Banco Mercantil Portuense; Banco Comercial do Porto; Banco Aliança; Banco do Minho; Banco Comercial de Braga; Banco de Guimarães.

Teve permissão do Estado para emitir notas e chegaram a estar gravadas e prontas a serem lançadas em circulação, o Banco Industrial do Porto, mas não chegaram a circular porque nessa ocasião foi promulgado o decreto cassando a todos os Bancos em geral a faculdade da emissão, e atribuindo-a exclusivamente ao Banco de Portugal.

Ainda no tempo da liberdade emissora circularam aqui também as do Banco de Portugal, mas só tinham curso as que fossem rubricadas no verso por dois dos administradores da caixa filial desta Cidade.»

Viriato


ӽӽӽ

1 - Artur Virgílio Alves Reis era o seu nome completo.

2 - Esta publicação é uma das sobreviventes do terramoto que foi a perda d' A Porta Nobre, originalmente publicada em 5 de dezembro de 2020 e que serviu de inspiração a outros bloggers.

3 - O caso envolveu vários outros cúmplices, que para efeitos desta publicação irei ignorar.

4 - O edifício do Hotel Intercontinental é completamente novo, com uma fachada semirreconstruída, pelo que apesar de ser o mesmo local, apenas aparenta ser o mesmo edifício.

domingo, 1 de setembro de 2024

Sobre o monumento à revolução de 1820

Como creio que já todos os leitores saberão, estamos no ano 200 do pós revolução liberal de 1820[1]. Com efeito, no dia 24 de agosto desse ano, teve início o processo que trouxe Portugal para a modernidade e podemo-nos orgulhar de esse mesmo processo ter sido desencadeado no nosso Porto[2]. Vingando a revolução, apenas em 1822 sairia a primeira Constituição da monarquia portuguesa. O rei jurou-a, e podemos assim ver o último (esperado) rei absoluto português a jurar uma constituição, onde afinal pouco mais era do que uma figura simbólica de Estado, num país tradicionalista onde a revolução de mentalidades ainda não tinha verdadeiramente ocorrido. No ano seguinte, dá-se um contragolpe liderado pelo infante D. Miguel, que repõem o regime antigo. A partir deste momento desencadeia-se uma série de movimentos, golpes e contragolpes, revoltas, duas guerras civis; que são o pesadelo para os estudantes de história do secundário[3].

 

Voltemos ao Porto. Na sequência da revolução de 24 de agosto de 1820, a edilidade decidiu, em agosto de 1822, colocar na então Praça Nova, um monumento perpetuando aquele dia, bem como o documento que dele resultou. A construção situar-se-ia no mesmo local onde bem mais tarde foi colocada a estátua de D. Pedro IV, mas não terá a sua construção passado dos alicerces. Ora, na sequência da Vilafrancada, a nova vereação - presente já um Juiz de Fora, figura do antigo regime - foi intimada por Lisboa a destruir esse arrimo do monumento que se estava a formar. É precisamente a ata de vereação extraordinária a ele relativo que achei interessante arquivar neste blogue, vindo diretamente do 6.º volume dos Apontamentos para a verdadeira história... de Henrique Duarte Sousa Reis.

 

