sábado, 9 de novembro de 2024

As réplicas do Museu do Carro Elétrico

Caro leitor, confesso que o título original para esta publicação era Réplicas a brilhar e originais a ganhar pó. Mas como não quero que ela passe por uma crítica ao estilo "bota abaixo", porque efetivamente não o é, achei por bem substituí-lo. É que o Museu do Carro Elétrico do Porto é sem favor um excelente museu e mais importante, um museu vivo, dado que todos os anos em Maio convida-nos a viajar em algumas das suas unidades.


Hoje confinado ao turismo, o carismático carro elétrico foi durante 100 anos[1] um meio de transporte ativo na cidade, gradualmente perdendo a sua importância a partir de 1957 com a extinção das linhas que se dirigiam a Vila Nova de Gaia. Durante todo esse tempo fizeram parte da paisagem urbana portuense, diretamente do dia-a-dia de todos aqueles que os usava e indiretamente dos que não o faziam, com a presença constante e o seu passar ronceiro pelas ruas.

i1 um dos três primeiros carros a circular na cidade do Porto, aqui junto à igreja dos terceiros carmelitas, num pormenor de um postal antigo


A história da sua frota é apaixonante mas complexa, pois os registos são muitas vezes imprecisos ou mesmo inexistentes. Para além disso, muitos veículos passaram por transformações de certa monta e as sucessivas renumerações por vezes quase que parecendo casuais, não ajudam a quem se interessa pela seu passado. Segundo o The Tramways of Portugal de 1995 os primeiros CE foram fornecidos pela Siemens (que representava na Europa a americana Walker Eletric Company) e começaram a operar em 12 de setembro de 1895 entre o Carmo e o Ouro (via rua da Restauração), naquele que foi o primeiro troço eletrificado da Península Ibérica[2]. Estes veículos, apenas 3 unidades, é de crer terem perecido no fogo de 1928 na remise da Boavista. A mais conhecida memória que deles ficou é um célebre postal da praça da Batalha que mostra um desses carros a circular, mas outros há (ver i1).


Apesar de todo o esforço consequente da feliz ideia de levar avante o projeto da existência de um Museu do Carro Elétrico e apesar de este museu, uma realidade há já várias décadas, ter a sua coleção maioritariamente constituída por veículos originais, não foi possível apresentar um exemplar de cada tipo que circulou na nossa cidade. Assim, no meio deles surgem-nos duas réplicas de veículos cujos seus representantes não chegaram ao nosso tempo. E num contraste a meu ver pouco lógico, encontram-se ainda em depósito alguns CE há muito reservados para museu, esses sim, peças originais.

i2 o verdadeiro CE 104 numa fotografia dos anos 50 do século passado (The Tramways of Portugal, 1995). Construído pela firma Starbuck, em Birkenhead, na Inglaterra. Originalmente um americano, foi motorizado em 1903 nas oficinas da CCFP (agora STCP).


Quem visitar o museu ficará certamente maravilhado com o CE 104 e com o seu aspeto nitidamente oitocentista (um cunho talvez impresso pelo facto de ser de construção inglesa). E mais ficará se nele entrar e for absorvido pela sensação de sermos transportados para uma outra época. Mas o que a maioria das pessoas ignora é que, neste caso, foi necessário recorrer a uma réplica para termos um representante daquele modelo. Na verdade, o 104 original foi destruído em 1959 após ter funcionado no final da sua carreira como carro de instrução (ver i2)[3]. A bonita réplica que dele se fez é fruto do esforço notável de, entre outros, o Sr. Rocha que eu ainda tive a felicidade de conhecer!


Perdoar-me-á a memória do Sr. Rocha, mas do CE 100 não posso dizer o mesmo. É verdade que o carro elétrico aberto no Porto foi uma experiência que não frutificou e destes veículos apenas se construiram 2 em 1904[4]. Inicialmente numerados 41 e 42, em 1907 passaram a ser o 141 e o 142 e em 1924, o 100 e o 115 (segundo Ernst Kers). Os historiadores deste sistema de transporte na nossa cidade apontam, como causa provável para o seu desaparecimento o incêndio na Remise da Boavista, em 1928. É bastante possível. Certo é que carro que figura no museu com o nr. 100 é uma réplica. Mas contrariamente ao 104 trata-se de uma réplica a uma escala maior do que o original(!), o que se pode de certa forma desculpar pela total ausência de planos e quase de imagens destas veículos (quem procurar ver os dois veículos-réplica que referi acima, poderá fazê- lo aqui).

i3 pormenor de uma imagem do início do séc. XX (Alvão?), que nos mostra o CE 41, um dos dois verdadeiros "100", a descer Mouzinho da Silveira e a chegar ao Infante


Importa referir que para que estas réplicas fossem construídas, tornou-se necessário destruir duas carroçarias. O primeiro carro a ser desmantelado foi o CE 129, que cedeu o seu chassis e longarinas(?) para servir de base à réplica do CE 100. O segundo foi o CE 169, cujo chassis foi usado na réplica do CE 104. Ambos muito raros no mundo (sim, no mundo!) por se tratarem de dois Brill originais fabricados nos EUA e que foram desta forma mais ou menos inglória sacrificados.


Para além destes veículos o Museu do Carro Elétrico conta com várias outras unidades bem restauradas e funcionais, que nos permitem ter uma ideia do evoluir deste meio de transporte na cidade e o caminho para o seu ocaso. E ainda outros, como o caso do CE 177, que está reservado para o museu há décadas e décadas e parece que não há meio de o restaurar e lá colocar! Em que estado estará ele agora...

Viriato


ӽӽӽ

1. 12 de setembro de 1895 a 7 de junho de 1996, pelo que não chegou a completar o 101º aniversário! A partir de 12 de junho de 1996 reapareceu mas já num claro serviço diário decrépito ao qual não faltou nunca a falta de respeito dos condutores que estacionavam em cima das linhas, conforme pude muitas vezes testemunhar.

2. Em 1896 foi eletrificado o percurso até ao Infante, num processo que seria contínuo até à extinção do carro americano, em 1904.

3. Outro veículo idêntico a este, embora não motorizado, foi vendido para Inglaterra em 1964, estando preservado no museu de Crich (ver aqui). 

4. Em Lisboa havia-os às dezenas!

publicação originária d' A Porta Nobre, de 21.03.2019, agora reposta com ligeiras modificações

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

Um parecer definidor?

Por estes tempos em que andam os poderes políticos a discutir a construção de mais pontes sobre o Douro, parece que de tudo uma certeza apenas há: dentro de dez anos o rio estará ainda mais atafulhado de passagens. Uma para suprir a necessidade disto, outra daquilo, e mais outra de aqueloutro (porque as necessidades humanas são infinitas e que o futuro precisa não é para agora...) E enquanto isto se passa no Porto já não industrial, antes turístico, do século XXI, cerca de duzentos anos atrás a conversa era outra, com os estudos para a construção da primeira ponte permanente a ligar as margens de Gaia e do Porto. Que bonita seria se, para além de construída, ela efetivamente ainda existisse!

O documento que para aqui trago creio ser, se não inteiramente ignorado, ao menos há muito esquecido. Ainda não vi, na parca bibliografia que consultei sobre o assunto, alguma alma que se lhe referisse. Ele jaz perdido, no meio de tantos outros bem interessantes, no arquivo histórico do Porto, ao Infante. Trata-se de um parecer de João Crisóstomo de Abreu e Sousa(1), tenente do corpo de engenheiros do exército ao serviço da Inspeção das Obras Públicas, emitido no dia 7 de setembro de 1839. Foi para mim um precioso achado, que acredito que para os leitores interessados por esta temática, seja uma ótima forma de ocupar meia hora do serão.

Contudo, antes de vos mostrar o referido documento, que é longo mesmo truncado, não quero deixar de referir que o engenheiro João Crisóstomo teve uma vida bastante ativa na sociedade desde 1833, altura em que o liberalismo entrou em Lisboa. Foi deputado, ministro das Obras Públicas, da Guerra; e chegou mesmo a ser presidente do Conselho de Ministros durante perto de um ano e meio, já no fim da vida (1811-1895). Mas concentremo-nos então no parecer que o ainda jovem tenente apresentou, quando estava ao rubro a discussão sobre os planos e local, onde construir a ponte-término da estrada Lisboa-Porto(2).


« »

Parecer acerca de dous projetos de ponte suspensa sobre o Douro, em frente do Porto, apresentados pela empresa Lucotte(3)

Chamado a uma conferência perante sua excelência o senhor administrador geral deste distrito, no dia 29 do último mês; ali me foi presente o objeto de que se tratava sendo-me patentes os projetos que a empresa da ponte suspensa sobre o Douro tem apresentado, pretendendo substituir o primeiro já aprovado pelo governo de sua majestade, por um outro, em consequência (segundo dizem os empresários) do referido projeto já aprovado, uma vez posto em execução, ir obstruir o trânsito, especialmente no fim da rua de S. João.

Nesta conferência foi dito, por parte das câmaras municipais do Porto e de Vila Nova de Gaia que incompetentes para julgar do mérito ou demérito de qualquer dos projetos cuja preferência se ventilava o que pretendiam tão somente, é que a obra oferecesse a solidez desejada, sem que produzisse os inconvenientes que consta(?) a adoção do primeiro projeto a empresa certificava se realizarão.

