O Arquivo Distrital do Porto, como não poderia deixar de ser, é possuidor de um acervo documental imenso. Mergulhando e pesquisando nele poderemos encontrar autênticas relíquias. Da minha parte já "descobri" coisas que nunca imaginaria poder um dia encontrar, quanto mais ainda visualizar.
Nesta publicação darei a conhecer uma planta com que me deparei, pesquisando na versão on-line do mesmo arquivo, referente à reedificação do convento de São Francisco do Porto. Segundo a legenda na ficha : «Contém a planta da linha oriental da elevação do dormitório do convento reedificado e respectiva legenda. A reedificação do convento foi iniciada a 2 de Abril de 1764. A primeira pedra foi lançada a 10 de Maio do mesmo ano, sendo provincial o Pe. Frei Lourenço de Santa Teresa e guardião o Fr. Luís da Soledade Estrela e síndico Geraldo Belens. As obras foram concluídas em Junho de 1802.» Muito pouco tempo portanto, se manteve esta estrutura na paisagem portuense.
Abaixo coloco a descrição e a planta com a fachada Norte do dormitório, em local onde hoje corre a mesma fachada do Palácio da Bolsa sobre a rua da Bolsa.
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«DECLARAÇÃO DA PLANTA: A Linha das Letras A e A' é a linha oriental da elevação do dormitório, que é o melhor do convento. Dobrado este pela dita linha ficando em ângulo reto, mostra a figura, que faz o Dormitório, com as despensas, e o terreno, que fica junto à cozinha ; o que tudo se expressa pelos seguintes.»
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fachada Norte do convento de S. Francisco do Porto . quer a cozinha quer as latrinas ficavam fora do edifício, em área hoje pertencente à rua da Bolsa e ao hospital da VOTSF |
«NÚMEROS: 1- Chaminé; 2- Cozinha; 3- Despensa; 4- Porta; 5- Terreiro aonde se desfaz a lenha; 6- Terreno da Horta; 7- Paredes; 8- Caminho que vai do convento para o Hospital; 9- Outra Parede; 10- Porta para entrar no Hospital; 11- Oito janelas do refeitório; 12- Ministra por onde passa o comer para o refeitório; 13- Porta da cozinha; 14- Janela da enfermaria; 15- Janela da Enfermaria; 16- Janela regral; e todas as mais deste feitio são janelas iguais e as pequenas são janelas das celas.; 17- Casa das privadas; 18 e 19- Dista um número do outro 50 palmos; 20 e 21- Dista um número do outro 85 palmos; 22 e 23-Dista um número do outro 17 palmos»
Atente-se também nestas curiosas notas:
«E para não ficarem distantes as privadas novas assinadas pelos irmãos terceiros, como se mostrou no mapa, que por ordem deles se mandou fazer; que vão 25 palmos, é necessário que fique como se mostra neste. E havendo de ficar na conformidade do mapa dos terceiros, não tem mais que 17 palmos do número 22 ao número 23 e no mapa dos mesmos terceiros se mostram 25 não tendo o terreno mais que dezessete palmos. E a ver desta forma, ficam muito próximas às dispensas do convento e podem facilmente inficionar os víveres, legumes e tudo o mais que existir nelas. E por cima da mesma cozinha, e dispensa está um eirado com figuras aonde os religiosos tem várias flores. aonde vão recrear-se a cada passo, e tomar o fresco no tempo do verão. E fazendo-se as privadas no sítio assinado pelos terceiros, não só causam os referidos bem atendíveis detrimentos; mas até chegam a tirar-lhe alguma vista. E não fica só aqui o detrimento; pois como em quase todo o ano sopram os ventos do Norte e Noroeste, infalivelmente hão de introduzir péssimo e pestilento cheiro pelas janelas do refeitório, e das celas, e até na enfermaria; com grande dano e detrimento dos religiosos sãos; e com grande perigo dos religiosos enfermos que constantemente existem na enfermaria.»
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É confusa esta planta, que não está desenhada de uma forma moderna. De facto encontram-se aqui debuxados a fachada (elevação) e as restantes estruturas, que lhe ficavam à frente (plano), por forma a dar uma percepção das distâncias. Como se pode inferir do texto, é possível que a execução desta planta fosse motivada por um conflito com os terceiros em relação à localização de alguns espaços que os frades pretendiam reedificar (não podemos esquecer que por esta altura o convento já cedera um bom pedaço de horta, a poente, para a edificação do hospital dos terceiros).
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a rua da Bolsa, rasgada na antiga cerca franciscana . os traços amarelos indicam o correr da fachada do Palácio da Bolsa, que substituiu a fachada do convento |
Notar que a fachada representada é Norte e não a oriental. A linha sim, é que é a oriental; pois corre de oriente para poente! Outra forma de o comprovar é através das estruturas que vemos como referentes às latrinas, despensa, etc. Onde se encontravam estas estruturas? Precisamente no local onde hoje temos a rua da Bolsa e parte do terreno do hospital. Bastará atentar às plantas da cidade existentes anteriores à abertura da rua de D. Fernando (hoje rua da Bolsa) para verificarmos o desenho de forma geométrica idêntica a elas; como por exemplo na famosa planta redonda de Balck (1813) ou a de José Francisco de Paiva (1824).
Aquando das escavações arqueológicas efetuadas no terreno da rua da Bolsa pertencente ao hospital da VOTSF (2005-2006), foram encontrados vários enterramentos, sem dúvida decorrentes da atividade do hospital. Estes enterramentos foram, contudo, encontrados dentro de espaços quadrangulares que, se prova não há, poderão corresponder precisamente aos espaços do antigo convento que se veem na planta. É uma hipótese...
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imagem do número 11 do PORTVS, o em má-hora desaparecido boletim de arqueologia da Câmara Municipal do Porto . nele se podem ver as estruturas encontradas no terreno da VOTSF |
Atualmente, do convento propriamente dito resta a portaria virada a sul, "ensanduichada" entre a capela dos Terceiros e a igreja gótica. Praticamente inalterada pelas obras de adaptação/construção do Palácio da Bolsa, ela apresenta ainda a sua torre sineira Setecentista. Dentro do edifício atual temos ainda o magnífico claustro, se bem que bastante transformado e uma escadaria conventual de acesso aos dormitórios, etc. Quanto ao chafariz que ainda em tempos do Palácio da Bolsa permanecia no meio do claustro, foi exilado para o Passeio Alegre; chafariz esse todo em cantaria de pedra lavrada e que é, sem dúvida, dos mais bonitos e que o Porto possui.
Para encerrar definitivamente esta publicação, e já como mera curiosidade, poderá o leitor ver abaixo a única representação que conheço do lanço do convento virada a nascente, no local onde hoje existe a fachada principal e que tanto admiramos, do Palácio da Bolsa.
Viriato
Publicação originalmente colocada em 12 de dezembro de 2012 n'A Porta Nobre, reformada em 22 de dezembro de 2016 e agora de novo acrescentada.