*


Vereação extraordinária de trinta de junho de mil oitocentos e vinte e três, nesta cidade do Porto e casa da ilustríssima câmara dela aí compareceram o doutor Juiz e Fora do crime, movido[?] pelo do cível, e bem assim os vereadores da mesma com assistência do provedor da cidade todos abaixo assinados. E logo nesta vereação, que teve lugar para dar-se o pronto e devido cumprimento à portaria do governo de vinte e três do corrente mês e ano expedida pela Secretaria de Estado dos negócios do reino, que foi recebida pela ilustríssima câmara no dia sábado vinte e oito do corrente e é do teor seguinte = Sua majestade ordena, que a ilustríssima câmara da cidade do Porto mande demolir inteiramente o monumento que nessa cidade se começar a erigir consagrado ao anterior e extinto sistema, dando a mesma câmara conta de assim o haver executado. Deus guarde a Vossa Senhoria, Palácio da Bemposta em vinte e três de junho de mil oitocentos e vinte e três. Joaquim Pedro Gomes de Oliveira. - Senhor juiz, vereadores e mais oficiais da ilustríssima câmara da cidade do Porto = tendo dado a mesma ilustríssima câmara de antemão as necessárias providências para se verificar a demolição do alicerce do monumento decretado na dita portaria com efeito se procedeu a esta obra às cinco horas e meia da manhã com assistência da mesma ilustríssima câmara e arquiteto da cidade cercando o lugar do mesmo alicerce um piquete de cavalaria da polícia para evitar que o povo espetador não estorvasse os trabalhadores. Deu-se principio a esta obra, e chegando-se à primeira pedra que servia de tampa se mandou fazer em pedaços, bem como a pia sobre que estava depositada, para não haver em tempo algum vestígios, nem se encontrar os mais diminutos restos das mesmas, com a forma que tinham. Entre uma e outra cobrindo a pia se achava uma pedra de ançã, e nela gravada a inscrição seguinte = Porto vinte e quatro de agosto de mil oitocentos e vinte. = levantada esta se encontrou debaixo um caixão de prata quadrilongo abaulado, o qual assim como a pedra com a inscrição foi acompanhada para os Paços do Concelho pela ilustríssima câmara e conduzido por dous oficiais de justiça. Neste mesmo ato de condução por ser aquele que procedia a inteira e imediata demolição e aniquilação do mesmo alicerce foi lançada ao ar grande porção de foguetes. Colocada sobre a mesa da vereação a pedra mencionada, e o referido caixão de prata, ali com a porta da sala aberta, uma porção de povo presenciou a abertura do mesmo, a qual se efetuou com uma chave de prata, que se achava na casa da câmara, e que foi apresentada neste mesmo ato pelo guarda do mesmo.


parte da planta para a colocação do monumento . trata-se da atual praça da Liberdade ainda longe aspeto do atual (para o documento na sua totalidade ver aqui)


Dentro dele se achou o seguinte = Um pergaminho pútrido em razão da muita água, que se achou dentro do caixão, que devia conter o Auto de que há cópia o livro de vereações do ano passado existindo no arquivo da câmara, o qual não pode ser lido por se desfazer por si mesmo no ato de ser tirado em consequência da sua mesma podridão; = tinha este o selo das armas da cidade pendente de uma fita, que mal se via ser branca e azul. Debaixo do dito Auto se achou uma medalha grande de prata em cuja circunferência no inverso dela se lê a seguinte inscrição = Porto vinte e quatro de Agosto de mil oitocentos e vinte. = Cortes gerais e por elas a Constituição. = No centro tem uma figura com coroa cívica, que segundo a informação dada significa o governo constitucional, tendo na mão esquerda uma alabarda, e sobre ela o Píleo, aos pés um jugo quebrado, insígnias respetivas à mesma figura, e com a direita apresenta sobre uma lápide um livro e nele escrito o seguinte = Mantida a religião católica, e a dinastia da Casa de Bragança. = E na lápide o seguinte = Na Praça, onde soou o primeiro brado da Regeneração Portuguesa se levante um monumento. / Portaria da Junta Provisória de vinte e três de dezembro de mil oitocentos e vinte. = No reverso tem a inscrição seguinte = No ano do senhor MDCCCXXII, = XXIII do pontificado de Pio VII, reinante D. João VI. Primeiro rei constitucional do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, ano segundo da primeira legislatura em XXIV de agosto foi lançada esta primeira pedra. = Junto com esta medalha se achou outra que tem a figura, que pela informação dada significa o amor da pátria com as quinas portuguesas gravadas no peito; tem na mão esquerda uma vara, e o Píleo na extremidade da mesma insígnia do governo constitucional proclamado em vinte e quatro de agosto de mil oitocentos e vinte: na mão esquerda tem raios em ação de abrasar um jugo, e um turbante que tem aos pés, insígnias representativas desta figura; na circunferência desta medalha tem a seguinte legenda: Por amor da pátria em vinte e quatro de agosto de mil oitocentos e vinte. = O Porto deu nome ao reino em mil cento e trinta e nove; restaurou-o em mil oitocentos e oito; regenerou-o em mil oitocentos e vinte. = Achou-se mais uma coleção de moedas todas do reinado de el-rei senhor D. João sexto, cunhadas no ano de mil oitocentos vinte e dois: a saber uma de ouro do valor, outrora de seis mil e quatrocentos réis, hoje de sete mil e quinhentos réis, outra dita de amatede daquele valor, seis moedas de prata, uma de quatrocentos e oitenta réis, outra de duzentos e quarenta réis, outra de cento e vinte réis, outra de cem réis, outra de sessenta réis, outra de cinquenta réis, uma moeda de bronze de quarenta réis, e finalmente uma de cobre de dez réis. Neste mesmo ato foi apresentada uma condessa, que nesta mesma manhã foi entregue ao guarda da câmara por um homem, que não disse quem era, nem declarou quem a remetia, nem ele guarda conheceu[-o?], a qual sendo também aberta continha o seguinte = uma trolha de prata, um martelo de prata com cabo de pau de buxo, uma esquadria de prata, uma régua de prata, e uma vassoura de fios de prata, com anel da mesma. O que tudo foi guardado em um dos cofres da câmara à exceção do pergaminho, por não se achar em estado senão de ser lançado fora, até que sua majestade se digne declarar o destino, que se lhe deve dar; ultimamente passou a ilustríssima câmara as suas ordens ao arquiteto da cidade, para que fizesse trabalhar os operários até que pusessem aquele local justamente no estado, em que antes se achava, sem que ficasse o mais leve vestígio do fundamento do mesmo monumento. Deste modo louvaram[?] por cumprida a portaria do governo acima transcrita, e por esta forma houveram por finda esta vereação, de que se fez este auto, que eu João Joaquim de Oliveira e Castro pelo respetivo escrivão escrevi.