Estabelecida a questão deste modo, e pelo exame passageiro das plantas que me foram mostradas, para desde logo se me oferecerem as considerações seguintes que incontinente expus.

Que desprevenido como estava sobre aquele objeto, não podendo imediatamente tomar dele conhecimento exato, que me habilitasse a proferir uma opinião segura, e bem fundamentada, eu não poderia apresentar naquela ocasião senão um juízo precipitado, e emitir uma opinião improvisada, e portante suscetível de erro: que demais objetos daquela natureza demandavam séria atenção, e não comportavam improvisos, sendo às vezes preciso investigações no terreno, um exame bem detalhado das plantas, e até submeter ao cálculo certas questões que só por ele podiam ser resolvidas. Mas não obstante a ??(4) de exame mais detalhado, desde já me parecia pela simples comparação dos dous projetos nas suas disposições essenciais, que o segundo apresentava inconvenientes de primeira magnitude, enquanto que o primeiro ajunto(?) deles, se me representava oferecer vantagens decididas a todos os respeitos, e por isso assentava, que se o primeiro projeto fosse executável, sem ir impedir o trânsito ou comunicação necessária, e sem atacar propriedades na praça da Ribeira, deverá ser preferido, porque tendo já a louvação do governo de sua majestade, uma vez que não existissem ou se desvanecessem esses males que se figuravam, não podia haver razão alguma para que se não executasse. E ainda mesmo para o projeto aprovado pelo governo de sua majestade, aplicado no terreno em toda a sua integridade lhe não fosse adaptável, por isso não ficava demonstrado que fosse indispensável seguir o segundo projeto em que vi grandes inconvenientes, antes pelo contrário em me persuadia, que o 1.º projeto, quando não executável exatamente, era todavia suscetível de algumas modificações, que sem lhe alterar as suas condições oficiais de perfeição e solidez o tornassem acomodado às localidades, entendia também, que se deveria fugir da construção de um pilar ou pé direito do meio do rio, sendo que cumpre evitar esta construção mesmo em rios que não apresentam circunstâncias tão desfavoráveis como o Douro.

Todas estas ideias patenteei na conferência mas por parte da empresa não sendo aceites as minhas opiniões, que logo ali repugnaram convenio-se (o que aliás em todo o caso era necessário) que o engenheiro da empresa comigo passasse a fazer as investigações necessárias, para esclarecimento desta questão, a fim de que discutida entre nós se chegasse a algum resultado.

No dia seguinte pois ao da conferência passamos ao terreno a fazer a verificação do mesmo: o engenheiro da empresa repetiu as operações essenciais para a determinação da largura do rio, construção do seu perfil latitudinal N. E sem entrar num exame minucioso, verifiquei o essencial, reconhecendo que o terreno estava com suficiente exatidão levantado no plano que me foi presente como retificado pelo engenheiro da empresa, e do qual há cópia na planta 1.ª junto a este parecer.

Firme eu ainda na opinião que já tinha manifestado de novo discuti com o referido engenheiro as inconveniências do 2.º projeto, e o quanto me parecia exequível, com pequenas alterações (quando necessárias), o primeiro projeto.

Não foi possível porém acordar-nos, em consequência do que, para completar com toda a exatidão o conhecimento de causa as minhas investigações, a fim de dar um parecer definitivo, pedi me fossem presentes para as examinar detalhadamente, as plantas relativas aos dous projetos.

Procedi pois ao exame de todas as plantas com mais atenção, e não foi sem admiração que reconheci que o inconvenientes alegados [n]o projeto aprovado pelo governo de sua majestade, eram imaginários, sendo que ele é exequível sem a mínima alteração, salvo demandar uma pequena expropriação em Vila Nova.

«planta de uma parte do projeto da ponte suspensa sobre o Douro em frente do Porto e na margem direita do dito rio. Copiada da que foi aprovada pelo governo de sua majestade»


A empresa tinha mostrado desejo de conhecer o meu parecer definitivo e conquanto a mesma empresa tivesse já mostrado como que indisposta, e escandalizada pelas minhas ideias acerca da sua pretensão, não tendo assim a benevolência devida para com uma opinião, que quando mesmo errada fosse, merece respeito por ser conscienciosa, e emitida em corretude dos deveres da minha função; eu todavia não julguei dever revisar-lhe(?) dar conhecimento do meu parecer, mas entendo também que não só a referida empresa devia a declaração dele, senão que às câmaras municipais interceder nesta decisão convinha fazer patentes as razões que eu tinha para não aprovar o segundo projeto apresentado pela empresa.

Em consequência pedi a sua exa. o sr. Administrador Geral uma nova conferência, em que fossem convocadas as mesmas pessoas que o haviam sido na primeira, e a que demais fossem invocadas sua exa. o Intendente da Marinha, e o Piloto Mor da Barra.

Desejei sempre de escutar o maior número de opiniões, que me esclareçam sobre qualquer assunto, por isso que as minhas intenções são sempre de atingir a verdade, e torná-la bem patente, ao requisitar o convite daqueles dous funcionários, que embora sejam alheios à profissão de engenheiro, são contudo conhecedores do rio Douro, e sabem como se comportam as suas águas, qual a força da sua corrente, a natureza do seu álveo, fatores estes que convêm examinar, e que devem fazer parte das investigações relativas ao objeto em questão. Com a convocação destes funcionários, para lhes ouvir sua opinião acerca das suas circunstâncias peculiares deste rio, pretendo também mostrar à empresa, que eu não ponho capricho no triunfo da minha opinião, mas sim no devido acerto [e] resolução deste negócio. Estes funcionários efetivamente se expressaram de um modo que não invalidaram o meu juízo. Disseram que alheios à ciência hidráulica não sabiam os recursos ou meios que ela tinha para se opor à ação das águas nem se esses meios, aplicados ao caso de que se trata, eram bastantes para garantir a solidez da obra, afirmaram a impetuosidade da corrente, por ocasião das maiores cheias principalmente, e a sua velocidade formidável, não inferior a 15 milhas naquele lugar; - a variável das correntes, os redemoinhos que forma e a natureza corrosível do fundo do rio; - que se a tudo isto se atender; que se é possível apresentar uma massa que resista a estes efeitos, bom estava, mas que se não se podia garantir que o pé direito ou pilar no meio do rio vencesse sempre todas aquelas causas da ruína, então estava mais seguro, e preferível, o primeiro projeto.

Esta tinha sido a minha opinião na anterior conferência; tendo declarado na mesma, que se eu me visse colocado irreversívelmente(?) no dilema, de ou não haver ponte suspensa, ou de recorrer à construção de um pilar no meio do rio, eu nesse caso não me oporia à sua construção, não obstante os seus inconvenientes; visto que de outro modo se não podia obter a construção de uma obra tão necessária para esta cidade: mas que convencido como eu estava de que havia meios de executar a ponte, sem recorrer ao expediente de formar um pegão no meio do rio, eu não podia aprovar semelhante expediente.

Na segunda conferência eu dei enfim o meu parecer, que passo agora a expor: nele mostro:

- 1.º que o projeto aprovado pelo governo de sua majestade é em toda a sua integridade aplicável ao terreno, sem os inconvenientes pelos quais se pretendia que ele fosse rejeitado.

- 2.º Que quando mesmo, por qualquer motivo, interesse, ou ideia se não quisesse aplicar tal qual ao terreno o projeto aprovado, não era preciso por isso recorrer ao segundo projeto, pois que o primeiro era suscetível de modificações que o tornassem apropriado às localidades, sem ser preciso alterar-lhe as suas condições essenciais de perfeição e solidez; e mesmo sem grande diferença na despesa.

- 3.º Que o primeiro projeto considerado em sim mesmo, e em relação ao segundo, e às localidades, é de uma superioridade inquestionável.

A primeira parte do meu parecer; que tem por fim demonstrar que o primeiro projeto é aplicável ao terreno, sem os inconvenientes que se lhe atribuíam, funda-se inteiramente em algarismos, e bastaria esta prova tirar todo o pretexto para alterar o que já está aprovado.

Eu simplifiquei todas as plantas, e particularmente a que se acha aprovada pelo governo de sua majestade; e verifiquei as distâncias dos pontos essenciais do terreno, e as dimensões da ponte, e em resultado achei; que as distâncias relativas aos pontos do terreno estão devidamente representadas na planta aprovada, e que essas mesmas distâncias estão também conformes com as que são designadas no novo plano, que apresentou a empresa, e que envio por cópia, planta n. 1.ª. Mas se estão conforme as duas plantas quanto ao terreno, não estão todavia pelo que respeita à colocação, e dimensões da ponte. Reconheci pois, que o 1.º projeto da ponte suspensa não é aplicado ao terreno pela empresa como devia ser: e como efetivamente o está na planta aprovada; e que mesmo algumas dimensões da ponte eram ??(5) demandando de todas estas inexatidões as consequências desvantajosas que a empresa fazia recair sobre o projeto.

Na planta 1.ª está aplicado pela empresa ao terreno o 1.º projeto, o qual se acha indicado pela cor encarnada; a cor azul indica o segundo projeto, indicando as linhas pontuadas de amarelo a posição e dimensões da ponte, por mim retificada, e aplicada ao terreno tão exata e verdadeiramente como está na planta aprovada, donde tirei todas as dimensões, com o maior escrúpulo, e exatidão.

A planta 2.ª indica uma parte do alçado da ponte sobre a margem direita do Douro, conforme o 1.º projeto; e foi copiada também fielmente da planta aprovada.

Eis aqui os resultados a que chegamos, e que se deduzem do exame das mesmas plantas.


Legenda das distâncias relativas à ponte suspensa, e ao terreno em que ela se deve estabelecer Distâncias horizontais contadas no terreno em que deve colocar-se a ponte suspensa, conforme a planta aprovada

Do norte para o sul: da quina da casa da fonte, na praça da Ribeira, até à borda do cais, na margem direita : 74m(6). Da borda dos cais na margem direita até ao alinhamento dos cais em Vila Nova : 254m. Do alinhamento dos cais em Vila Nova até ao alinhamento das casas : 35m. Comprimento total (...) do terreno de que podemos dispor, para a colocação da ponte suspensa, no sentido longitudinal da mesma : 354m.

NB: estas distâncias relativas ao terreno estão conformes, tanto na planta aprovada pelo governo de sua majestade como na que agora a empresa apresenta como retificada, e certa, e cuja cópia é a planta 1.ª, portanto sobre a extensão do terreno ambas as plantas combinam, não há desconfiança entre mim e a empresa a esse respeito. Vejamos porém quanto à ponte e sua colocação.


Distâncias ou dimensões horizontais tomadas no sentido longitudinal das massas visíveis que compõem a ponte suspensa, extraídas da planta aprovada pelo governo

De norte para o sul: pedestal de atracamento, comprimento : 8,8m. Distância do pedestal de atracamento aos pilares de suspensão :  51,2m. Subtenso(?) do arco ou distância entre os pontos de suspensão nas duas margens : 223m. Distância dos pilares de suspensão na margem esquerda aos pedestais de atracamento na mesma margem : 51,2m. Pedestal de atracamento, comprimento : 15m. Total da distância longitudinal, ocupada por todo o sistema da ponte : 349,2m.

Portanto em resumo temos: comprimento total do terreno disponível: 354m. Comprimento que deve ocupar a ponte: 349,2m. Espaço de terreno livre, e desocupado que resta: 4,8m.

NB: Tornamos a repetir que estas dimensões da ponte são tomadas fielmente na planta aprovada. Resta-nos saber se os referidos 4,8 metros de terreno desembaraçado e livre nos crescem nas margens direita, ou esquerda, ou em ambas, para cujo conhecimento, tendo nós já o comprimento total ocupado pela ponte, só nos falta saber a colocação da mesma ponte, e para isso devemos tomar um ponto de partida, e seja este o eixo dos pilares de suspensão na margem direita, teremos.


Terreno disponível na margem direita, conforme já se acha

De norte para sul: desde a quina da ponte, na praça da Ribeira, até à banda do cais: 74m (NB esta distância se pode verificar na planta 1.º). Espaço necessário na mesma margem para o estabelecimento da ponte conforme a planta aprovada pelo governo, é como segue: para a distância a que devem ficar recolhidos da borda do cais aos pilares de suspensão: 3m. Desse esses pontos de suspensão até aos pedestais de atravessamento: 51,2m. Comprimento dos pedestais: 8,8m.

a planta na sua totalidade


Soma o espaço que deve ocupar a ponte na margem direita 63m (estas distâncias e dimensões se podem verificar na planta n.º 2). Os quais 63 metros abatidos dos 74 acima notados deixam de resto 11. Que é o terreno que fica livre e desembaraçado na praça da Ribeira, no sentido do comprimento da ponte que é representado pelo sul na planta 1.ª.

Lateralmente à ponte, e na mesma praça, fica livre o espaço seguinte: no lado do nascente > menor largura entre a ponte e as casas: 6,5m; no lado poente > menor largura entre a ponte e as casas: 5,5m.

Vejamos agora o que sucede na margem esquerda: terreno disponível na margem esquerda: desde os pontos de suspensão, na margem esquerda, até às casas em Vila Nova há a distância : 60m. Terreno demandado para o estabelecimento da ponte: desde os referidos pontos de suspensão até à extremidade sul dos pedestais de atracamento : 66,2m. Terreno que falta na margem esquerda para o estabelecimento da ponte : 6,2m. Os quais 6,2 metros reduzidos à medida portuguesa produzem : palmos 28.

NB: Se se reduzir, como deve, a distância entre os pontos de suspensão de 223 metros a 220, conservando no mesmo local em que estão designados na planta aprovada os pilares da margem direita aproximando deles os da margem esquerda 3 metros, a fim de guardarem entre si a referida distância de 220 metros, então teremos, que o espaço que falta na margem esquerda, para o devido estabelecimento da ponte, se reduz a 3,2 metros, ou 14,5 palmos que se obterão expropriando as casas em frente à ponte, cuja expropriação não se eleva a mais de 6.000$000 rs.

A inspeção agora das plantas, especialmente da 1.ª, faz ver evidentemente onde está o erro. Em primeiro lugar os pilares de suspensão, que conforme a planta aprovada pelo governo, devem achar-se recolhidos da borda do cais tão somente 3 metros, estão a 7 do modo que o indica a empresa ABCD. Em segundo lugar, a distância dos pilares de suspensão aos pedestais de atracamento, que na planta aprovada pelo governo de sua majestade está marcada de 51,2 metros, na planta apresentada pela empresa foi aumentado até 55 metros. Destes dois erros resulta, que os pedestais de atracamento que deveriam, conforme as dimensões da planta aprovada, estabelecerem-se em EFGH e IKLM, como eu os designo, estão em GHNO e KMPQ, como a empresa os marca; e com esta alteração sem dúvida que restava um mui pequeno espaço para a circulação e passagem de pessoas e veículos que da rua de S. João pretendessem dirigir-se ao caminho que seguia ao lugar do cais, e dali para aquela rua. Mas claramente se vê que retificada a posição da ponte, e colocando-se os pedestais de atracamento em EFGH e IKLM, como deve ser, fica um espaço livre e desembaraçado para a circulação de 11 metros, que corresponde a 50 palmos; largura mais do que suficiente para as necessidades do trânsito.

Também as casas laterais da praça da Ribeira ficam bem desembaraçadas, e desafrontadas da ponte, pois como já disse, do lado do nascente há uma largura ou distância da ponte às casas é de 6,5 metros (29,5 palmos), e da parte do poente 5,5 metros (25 palmos proximamente). Além de que, esta porção da ponte, que é a sua rampa de subida e entrada, não tem grande altura sobre o terreno, e tanto menos o deve ter quanto é certo, que na planta 2.ª está indicado o mesmo terreno com uma declividade menor do que efetivamente tem.

Do lado de Vila Nova a expropriação não pode exceder 6.000$000, e se compreende no espaço que abrange menor largura do que a frente de 3 propriedades de casas, de não grande valor. Este espaço é indicado por HJLM.

margem gaiense


O fundo da expropriação é como já disse de 28 palmos, quando se dá entre os pilares de suspensão 223 metros, distância que dessa grandeza marquei na planta 2.ª por ser a que efetivamente medi na planta aprovada, mas eu creio pela verificação que fiz pelo cálculo, que a verdadeira distância, e a que concorda com as outras dimensões da ponte é de 220 metros, donde resulta que nesse caso a expropriação será menos 3 metros, no sentido do fundo das casas, e portanto se reduzirá a 14,5 palmos.

As linhas curvas G'H' e J'K' na planta 1.º indicam os muros da rampa de saída e entrada da ponte, em Vila Nova, e conhece-se evidentemente que todo o espaço entre essas linhas, e as casas é livre e desembaraçado para o trânsito.

Em definitivo, vê-se que o projeto aprovado pelo governo de sua majestade foi alterado pela empresa, já recolhendo mais para terra na margem direita os pilares de suspensão, já aumentando a distância deles aos pedestais de alinhamento, que por esta razão ficam também mais distantes da margem do que devia ser.

Eis aqui os resultados a que cheguei pelo exame o mais atento feito sobre as plantas. Não me contentei porém só desta inspeção; recorri também ao cálculo para verificar as diferentes grandezas que estão no projeto aprovado, deduzindo umas das outras, vendo quais eram as que se harmonizavam, e que competiam àquele projeto (...)

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 

(...) Enquanto à 2.ª [ponto do parecer], em que sustentei ser o 1.º projeto suscetível de algumas modificações sem ser preciso recorrer a um inteiramente diferente, parece-me que o simples bom senso o está demonstrando: trata-se de resgatar uns 30 palmos no fim da rua de S. João, para que o trânsito não seja dificultado, ora custa a acreditar, um projeto de ponte e destas dimensões, seja uma cousa de tal modo imutável em sua posição, de tal modo invariável em suas dimensões e partes componentes, que não sofra a mínima alteração, ou modificações que nos resgate uns 5 a 6 metros, numa extensão de construções que ocupam 349 metros! Na verdade, se assim fosse, a construção de pontes suspensas era sui generis especialíssima, ou achava-se muito atrasada.