Chocha do Couto = Souto = Freire de Andrade = Cirne = Lima

Que eram

O Juiz de Fora Manuel Nunes Cocha do Couto[4], Domingos Pedro da Silva Souto e Freitas, Henrique Carlos Freire de Andrade Coutinho Bandeira, Francisco de Sousa Cirne de Madureira, o procurador da cidade António José de Lima.


*


É este apenas um dos vários documentos que Sousa Reis, com paciência de monge, copiou para os seus cadernos; preciosas escrituras para o conhecimento da cidade do século XIX. Outros haverá que o leitor avalie porventura de interessantes, e, a bem da verdade, eles valem mais se lidos e estudados em sequência cronológica. Contudo, para aqui optei por transcrever este, por descrever um ato físico que teve lugar na cidade à vista da sua população, mas também como simbolismo de todo um processo que, desencadeado na nossa cidade em agosto de 1820, apenas ficaria definitivamente estabelecido bastantes anos depois, à custa do sangue, miséria e desespero da população do país; que no geral era completamente alheia aos processos políticos que cornucopiavam à sua volta, ainda que no final isso significasse melhorar a sua condição, como se provou.

Viriato


ӽӽӽ

1 - Esta publicação foi originalmente colocada n' A Porta Nobre em 27.08.2020.

2 - Aliás, a nossa cidade seria politicamente fundamental durante todo o século XIX e princípio do seguinte.

3 - Creio mesmo que os mais graduados devem portar, oculta algures nos seus bolsos, uma cábula com datas e nomes que os impeça de meter o pé na poça, tal é a confusão que todo este período gera!

4 - Primeiro Juiz de Fora pós 1820, vale a pena ler o que sobre ele se transcreve no 1.º volume de Os Presidentes da Câmara do Porto (coordenação de Fernando de Sousa), onde nos é revelado como um absolutista tolerante; motivo pelo qual, possivelmente, logo em novembro foi exonerado. Era natural de Ílhavo.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

O Hino da Patuleia

Foi num volume de Próprias do arquivo histórico da Câmara Municipal do Porto que encontrei, por um acaso, lançada isolada numa folha, esta versão do hino associado à guerra civil da Patuleia (outubro de 1846 a junho de 1847):


«Viva a Maria da Fonte

Com a pistola na mão 

Para matar os Cabraes

Que são falsos a nação


coro

Eia avante Portugueze

 Eia avante d'uma vez

Desça do Throno a Tyranna

E que reine hum Portuguez*


Eia avante Portuguezes

Eia avante e não temer

Por a S. Liberdade

Triumphar ou perecer

P.ª Memoria 1846 Out.bro 16»

_____________

* D.ª Maria II nascera no Rio de Janeiro, em 1819. Foi a única monarca europeia não nascida em solo europeu.


Dado a muito recente lavra do texto - praticamente em cima do acontecimento - não estará ele associado à criação do lema? Como que uma sua primeira versão? Muito gostaria que um leitor mais informado, pudesse compartilhar comigo o seu saber!