As quantidades em grandezas que entram no projeto de uma ponte suspensa são suscetíveis de variar dentro de certos limites, podendo-se a priori estabelecer os valores de umas, e deduzir os valores correspondentes para outras, para que todas elas satisfaçam a certas condições dadas, sendo algumas destas condições determinadas pelas localidades.

lado portuense


Não obstante tudo isto, a empresa negou que seja possível modificar o 1.º projeto. Não é preciso ter muitos conhecimentos em pontes suspensas para reconhecer que isto não é exato. Não é crível que pequenas alterações nas disposições de uma ponte acarretem despesas enormes, a construções gigantescas como diz a empresa. Entramos numa pequena investigação. Introduzimos algumas modificações no 1.º projeto, e comparamos a tensão das cadeias em ambos os casos, por ser esta uma das grandezas mais importantes na disposição de uma ponte suspensa. (...) Daqui concluímos que o aumento da tensão, não obstante a diminuição da flecha, não é tal que traga um aumento considerável na despesa, sendo esse mesmo pequeno aumento equilibrado pela diminuição de 3,35 metros que se pode fazer na altura dos pilares de suspensão, e pela diminuição no comprimento das cadeias, podendo ganhar-se nesta segunda disposição, pelo que toca ao terreno, mais de 4 metros.

Isto é um exemplo trazido aqui sem mais desenvolvimento, porque só tende a mostrar, que se podem fazer certas modificações num projeto de ponte de modo que satisfaça a certas condições, e que essas modificações, se pequenas, também não lançam em despesas prodigiosas, o que aliás é evidente, mesmo sem recorrer ao cálculo.

Como a empresa há de responder sobre o meu parecer, vejo-me obrigado a ser mais extenso para prevenir certas objeções que a empresa poderá fazer, ainda que algumas delas em rigor não merecem muita atenção.

A empresa parece ligar ideia de grande despesa a se avançarem os pilares da margem direita um pouco mais para o rio. Mas é preciso que se advirta que aqueles pilares, que na planta 2.ª não estão completamente figurados, faltando-lhe a indicação de seus fundamentos, e embasamento, não hão de ser colocados sobre o cais como naquela planta parece ver-se. Os pilares, para a devida solidez da obra, devem necessariamente criar-se desde o terreno firme, para que, ainda mesmo quando o cais estivesse em bom estado, ele não é suscetível, como todos, se não, ali(?) sofrer certa carga determinada, e não construções a cujo peso se não atender, quando mais que aquele cais se acha arruinado desde 1824, se a memória me não falha, tendo sido fortificado exteriormente para que não desabasse, por um reforço de pedra lançada a fundo perdido. É evidente portanto a necessidade de apoiar aquela porção de cais, para criar a obra desde terreno firme: o maciço de pedra que ali se acha convenientemente arrasado, e preparado, pode-se apropriar otimamente de modo que ofereça uma base sólida para a construção, e que sirva para os fundamentos da obra. E como esse maciço se estende em frente do cais, e em continuação do alicerce do mesmo, tanta dificuldade se sentia em construir os pilares nos pontos em que se acham marcados, como em outros um pouco mais avançados para o rio. Também se disse que no projeto aprovado pelo governo não fazia comunicação do lado do cais da alfândega para o lado dos guardas, o que não é verdadeiro: basta a simples inspeção da planta 2.ª para ver, que no espaço y't', compreendido entre os pilares e o dormente(?) da ponte, tem suficiente extensão para por baixo daquela porção da mesma ponte passarem indivíduos, carros, ou outros quaisquer veículos.

Passarei agora à 3.ª parte deste parecer e na qual me ocupo dos inconvenientes do 2.º projeto em relação ao primeiro, e das vantagens decididas deste a todos os respeitos.

O rio Douro, caudal e arrebatado em seu curso, é sujeito a grandes enchentes, com correntes fortíssimas, e muito variáveis, fazendo até redemoinhos formidáveis, especialmente na ocasião das maiores cheias. Com a massa considerável das suas águas, e pela declividade do seu leito produz, grande erosão nas margens e fundo. O álveo é pela maior parte do terreno de aluviões; sendo verdadeiramente junto ao Porto, seu leito natural as massas de granito que o circundam por toda a parte, e que constituem a rocha sobre que cobre, mas sobre esta rocha, e leito natural se oferecem camadas mais ou menos espessas de detritos da mesma rocha, e dos depósitos que o rio acarreta de distância, ou que forma nos lugares pela corrosão das margens. Estas camadas constituem um fundo móvel, e variável, sempre disposto a obedecer à ação das águas. É isto mesmo o que os factos justificam; que bem poucos são os lugares em que no Douro, junto ao Porto, se encontra permanência de fundo: a maior ou menor abundância de águas que o rio leva fazem sentir alterações, as mesmas marés as ocasionam, e até a ancoragem das embarcações produz fundões, mais ou menos consideráveis.

Mas todas estas variações aumentam de ponto por ocasião de uma grande cheia, que faz alterar o regimen do rio o mais possível, já formando baixos onde não havia, já produzindo fundões em outros lugares, e correndo o fundo de sorte, que põem a nu a rocha em algumas partes, lavando e desfazendo completamente a camada de terrenos de aluvião que a cobria.

Se tais factos são certos, como o podem abonar todos os práticos do Douro, como não se julgará exposto à ruína, e perigo de segurança, um pilar no meio do rio, embora executado com todas as precauções da arte? O ímpeto das cheias, e a variedade das correntes atacariam aquela obra em todos os sentidos, que exposta assim no meio do rio ao furor de tal ação não ofereceria a garantia de uma duração que se possa contar por séculos, como se exige em tais obras. Se os cais construídos nas margens do rio, encontrados e ligados ao terreno, sofrem imenso daquela ação, muito mais sofrerá aquela obra, mais exposta pela sua localidade e evolução(?), e onde uma ação mais poderosa se empregará.

Ainda mesmo, repetimos, que aquele pé direito fosse construído com todo o esmero da arte, formando um maciço perfeito, quem afiançará que o terreno móvel, e pouco firme em que se há de ajuntar se não escavará, e que, falto de apoio pela sua raiz, aquela construção se não há de precipitar.

Na localidade em que se pretende construir aquela obra o fundo é da areia e saibro, e ainda mesmo quando se provasse que naquele lugar esse fundo é atualmente constante, resta provar que o continuará a ser depois de executada a obra. É opinião da contestada, que tais obras produzem sempre uma alteração no regimen dos rios, fazem mudar a corrente em direção e intensidade, e originam escavações ou areamentos em certos lugares. No caso de que se trata, receio que um pilar no meio do rio, que em consequência da base que deverá ocupar, pelos taludes com que será fortificado, se estenderá através do mesmo rio obra de 140 palmos, produza na sua parte anterior uma escavação, e na sua parte posterior um baixo; comprometendo o primeiro efeito a segurança da obra, e o segundo a facilidade da navegação, uma vez que se prolonga esse baixo, como é possível que aconteça, até uma das margens. Aquela construção fazendo o efeito de um estreitamento no rio há de apresentar os mesmos resultados que são comuns a todos os estreitamentos, que é a maior erosão no fundo e margens, ora podendo elas ser desigualmente corrosiveis, a corrente se determinará para aquele canal, ou margem onde menos resistência encontrar, o que produzirá o areamento do outro canal, e demais seguir-se-á serem grandemente atacadas as obras que se acharem construídas nessa margem, para onde se determinar e encostar a corrente com toda a força.

Todos estes efeitos estão plenamente provados nas obras sobre as correntes dos rios; nem em Eytelwein, Smeaton, Bossut, Fabre, Giuarel(?) e Deschamps tenho encontrado cousa em contrário. (...) Pela represa que os pilares das pontes fazem nas águas, principalmente quando se não dá a devida abertura aos arcos, se têm manifestado muitas vezes grandes escavações junto a seus pés direitos, o que tem ocasionado a ruína de muitas pontes.

João Crisóstemo de Abreu e Sousa, no outono da vida


Estes efeitos se principalmente se fazem sentir em rios caudalosos, rápidos, de fundo corrosível, e sujeitos a grandes cheias, circunstâncias que todas concorrem em máximo no Douro.

Os pilares das pontes fazem também o efeito de estreitamentos, produzem a corrosão do fundo, e das margens até uma certa distância, no abaixo e acima, e algumas vezes têm posto em risco obras construídas nessas margens.

(...) Todas as razões que se têm exposto são mais do que suficientes para dar as preferências ao primeiro projeto da ponte suspensa sobre o Douro, mas ainda acrescentarei, que as pontes suspensas de um só e maior arco, são preferíveis às de menores arcos, por sofrerem menos do que os segundos dos movimentos de vibração, e de oscilação a que são expostas estas construções, de modo que em regra geral, tanto maior é o arco, tanto maior são as vantagens que se obtêm na execução destas pontes.

A beleza de uma obra que deve durar séculos, decorar uma grande cidade tendo-na(?) por ser(?) padrão artístico e histórico de uma época, que deve demais ser paga pelo povo durante muitos anos é objeto atendível, conquanto não seja essencial. Mas se a todos os outros respeitos o projeto aprovado pelo governo de sua majestade leva a superioridade ao 2.º, também a este respeito tem a primazia. A ponte como está traçada no projeto aprovado é muito mais bela, e inculco mais arrojada, do que a segunda.

Se as pontes devem ser monumentos de um estilo severo e simples, é preferível, pelo lado do gosto, um projeto que mais satisfaça a essas condições. Ora, posto que as pontes de ferro geralmente não tenham o cunho de grandioso que se patenteia nas grandes pontes de pedra, contudo as pontes suspensas são belas pelo arrojo da execução, quando em só dous pontos de suspensão se estriba uma grande distância: mas se em(?) ajuda [de?] um arco empregarmos dous ou mais, com os seus competentes pés direitos, a ponte amesquinha-se, e não produz admiração, nem o efeito tão agradável como o que sentimos quando descobrimos uma grande dificuldade vencida.

Parece-me haver demonstrado os três pontos do meu parecer, isto é:

1.º Que o projeto aprovado pelo governo de sua majestade é exequível em sua integridade, sem os inconvenientes que se lhe atribuíam;

2.º Que quando mesmo, para satisfazer a qualquer conveniência, se não quisesse executar aquele projeto em todo o rigor, ele é suscetível de modificação que o tornam adaptável no terreno, sem cair em inconveniente algum.

3.º Que o projeto aprovado pelo governo de sua majestade tem decididas vantagens sobre o segundo que a empresa oferece, sem partilhar nenhum um dos inconvenientes que nele se encontram.

De todo o exposto, concluo, que não há razão para se alterar o projeto a que a empresa está ligada, e que o governo de sua majestade já aprovou.

Direi enfim, que o 2.º projeto não apresenta nenhuma conveniência pública que o torne preferível: é só proveitoso à empresa que na sua execução fará menor despesa do que com o 1.º projeto.

E como neste assunto só pretendo que se chegue ao melhor resultado, rematarei pedindo, que a opinião da empresa e a minha sejam submetidas ao exame de pessoas competentes, se tanto for preciso para satisfazer a mesma empresa. O governo de sua majestade, que sem dúvida há de nomear comissários para fiscalizar este contrato, a eles, ou à distinta Comissão de Obras Públicas que acaba de nomear, ou enfim a quem o julgar conveniente, poderá mandar apresentar as duas opiniões, para serem examinadas devidamente.

Porto, 7 de setembro de 1839

João Crisóstomo de Abreu e Sousa

Tenente do Corpo de Engenheiros servindo na Inspeção das Obras Públicas da Direção do Norte(7)

« »


Caro leitor, espero que tenha apreciado a leitura deste documento, que ainda que transcrito em forma parcial, já muito extensa tornou esta publicação. O que se passou a seguir é de uma forma geral conhecido dos interessados: a contestação à construção de uma ponte naquele local manteve-se. E só posteriormente se veio a optar pelo sítio em que a ponte foi efetivamente construida. Também ela contestada, quer pelos transeuntes que se viam na obrigação de gastar tempo e solas em ir quase a uma ponta da cidade, para atravessar para sul (certamente seriam apoiantes da ponte caso fosse construída na praça da Ribeira), assim como dos barqueiros que se queixavam da câmara ser mais amiga dos concessionários da ponte, do que deles.

Finalizo com uma planta abaixo apresentada, dos manuscritos de Sousa Reis, que nos remete para a ideia original da construção de uma ponte com um pilar a meio do rio. Proposta de 1826, de um promotor morador em Lisboa chamado Abel Dagge. Com ou sem pilar, uma ponte que atravessasse o rio desde a praça da Ribeira até ao largo Miguel Bombarda em Gaia, seria mais grandiosa do que a que efetivamente existiu.


Voltando aos dois projetos da empresa de Lucotte, se o primeiro, o aprovado pelo governo, seria efetivamente funcional, só um estudo aprofundado de um engenheiro interessado pelo passado poderá dizer (fica lançado o mote!).

E para quem quiser saber um pouco mais sobre a ponte efetivamente construída, este projeto e outras pontes suspensas, poderá aproveitar uma visita a esta página.

Viriato


ӽӽӽ

1 - Para uma boa biografia sobre este cavalheiro, ver aqui, ou aqui.

2 - O texto vai com a ortografia atualizada, e não respeita os parágrafos do autor, por forma a tornar a leitura mais fluída.

3 - As plantas em discussão são as que aqui se apresentam.

4 e 5 - Palavra incompreensível.

6 - João Crisóstomo usou metros, em detrimento das medidas nacionais, certamente por serem de origem francesa os planos da ponte. Em Portugal o sistema métrico seria oficializado definitivamente em 1 de janeiro de 1860 (ver mais aqui).

7 - No original, T.e d Corpo de Eng.ros serv. na Insp.ão das Obr.s P. da Div. do N.te.

(última publicação d' A Porta Nobre, a 17-09-2021)

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Qual Porto ?

Enquanto ia vendo uns programas televisivos que agora não vêm ao caso, em que um punhado de escritores arem conotados com as aldeias transmontanas ou beirãs onde nasceram, dei comigo a pensar que se fosse escritor de renome seria conotado com uma cidade: o Porto! Esta é a minha terra! É nela que reside a minha alma de menino.

Mas não é o Porto do séc. XXI, não! Nem mesmo o decadente Porto da sua primeira década… O meu Porto, é o último Porto, o que já morreu. nascido em 1123 e fenecido num qualquer crepúsculo invernal de 1998. Era aquele Porto que tinha gente dentro, a morar, mesmo que muitos em condições precárias (para não dizer pior…), mas era um Porto vivo. O seu sangue feito carne percorria-o em duas pernas, pelas suas ruas e ruelas acima e abaixo. Eram os MORADORES a gente que mourejavam o seu labor diário e por vezes, como vi em alunos das escolas de S. Francisco e da Reboleira, sem um pequena almoço no estômago, e desmaiando nas ruas.. (sim, assisti a isto, L.. onde estás tu, hoje?). Aos autóctones juntavam-se já muitos habitantes dos seus subúrbios, alguns deles "expulsos" ou auto excluídos, da cidade na sua própria geração; mas que ainda procuravam para trabalhar, visitar familiares, amigos…

Depois veio o fim, e comércio tradicional esvaiu-se, ferido de morte, pelas lanças que sucessivas más políticas, porque desiquilibradas, ditaram. Renasceu agora feito outra coisa. Uma coisa em forma de assim, como diria Alexandre O'Neill. Suprema ironia que nos deveria levar às lagrimas de tristeza: nunca o Porto teve tanta gente na rua, mas nunca o seu caráter se viu tão vazio. Lojas incaracterísticas e (quase) todas a vendar a mesma porcaria, ruas completamente artificializadas, música anglo-saxónica berrada no meio das pedonais, granito estrangeiro, feio e anacrónico, que cedo ficou porco com tudo o que cai ou deitam no chão. Enfim, uma cidade igual a tantas e tantas outras da Europa, mudando apenas o cenário, para que a selfie, só ela, registo o local onde o turista da escapadinha de três dias saiba, daqui a 10 anos, onde passou (porque ele nunca na verdade Esteve).


Todos os dias é uma passar constante da mesma coisa, turismos e turismo, mesmo na chamada época baixa, são aos magotes os que vêm em pacotes baratos; para logo logo seguirem para outra cidade qualquer da Europa Low Cost (para eles, note-se). O que registam da cidade? Pouco, muito pouco ou quase nada. Ficará a imagem fugida de um cenário de um Harry Potter e do embarque, ao fim da tarde, no terminal de cruzeiros, onde quase se perdia o barco, porque algum acidente engalinhou o trânsito.

E depois há os que, sendo de cá, criticam quem pense como eu, como se fossemos os velhos do Restelo... Saudosistas da pobreza, do "no meu tempo é que era bom". Não senhores, ninguém quer reitrar o despotismo sorridente e hipócrita de hoje para voltar ao despotismo do antigamente. E esta contra argumentação vossa, que na verdade não o é pois não recorre a cogitação, demonstra antes cumplicidade com o vigente, onde não se pensa ou não se quer ter outra coisa. Não conseguem, os nossos políticos locais, conceber um plano a médio prazo para o futuro da cidade e da sua sustentabilidade, tendo dado rédea solta à sua betonização, gentrificação e descaracterização; mantendo-a refém do parque temático em que foi transformada; um não lugar que até agora não existia nos estudos, mas que bem pode agora medir forças com os aeroportos e os centros comerciais, reis dos não lugares.

Nada dura para sempre, a a cidade lindinha e liofilizada irá acabar por desaparecer, da mesma forma como tantas outras vezes, à custa das pessoas infelizmente... Nesse dia já cá não devo estar, mas que ele virá, virá. Deixará ela saudades "saudosistas"?

Viriato

domingo, 6 de outubro de 2024

A Fonte da Arca

No passado mês de agosto de 2023 tive a possibilidade e felicidade de dar a conhecer aos interessados pela histórica portuense o aspeto do espaldar (e não só) da fonte da Arca na cidade do Porto, através da publicação de um artigo na já secular revista O Tripeiro; em parceria com o meu amigo, o arqueólogo Dr. Mauro Correia. Confesso que foi realmente um achado, um acaso, que ainda assim me deixou verdadeiramente contente por poder ser eu a dar a conhecer a imagem dessa fonte tão citada mas cuja traça se ignorava[1]. A publicação que o leitor poderá ver abaixo, contudo, não desenvolve o tema e a divulgação das plantas, antes repesca uma – mais uma – das publicações que se encontravam no meu antigo blog. Vale a pena lê-la bem até ao fim...


* * *


A descrição fonte da Arca que abaixo apresento e cujos restos viram de novo a luz do dia há poucas semanas[2], mas que terão de ser removidos para dar lugar ao futuro (a estação do metro da praça da Liberdade), será por ventura pouco conhecida por se encontrar no quinto dos sete volumes manuscritos de Henrique Duarte e Sousa Reis (1810-1876), que se mantêm inédito.