Finalizo com esta ligação, para uma versão do tema na voz de Vitorino.

Viriato


ӽӽӽ

FONTE: Livro 70 das Próprias ( Arquivo Municipal do Porto ).

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

A ponte de São Domingos

Como os amantes da história do Porto já estarão certamente ao corrente, no passado mês de maio foram encontrados os restos da ponte de S. Domingos, sobre o rio da Vila. Desta forma se demonstrou e mais uma vez a arqueologia comprovou que, se algures no tempo ela foi construída com materiais perecíveis de fácil desagregação, essa estrutura rudimentar foi a dada altura substituída por uma pequena ponte de pedra em arco [1].

A menção mais antiga que conheço a esta travessia data, indiretamente, de 1307. E digo indiretamente porque o documento é um traslado do século XVI feito a rogo do hospital de S. Crispim e S. Crispiniano, quando estes procuravam - e conseguiram - escapar à aglutinação pela misericórdia portuense. Nele se diz que os doadores do hospital «... edificaram na sua herdade da Ponte de São Domingos um hospital e o fizeram de fundamento...». Ora, se a ponte é mencionada, podemos inferir que ela já existe. Há é claro, a hipótese de a mesma ser à época ainda de madeira ou simples esteios, e não de arco em pedra. Não creio contudo que exista documentação sobrevivente que nos possa elucidar sobre esta matéria [2].

nesta imagem vemos, em primeiro plano, o local onde foram encontrados os restos da ponte de S. Domingos


A ponte é mencionada posteriormente, já no século XV, bastando ao curioso procurar on line no sítio do AHMP (embora outras menções a ela se encontrem nos livros do cofre da câmara, que não estão digitalizados). Durante este século - eventualmente já no final do anterior - o local da ponte de S. Domingos, pouco urbanizado e de aspeto quase rural, será ocupado por tendas de comerciantes, alguns deles judeus. Assim, o segundo registo mais antigo(?) que menciona a estrutura, reporta à ocasião em que a câmara aforou uma tenda a um judeu (aqui), em 1409.

parte do doc. de 1409, onde se lê « ... sob . a ponte de são domingos , a qual »

Sobre as pontes do rio da Vila transcrevo o texto de Ferrão Afonso, no seu trabalho já citado (ver nota 1): «O rio estava portanto, nessa zona [S. Domingos], como acima, no Souto, onde existia também uma "ponte", coberto com "padieiras" de pedra que permitiam a passagem (...). Outras pontes existiam para jusante...» [3]

Discordando há muito do douto investigador, agora visivelmente à vista dos achados do último mês de maio, estou em crer que em S. Domingos a ponte era efetivamente em arco, e não apenas uns esteios ou padieiras lançadas no rio. Mas este pensamento baseava-se unicamente no empirismo, por verificar que na documentação original que fui consultando, a expressão ponte de S. Domingos sobressai quase como exclusiva em relação às outras (mesmo da própria ponte nova, que sabemos ter sido efetivamente edificada em arco de pedra).

Poderíamos igualmente por a hipótese de que o que ali temos ser, não uma ponte, antes um troço da galeria lançada por cima do rio da Vila a partir de 1766, aquando da abertura da rua de S. João, cujo encanamento foi a obra basilar. Com efeito, foram construídas primeiramente as paredes laterais do referido encanamento, para depois sobre elas se firmar a abóbada. Esta deveria ser executada da seguinte forma: «... pedra lavrada de picão grosso, bem ajustada nos leitos e juntas em cal bem fechada para o que se farão fechaduras, e as aduelas terão três palmos de alto e grossura...». Seria portanto a esta descrição que se teria de vir buscar dados para poder confirmação ou não, sobre o arco que agora surgiu, pertencer à canalização do século XVIII. Não me parece. Creio contudo que a ponte terá sido realmente aproveitada, ao menos do seu lado norte, como abóbada para a nova galeria. Se o próprio contrato permitia a reutilização da pedra das casas compradas no local e demolidas, para abertura da rua, bem mais sentido faria numa construção que era já pública desde há séculos [4].

parte de uma planta guardada no TT, que nos mostra aquedutos construídos e a construir em 1788,na viela da Neta, sobre um ribeiro que vem a originar o rio da Vila