«Descrição documentada do edifício e Fonte da Natividade, situada na Praça Nova, Praça da Constituição, e ultimamente chamada Praça de D. Pedro, que foi edificada como bazar público e passeio, pelo Senado da Câmara no ano de 1682

A fonte da Natividade foi mandada levantar pelo senado da câmara, e à custa do cofre da cidade no ano de 1682, não só para aproveitar ao uso público a sua água, que naqueles sítios aparecia, como para junto dela se formar um passeio agradável nas tardes de verão, e assim acontecia, porque era sumamente frequentado pelos cidadãos de todas as classes pela frescura, que lhes ofereciam as muitas árvores, de que era rodeada esta fonte e o terreno próximo. A sua planta topográfica já a deixo riscada, e posto que não respondo por sua inteira exatidão, mostra ela tanto, quanto basta para esclarecer a descrição que me propus escrever deste edifício, do qual nem as sombras já existem. Pelo lado do norte confrontava com a Praça Nova fazendo face aos Passos do Concelho, pelo nascente igualmente com a mesma praça e ficava fronteiro este edifício ao do convento dos padres Congregados do Oratório, pelo sul corria a rua que atravessava da Porta de Carros para a Calçada dos Clérigos, à qual a esse tempo vulgarmente se chamava Passeio dos Loios, pelo poente corria uma linha de propriedades particulares que lhe ficavam encostadas, e pela frente delas havia a rua chamada de Entre Vendas, porque aí estavam estabelecidas de um e outro lado da mesma rua. Este edifício que se intitulava Fonte da Natividade teve primeiramente o nome de Fonte da Arca, e era ele um bazar de miudezas, posto serem estes estabelecimentos para ali levados muito posteriormente à sua fundação que só foi delineada para passeio público dos habitantes desta cidade; pelas suas três faces externas de nascente, norte e poente não apresentava obra mais alguma, que as paredes ligeiramente rebocadas com duas portas que davam ingresso ao bazar pelo norte, e as paredes rematava o beiral do telhado que obrigava as tendas ou pequenas lojas estabelecidas no seu interior. Pela parte do sul corria um parapeito talvez da altura de 7 palmos, que faceava ou nascia do pavimento do trânsito público, ao qual se encostavam as duas escadarias de pedra, que convergindo ao centro prestavam-se ambas a facilitar a descida para o tanque e suas bicas, que estavam soterradas abaixo do nível da praça e ruas laterais cousa de 15 a 20 palmos, e estas escadarias eram vedadas por cancelas de madeira, as quais estavam sempre fechadas com chaves possuídas pelos moradores próximos, que só tinham a servidão da água; posto que antigamente nem estas cancelas tinham por ser geral e público o passeio, e o desfrute de todas as avenidas desta ponte; porém como de tudo abusa o povo, e às autoridades cumpre cortar esses abusos, sem dúvida desta forma lhe estabeleceram uma barreira insuperável a seus desatinos. No primeiro plano, como se vê da planta, e(?) era mais baixo que o nível do pavimento público, estava assentada a grande taça ou tanque da água, que aí continuamente despejavam quatro bicas de bronze colocadas nas bocas de outras tantas carrancas de pedra, das quais três ainda se vêm no chafariz da praça de Santa Teresa; esta taça tinha a mesma forma, que o átrio ou pátio central deste edifício, que como está traçado continha três faces, das quais a central é a principal. Estas três fachadas, eram como partidas, ou para melhor dizer duas cornijas* salientes e portas separavam as duas do lado em dois corpos, e a do centro em três: a primeira destas cornijas* corria na direção do pavimento térreo das ruas e praça adjacente, e a segunda rematava o andar corrido em circunferência; se a fachada principal não contivesse o acrescento do terceiro corpo, em que excedia os laterais. Neste correr em circuitando o edifício internamente observavam-se as lojas das diferentes fazendas e miudezas, que são delineadas na planta, e facilmente se alcança, a sua servidão se fazia pelo corredor ao longo de toda a sua extensão sendo seu ingresso pelas duas portas, de que já falei voltadas para os Paços do Concelho, e outras, uma de cada lado assentes quase a par das cancelas, que fechavam a descida para o tanque. A luz que recebiam as lojas, era-lhes transmitida por frestas praticadas nas paredes voltadas para o pátio, E algumas clarabóias abertas e envidraçadas, que se viam salientes sobre o telhado. A fachada principal continha no primeiro corpo as quatro bicas e carrancas, no segundo via-se uma laje quadrilonga, que tinha a seguinte legenda.


i1 Planta topográfica do antigo edifício da Fonte da Arca chamada depois Fonte da Natividade, já demolida. A azul o autor representou os terrenos dos particulares, a vermelho o passeio, depois corredor e a amarelo o tanque (a legenda faz também menção às quatro bicas, na parede norte e às tendas que ladeavam a estrutura em três ângulos (exceção para o sul)


Divitias, offert, argentea munera fundit,

Thesauros populo consecrate arca suos,

Solvitor in liquidum christalus candida flumen.

Qui sitit accedat non nocet unda, bibat,

Hoc opus egregium cura obsequiosa Senatus

Extulit, excelsus thronus ut esset aquis

Expensis Publicis

AD 1682


E no terceiro em que excede, ou se avantaja aos dois laterais estava montada uma larga sacada com varanda de ferro, e duas grandes lanternas nos cantos e extremos dela, nas quais se alimentava constantemente luz de azeite, em honra de Nossa Senhora da Natividade, cuja imagem estava colocada em um oratório ou grande nicho em forma de santuário, que se eleva acima desta sacada, e na qual pousavam aos lados do oratório duas colunas de granito primorosamente lavradas; servia de remate a esta construção, no centro e parte superior do oratório as armas da cidade, e dali partiam para os lados em toda a extensão desta fachada central diversas curvas cujas eminências eram adornadas por pedestais, e neles pousavam as armas reais, pirâmides e estátuas diversas alternadamente colocadas. As cornijas* finais da[s] duas fachadas laterais também eram cobertas em distâncias iguais com estes embelezamentos. Projetou-se demolir toda esta obra, quando em 1820 se deliberou levantar na Praça da Constituição o monumento para eternizar o faustoso dia 24 de agosto desse ano, mas sobrevieram tais estorvos, que só depois de mais 13 anos decorridos, é que se conseguiu desobstruir esta formosa praça (...) »

* no original coronigens


i2 Parcial da planta de 1822 para o alinhamento da praça da Constituição, sentido de regularizar o terreno rumo à futura praça da Liberdade: a) o que restava da fonte da Natividade . b) tanque construído no final do século XVIII em substituição da fonte da Natividade e por vezes confundido com ela . c)
Palácio das Cardosas, hoje ocupado pelo Hotel Intercontinental . d) edifício da Congregação do Oratório, do qual apenas subsiste a igreja . e) Paços do Concelho oitocentistas, demolidos em 1916


De seguida o autor sumaria a documentação que saiu a lume no periódico Borboleta Constitucional de 2 de julho e de 31 de outubro de 1822, quando surge o litígio entre o Senado da Câmara e o Cabido portuense sobre a posse do terreno onde se construira o passeio e a fonte em 1682 (a esgrima de argumentos sobre quem era na verdade o seu verdadeiro possuidor estará na origem do atraso na demolição).

Viriato


ӽӽӽ

1. Já em 2019 o arq. Aguiar Branco, notável investigador e divulgador de temas portuense, havia produzido um muito bom artigo sobre esta fonte, recreando-a quase ao pormenor e de forma correta. Vale bem a pena conhecer esse artigo do iníco ao fim, pois creio que o meu apenas vem complementá-lo.

2. Escrevia originalmente em março de 2022.

FONTE: Henrique Duarte e Sousa Reis, Apontamentos para a Verdadeira História Antiga e Moderna da Cidade do Porto... vol. 5 (inédito, mas agora digitalizado) IMAGENS: 1. Cópia de Henrique Duarte e Sousa Reis do desenho publicado na Borboleta Constitucional - 2. Plano da Praça da Constituição, levantado para designar o lugar em que se há-de colocar o monumento designado a perpetuar o fausto dia 24 de Agosto de 1822


E eis aqui a fonte da Arca, informalmente fonte da Natividade, em toda a sua beleza! Para mais pormenores sobre o projeto em que a mesma se insere e restantes plantas anexas ao mesmo, remeto o leitor para o artigo de O Tripeiro acima citado.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

As litografias do Barão de Forrester

Abaixo transcrevo um pequeno texto que descobri quando folheava um dos primeiros periódicos da cidade, o quase desconhecido jornal O Artilheiro, que no dia 4 de março de 1836 publicou o seguinte texto:


«BELAS ARTES

É com o sentimento do mais entusiástico amor da pátria, que lançamos mãos da pena para noticiar que a heroica cidade do Porto principia a desenvolver de si o gosto particular de fazer conhecer os magníficos pontos de vista, que a fazem saliente entre as mais pitorescas cidades da Europa. De gravuras representando algumas paragens do Porto, só temos notícia da grande e antiga estampa, de antes de 1790, de toda a elevação da cidade, vista do Choupelo, a qual foi depois resumida para a Descrição de Agostinho Rebelo da Silva [sic]; bem como de uma vista de S. João da Foz, na mesma descrição.


Há seis anos pouco mais ou menos, que numa obra periódica publicada em Londres, das principais cidades da Europa, se incluiu a cidade do Porto em um dos folhetos, contendo somente 4 vistas - de quatro diferentes pontos, duas ao nascente, e duas ao poente dela. Estava porém reservado para esta época, que Mr. Joseph James Forrester, mancebo inglês pertencente à casa comercial da firma aqui estabelecida com este sobrenome, principiasse a dar uma regular descrição de todas as belezas pitorescas do Porto, de que acabam de publicar-se duas partes, em 9 finíssimas estampas, gravadas primorosamente, e tiras em papel da China.

Os objetos escolhidos para princípio dessa coleção são: O Porto visto do alto da Serra da Arrábida, olhando para o nascente [i6]. O convento da Serra, visto do lado do sul fora da estrada que fechava a posição militar deste baluarte da liberdade no sítio de 1833, em um momento de ataque e defesa. A vista do anfiteatro de toda a cidade, desde as Escadas do Codeçal até à Porta Nobre, tomado o ponto de vista do sítio das Alminhas nos Guindais de Vila Nova. A vista de todo o lado da Serra, desde a Bateria da Eira, até à Bateria do Castelo de Gaia tomada do sítio em meio caminho da Corticeira [i2].


A vista do cais, e frontispício da escadaria e igreja de Vale da Piedade, tomada da barreira que lhe fica contígua[i1]. Uma vista tomada do muro do Jardim do Freixo, olhando pelo rio abaixo até às Baterias no alto e no Cais do Prado [i3]. Uma vista tomada do alto de Avintes, sobre a margem oposta, desde Valbom até ao Freixo [i4].

Além destas sete estampas, de cenas pitorescas em agradáveis pontos de vista, juntou-lhe o habilidosíssimo autor duas cenas domésticas, de merecimento igualmente distinto. O interior da paroquial igreja de S. Nicolau em ocasião da celebração da missa do dia[i5]. Uma cena no Mercado da Cordoaria, em ocasião de dia de Feira.


Por certo, que tudo quanto disséssemos de correção de desenho, beleza de edição, e merecimento geral da obra, seria gastar palavras supérfluas em elogios, que num lance de olhos se podem prestar vendo-se obra tão primorosa e tão lisonjeira para os portuenses, e seus admiradores. O autor juntou a estas 9 vistas do Porto, um do Castelo da Figueira, tomada da parte da terra, em posição que mostra abranger três ou quatro milhas de costa.

Nós não sabemos que Mr. Forrester tenha de venda estes dous cadernos, que abrangem as 10 mencionadas vistas: sabemos só que muitos dos seus amigos foram subscritores (em cujo número tivemos a honra de entrar) e que a subscrição foi de 4$800 reis. Não há nada mais barato, nem que tanto mostre o gosto e independência do autor, do que tratar ele de dar à luz estes ensaios de seu génio tão distinto em pintura de perspetiva, sem mais algum interesse, porque estamos certos de que estampas iguais, e do mesmo cunho, custam ordinariamente muito mais do dobro.


Como portuense, é nosso único fim agradecer por este modo publicamente ao Sr. Forrester este tributo da sua afeição a uma cidade, em cujo seio ele foi nosso companheiro no tempo do memorável sitio, defendido debaixo das ordens do imortal Duque de Bragança.»

No dia seguinte, o mesmo periódico publicava a seguinte adenda: «No artigo a respeito do merecimento das estampas da cidade do Porto por Mr. Forrester, escapou-nos mencionar, que também tínhamos notícia de uma vista da entrada do Rio Douro pelo Sr. Kopke.». E no dia 24 de Março surge também:

«Já n' O Artilheiro demos conta da publicação de várias vistas do Porto, pelo Sr. Forrester. Para que se não julgue que o nosso juízo foi apaixonado no todo, sabemos que uma das pessoas inteligentes e de gosto desta cidade, a quem foram mandadas, por se achar ao presente numa quinta, escreveu a um amigo o seu juízo crítico parcial sobre cada uma das estampas, o qual é o seguinte:

"Restituo as vistas e agradeço o obséquio: resta-me dizer o juízo que faço delas. Quanto ao desenho está bom - a litografia é da melhor que se faz em Inglaterra, mas de algumas Vistas não sei se foram escolhidos os pontos para as tomar.


A Vista da Arrábida para cima, não faz grande efeito: o ponto junto ao rio para dar a mesma vista, abrangendo ambas as margens, parecia-me melhor escolhido: se o A. tomasse o ponto para esta vista de cima da montanha da Torre da Marca, em forma que abrangesse a linda vista do Candal até ao rio, e para cima, parte de Vila Nova &c seria de muito melhor efeito. A do interior da igreja de S. Nicolau, está muito exata e linda: é pena que não fosse antes o interior da antiga e bela igreja dos frades de S. Francisco, ou a de S. Bento.

A perspetiva do Freixo, apresenta o Seminário e a China, demasiado pequenos, e nada mais dos muitos cotages que seguem para cima: esta vista seria melhor toada da Pedra Salgada, abrangendo o Freixo quase na sua totalidade, o esteiro de Campanhã e suas imediações. O convento da Serra no tempo do cerco, está excelente em todo o sentido. A da cidade tomada do princípio da calçada da Serra, igualmente está muito boa: porém precisava para complemento, de outra vista da cidade tomada do alto da Bandeira, para abranger até à Lapa etc e outra tomada do castelo de Gaia, para abranger de Miragaia, às Virtudes, Hospital Novo, etc. Certo estou que quem tão bem soube desenhar as duas precedentes, igualmente o faria a estas, que em parte viriam a completar os três lados principais, donde o Porto precisa ser visto, e donde apresenta perspetivas diferentes. A da feira da Cordoaria está linda e exata, mas se fosse tomada mais de longe, e não tanto no centro do local, talvez fizesse melhor efeito: talvez que do mercado do peixe, ou mais no Norte donde a vista abrangesse melhor espaço, seria melhor. A de Santo António de Vale da Piedade está muito exata e boa.


A do Freixo parece demasiado pequena, e que se podia tirar mais partido deste belo edifício e local. O Castelo da Figueira não o conheço; porém a vista é bela; só lhe acho lá um pescador, que me fez lembrar os napolitanos na bela peça do Massaniello: os portugueses não trazem botas, nem se ataviam tanto; ao menos os que tenho visto na maior parte das costas. A Serra vista das Fontainhas está muito exata e linda."»


Creio, caro leitor, que as imagens serão conhecidas da maioria dos apaixonados pela história da cidade; não creio contudo que os textos  que aqui as acompanham sejam assim tão conhecidos (se o eram de todo!). São eles, principalmente, que aqui pretendo divulgar, no sentido de ancorar às imagens um esboço de uma contextualização das mesmas na época exata em que foram publicadas. Espero ter sucedido.

Viriato


ӽӽӽ

Esta publicação foi originalmente colocada no blog que perdi (A Porta Nobre) em 29-07-2016 e revista em 15-11-2019.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Miragaia

Ah! Os cobertos de Miragaia... alguém hoje os consegue imaginar sem o grande bloco da alfândega a ocupar o local onde antes existiu o areal a eles adjacente? É esse cenário que o leitor poderá encontrar abaixo, nas linhas que transcrevo de um romance do magistral Camilo Castelo Branco, intitulado Onde Está a Felicidade?


« »


«Era em uma noite, vinte e oito de Junho de 1845, véspera do milagroso apóstolo S. Pedro.

Sabes como, nesta religiosissima cidade do Porto, se festejam todos os santos da corte celestial, e particularmente Santo António, S. João e S. Pedro. Este, mais prestante que todos, pela importante missão de claviculário da bem aventurança, gloria-se de ser festejado anualmente na cidade da Virgem com uma porção fabulosa de estoiros, um inferno indescritível de fogueiras, e o consumo sobrenatural de pipas de vinho, fritadas de linguiça, postas de pescada, e bebedeiras sem cifra conhecida no Bezout.


o areal de Miragaia, quando ia sendo já preenchido pela sapatada do novo edifício da alfândega . à esq. a igreja de S. Pedro com origem numa ermida altimedieval, à dir. a porta Nova ou Nobre, peça constituinte da muralha do século XIV.


S. Pedro de Miragaia é incontestavelmente, de todos os Pedros santos o mais querido. Aquele espaçoso areal não basta para os jorros de povo, que afluem das ruas sobranceiras. Surgem, como por magia, as fileiras de lâmpadas variegadas; os mastros de palha e alcatrão, que fedem e abrasam; as orquestras militares, que consomem metade do tempo vozeando nas trompas estridulosas, e outra metade nas libações homéricas, fornecidas pela liberdade dos mordomos; as tendas, gratas à gastronomia suja da farrapagem, que as atulha, dando vivas ao santo, e praguejando obscenidades e insolências contra a taverneira tardia no ministrar da meia-canada por cabeça; finalmente, o areal de Miragaia é um misto de todas as regalias que entusiasmam o populacho, azando-lhe ocasião para que naquelas caras sobressaiam todas as linhas grotescas de uma alegria estúpida.

No longo quarteirão de casas, que se estende ao longo do arraial, vereis nessa noite caras insuportáveis, que o reflexo meio fantástico da iluminação vos afigura belas. Vereis outras, realmente belas, colocando-se de modo que a projeção tíbia da luz as favoreça, na exposição noturna, aclarando-as aos olhos do paciente amador, que passeia em baixo, sorvendo pelos pés a humidade da areia.