Mas após tanto falar da ponte, onde estão as fotos dela? As únicas disponíveis à população em geral são, creio, as cedidas pela Metro do Porto aos órgãos de comunicação social que o leitor pode ver aqui e aqui (e a sua localização aqui). De referir que as fotos nos mostram unicamente o lado norte, porque do lado sul o aspeto é bem mais desolador... Mas a partir daqui, caro leitor, só vendo as referidas fotos poderá compreender o que pretendo demonstrar a seguir.

ponte do arquinho em Água Longa


Com efeito, duas pequenas pontes existentes não longe do Porto, me fazem muito lembrar a agora desaparecida ponte de S. Domingos. Ambas com a designação de ponte do Arquinho; a primeira situada em Água Longa (Santo Tirso), e a segunda atrás da igreja de Nossa Senhora da Paz, em Alfena (Valongo). Em comum têm o franquear o atravessamento de duas pequenas ribeiras pertencentes à bacia hidrográfica do Leça. Notar que a pontezinha de Água Longa foi alvo em 2017 de um trabalho de recuperação, conferindo-lhe o aspeto que o leitor pode verificar acima, foto que colhi a 10 de agosto do corrente ano (aqui para o seu aspeto antigo). A de Alfena ainda não teve essa sorte, encontrando-se a 11 de agosto com o aspeto que o leitor pode verificar abaixo.

ponte do arquinho em Alfena

Comparemos as fotos que aqui coloco com as da ponte de S. Domingos. Achará descabida esta comparação das diferentes estruturas, com a que a Metro do Porto descobriu? Não são totalmente concordantes, a bem da verdade. Talvez a mais notória diferença seja a aparente arco quebrado, presente na ponte de S. Domingos. No entanto a similitude é, segundo creio, inquestionável.

Como apontamentos finais sobre este assunto e meramente curiosos, refira-se que o local onde se encontrava a ponte, também conhecido por cruz de S. Domingos, embora perdesse muita da sua rusticidade ainda em pleno século XIII, não deixou num momento longo da história em que o rural e o urbano se confundiam, de sofrer a pressão da urbanização. Posteriormente, nas primeiras décadas do século XVI alguns dos espaços à volta da pontezinha foram sendo ocupados por casas, quer pertencentes à Mitra, quer à cidade, quer aos dominicanos. Assim, pelo menos uma das tendas do século XV foi transformada em casa (possivelmente aquela a que os frades dominicanos permitiram que o enfiteuta da câmara pudesse encostar à parede da sua horta). Também diversos terrenos da Mitra vieram a formar a rua da Biquinha, cujo leito, como as plantas do século XIX para a abertura da rua Mouzinho da Silveira mostram, encontra-se hoje incorporado no saguão das casas no correr da Papelaria Peninsular; e finalmente os próprios dominicanos desmantelaram parte do seu cemitério medieval, emprazando os terrenos, num ato que levou ao surgir de duas já desaparecidas ruas: uma delas, precisamente, a rua da Ponte de S. Domingos.

« »

Reflexão final: A ponte de S. Domingos, como tudo o que a obra da metro já nos proporcionou descobrir sobre a cidade e pelo qual estarei sempre agradecido, foi destruída no final do mês passado. Desmantelada peça a peça, será possivelmente remontada num outro local da cidade onde, historicamente, não tem qualquer valor. Convenhamos e tenhamos bom senso: não era possível, com a obra necessária e prevista para o local, manter ali aquela memória multissecular da cidade in situ; nem várias outras, noutros locais. E para isso mesmo existe consagrado na lei, o mecanismo da conservação pelo registo científico. Temo contudo que este mecanismo se tenha tornado um autêntico dogma de fé na nossa cidade; sobretudo no que concerne às obras promovidas pela Metro do Porto... E com esta reflexão muito recordo um episódio do programa televisivo Visita Guiada consagrado ao mosteiro dos Jerónimos, onde se refere o caso do século XIX e XX, em que a unidade de estilo se sobrepunha a tudo, tendo mesmo posto em risco a existência da capela-mor maneirista -- a original! -- daquele mosteiro, por não ser manuelina como a restante igreja (felizmente essa estupidez não foi para a frente). Ainda assim o dogma estilístico levou a perdas irreparáveis (como a demolição da chamada Sala dos Reis), para além da enorme massa de volumes acrescentados ao mosteiro já no século XX, criando assim uma - muito bonita - artificialidade histórica.