Entre estes, na mencionada noite, podíeis ter visto Guilherme do Amaral, só, com os olhos mergulhados além nas trevas do rio Douro, absorto, recolhido nesse esconderijo de tristeza, que o homem de algum senso íntimo leva consigo a toda a parte. Como ele, ajuizado desprezador desses júblios boçais, viera ter a Miragaia, não o saberia dizer. Achava-se aí, sem saber ao que viera, e sentia não ter asas de querubim ou de hipógrifo para transportar-se ao deserto da Líbia, ao pelo menos ao seu quarto da Águia d'Ouro.

a rua arménia

Neste pensamento, cuja impossibilidade o incomodava, caminhou pela travessa escura e despovoada que se lhe ofereceu. Atravessou um beco de aspeto pavoroso e nojento trilho: desembocou em uma rua, que o conduziu a outra, na direção oposta da Água d'Ouro, para onde queria caminhar.

Achou-se bem, apesar do fétido nauseento que ressumava das fisgas das portas. Não via ninguém, ninguém o via, nem o mais ligeiro sussurro: era caminhar na escavação de uma rua de Pompeia, pela vista, e no aqueduto de despejos de uma cidade, pelo cheiro. O romanesco tem seus caprichos sórdidos. Amaral não trocava aquela atmosfera enjoativa por os perfumes de nardo e rosa do toucador de alguma das suas numerosas admiradoras.»

« »

Guilherme do Amaral é o personagem principal deste (e de outros) romances de Camilo. A rua aqui não especificada, mas que o autor mais à frente nomeia, é a rua da Arménia. Também o autor/transcritor destas linhas por ali passou nos seus melhores anos de meninice, a caminho da rua Nova da Alfândega, e também ele sentiu, ainda, como Guilherme do Amaral, o perfume nauseabundo de um saneamento tão antigo como aquele personagem, mas de isento valor arqueológico. O areal, esse é que já o não pode ver senão em fotografias antigas e granuladas; desaparecido que está há pelo menos cinco gerações.
Viriato

domingo, 15 de setembro de 2024

Alves dos Reis e o Porto

O que tem este conhecido nome a ver com o Porto? Bem, a título pessoal, no normal desenrolar da sua vida, possivelmente nada. De facto, Alves dos Reis, ou melhor, Alves Reis (AR), seu verdadeiro nome,[1] não era do Porto nem nele morava. No entanto, esta cidade comercial e burguesa desempenhou papel importante na descoberta do seu ardil, em 5 de dezembro de 1925, faz hoje precisamente 95 anos![2]


AR, que fora para Angola com um emprego obtido à custa de um falso diploma de engenheiro, acabou preso por passar cheques sem cobertura, cumprindo cerca de 50 dias de prisão na cadeia da Relação do Porto entre julho e agosto de 1924. Foi aqui que, com tempo para pensar e ambição de vencer, terá começado a elaborar o plano que o celebrizou e que veio a culminar na duplicação de um grande volume de notas de 500 escudos. Facilitou tal embuste o facto de naquela época as notas do Banco de Portugal (BdP) serem produzidas no estrangeiro, por se encontrarem as suas máquinas avariadas. Há que reconhecer que foi um plano arriscado, elaborado, e que só poderia ter sido perseguido e executado por uma mente brilhante.[3]

imagens da revista Ilustração de janeiro de 1926. Com o nº 1, a filial do Angola e Metrópole no Porto, com o n.º 2 a casa de câmbio e com o n.º 3 o largo de S. Domingos, mostrando a enorme fila de pessoas que se dirigiram ao BdP a trocar os vascos


A primeira remessa de notas chega a Lisboa em fevereiro e março de 1925. De pronto foi organizada uma rede de agentes para trocá-las por moeda estrangeira; rede essa que operou com realce no norte do país, sobretudo na cidade do Porto. E isto tem uma explicação: existia aqui um mercado paralelo de troca de moeda estrangeira em franca atividade, motivado pelo comércio do vinho do Porto bem como pela presença de uma grande comunidade inglesa a ele afeto. Assim, foram contratados vários especialistas nestes câmbios - os zangões - que trocavam as notas de 500, sem discutir o preço. Por mais de meio ano tudo corre bem e AR pode levar uma vida faustosa com a sua esposa, bem como os seus associados. Consegue nova remessa de notas, que começa a chegar a Portugal em outubro de 1925, mês em que embarca para Angola a tratar de negócios. Ainda antes, em abril, contra a vontade do BdP mas coadjuvado pelo ministro das Finanças, AR consegue fundar um banco: o Banco de Angola e Metrópole.


Entretanto surge uma certa inquietação gerada pela grande quantidade de notas de 500 em circulação, nomeadamente por parte dos comerciantes que as começam a rejeitar, apesar do BdP afirmar que tudo está bem. O jornal O Século, a serviço de outros interesses, publica alguns artigos que colocam em causa o Angola e Metrópole e a credibilidade dos seus dirigentes. No Porto, os artigos desse jornal saídos em novembro são muito comentados nos cafés, e é certamente de uma dessas conversas que nasce a 'pulga atrás da orelha' ao tesoureiro da casa de câmbio José Pinto da Cunha, Sobrinho, fornecedor de moeda estrangeira ao banco de AR; pois ele sabia que as transações não eram escrituradas. Convencendo-se da falsidade das notas e comentando tal apreensão a colegas do Banco Espírito Santo, a notícia acaba por chegar ao BdP.

a filial portuense do Angola e Metrópole localizava-se no local assinalado, n.º 19 e 20 da praça da Liberdade, no informalmente denominado Palácio das Cardosas (imagem do googlemaps a substituir por própria, cf. publicação original)[4]


É então que o governador envia ao Porto inspetores bancários, acompanhados de agentes da polícia criminal, para investigar a casa José Pinto da Cunha, onde descobrem uma grande quantidade de notas de 500 escudos. Não obstante estas serem dadas como verdadeiras, a casa de câmbios é encerrada uma vez que o seu valor não estava lançado nos livros de caixa (são presos o gerente e guarda-livros). De seguida os inspetores visitam a caixa filial do Angola e Metrópole: mesmo sem provas, o banco é encerrado e apreendido todo o montante encontrado nos cofres, com a prisão do seu gerente. Desnorteados, um dos inspetores propõem levar as notas de 500 que estavam no banco para a caixa filial do BdP, ao largo de S. Domingos, e aí compará-las exaustivamente com as que lá existiam. O trabalho prolonga-se madrugada dentro, e é já no dia 5 de dezembro que finalmente surgem duas notas com o mesmo número de série. Segue-se a 6 a prisão de AR, que acabava de desembarcar em Lisboa, e na mesma data o BdP decide recolher todas as notas de 500 escudos com a efígie de Vasco da Gama.


O julgamento de AR e seus cúmplices teve inicio em 6 de maio de 1930, sendo a sentença lida a 19 de junho. Veredito: 8 anos de prisão e 12 de degredo para o mentor. Acabava assim, já em plena ditadura militar, o episódio que fora mais um problema lançado para cima da desprestigiada e moribunda primeira república.

a casa de câmbio onde se empilhavam notas de 500 vindas do banco de Alves Reis, localizava-se num edifício à época muito recente, à entrada da rua de Sá da Bandeira, encostado à igreja dos Congregados (imagem do googlemaps a substituir por própria)


E eis então explicado, caro leitor, como o Porto foi cenário do ato inicial e final do sonho de Alves Reis. Não quero deixar de terminar esta publicação, que espero tenha sido agradável de ler, com uma 'curiosidade'. Em 1 de janeiro de 1926, no primeiro número da 2.ª série d' O Tripeiro, na rubrica Correspondência entre leitores, secção Novas Perguntas, surge esta questão:

«NOTAS DE BANCOS: Que bancos do Porto tiveram a faculdade de emitir notas antes de passar esse exclusivo ao Banco de Portugal?» Ora, quem pergunta intitula-se A. Reis... Coincidência certamente, ou brincadeira malograda, porque logo no número seguinte veio a resposta, que aproveito para transcrever em jeito de despedida:


«Deseja um leitor saber quais eram os bancos do norte de Portugal que no tempo da liberdade de emissão, traziam notas em circulação. Eram os seguintes: Nova Companhia Utilidade Pública; Banco União; Banco Mercantil Portuense; Banco Comercial do Porto; Banco Aliança; Banco do Minho; Banco Comercial de Braga; Banco de Guimarães.

Teve permissão do Estado para emitir notas e chegaram a estar gravadas e prontas a serem lançadas em circulação, o Banco Industrial do Porto, mas não chegaram a circular porque nessa ocasião foi promulgado o decreto cassando a todos os Bancos em geral a faculdade da emissão, e atribuindo-a exclusivamente ao Banco de Portugal.

Ainda no tempo da liberdade emissora circularam aqui também as do Banco de Portugal, mas só tinham curso as que fossem rubricadas no verso por dois dos administradores da caixa filial desta Cidade.»

Viriato


ӽӽӽ

1 - Artur Virgílio Alves Reis era o seu nome completo.

2 - Esta publicação é uma das sobreviventes do terramoto que foi a perda d' A Porta Nobre, originalmente publicada em 5 de dezembro de 2020 e que serviu de inspiração a outros bloggers.

3 - O caso envolveu vários outros cúmplices, que para efeitos desta publicação irei ignorar.

4 - O edifício do Hotel Intercontinental é completamente novo, com uma fachada semirreconstruída, pelo que apesar de ser o mesmo local, apenas aparenta ser o mesmo edifício.