Voltando ao Porto, no que reporta aos múltiplos achados na praça da Liberdade, viu-se ser publicitado o achado dos restos da fonte da Arca. Contudo, ali mesmo ao lado, de mais feito aspeto porém bem mais robustos e importantes para a história da cidade, apareceram importantes restos do torreão da muralha fernandina, com a "cereja no topo do bolo" de nos apresentar, incólume, alguns metros do encanamento do ribeiro de Liceiras, um dos dois que formava o rio da Vila, alguns metros mais abaixo. Foi tudo destruído, ou melhor, conservado pelo registo. Mas questiono: sendo a muralha fernandina monumento nacional desde 1910, não estariam aqueles restos protegidos por lei? E bem perto dali, quando à pouco mais de uma década se descobriram os restos do convento dos padres lóios também eles foram destruídos, dando origem e salvo erro, a uma queixa na UNESCO...

restos da porta da corredoura, em Torres Vedras. Preservar esta ruína in situ, mesmo que abraçada por um mono de betão e vidro, permite que as gerações futuras a possam recuperar e enquadrar condigmanente, assim a mantendo como uma memória viva por oposto a bytes armazenados num qualquer servidor

Na história em geral, mesmo na da arqueologia, só a décadas de distância se poderão tirar conclusões das opções que se fizeram num determinado momento da história e da menor ou maior responsabilidade dos seus promotores/executores (e suas limitações impostas por fatores externos e/ou internos...), em face dos resultados posteriores à passagem desse momento no tempo. No caso da conservação pelo registo científico, já cá não estaremos para ver a avaliação que daqui a duas ou três gerações farão os técnicos da altura, das opções por nós tomadas (à imagem do que hoje fazemos com as decisões e os critérios da DGEMN[5]). Como olharão os historiadores do futuro para tudo o que desapareceu com a "carta branca" da conservação pelo registo científico? Quanto à solução alternativa, remontar a estrutura à moda de lego num jardim ou outro qualquer recanto citadino deslocado do local original, assim a descontextualizando, é a meu ver construir uma falsa ruína como as que se encontravam tão em moda no século XIX (veja-se a da quinta das lágrimas), mesmo que com a melhor das intenções. Isto já para não falar dessa bonita ruína poder redondar em mais um arco da bruxa... [6].
Viriato


ӽӽӽ

1 - Amândio Barros, a p. 37 do seu estudo Porto - A construção de um espaço marítimo no início dos tempos modernos, dá a construção desta ponte como tendo ocorrido entre 1556 e 1559. Creio contudo que o douto historiador se equivoca com a construção da ponte nova, que veio dar nome a um arruamento ainda existente, hoje cortado em dois pela rua Mouzinho da Silveira. Esta ponte foi construída de facto a partir de 1556, tendo levado à destruição de duas casas, uma delas vinculada à capela dos Alvarinhos e não propriamente a capela dos Alvarinhos como refere (capela essa aliás, sediada na Sé do Porto). Para esta afirmação baseio-me na obra de outro historiador, o Dr. Ferrão Afonso, a pág. 109 da sua obra A Rua das Flores no Século XVI.
2 - Ver Palmeiros e Sapateiros: a confraria de S. Crispim e S. Crispiniano do Porto (séculos XIV e XVI), a p. 35. Trabalho editado pela Fio da Palavra, e escrito pelos investigadores Arnaldo Sousa Melo, Henrique Dias e Maria João Oliveira e Silva. Esta confraria, embora em moldes diferentes, ainda existe e localiza-se ao topo da rua de Santos Pousada.
3 - A rua das Flores..., p. 160 (nota 261).
4 - Utilizo o trabalho do investigador Joaquim J. B. Ferreira Alves, O Porto na época dos Almadas, a p. 213 do vol. 1.
5 - No caso das reintegrações da DGEMN por exemplo, sempre me sinto defraudado quando descubro que determinada capela-mor (por exemplo Rates), rosácea (por exemplo matriz de Barcelos), etc.. são obras com menos de um século de existência, fazendo-se passar por medievais.
6 - O próprio nome da ruína pode ser enganador. Veja-se o recente anúncio de que a fonte da Natividade iria ser remontada no novo jardim a construir onde existiu o bonito jardim de Sophia; quando na realidade são os restos da fonte da Natividade que vão ser remontados no novo jardim.