domingo, 22 de junho de 2025

A reedificação do convento de São Francisco

O Arquivo Distrital do Porto, como não poderia deixar de ser, é possuidor de um acervo documental imenso. Mergulhando e pesquisando nele poderemos encontrar autênticas relíquias. Da minha parte já "descobri" coisas que nunca imaginaria poder um dia encontrar, quanto mais ainda visualizar.


Nesta publicação darei a conhecer uma planta com que me deparei, pesquisando na versão on-line do mesmo arquivo, referente à reedificação do convento de São Francisco do Porto. Segundo a legenda na ficha : «Contém a planta da linha oriental da elevação do dormitório do convento reedificado e respectiva legenda. A reedificação do convento foi iniciada a 2 de Abril de 1764. A primeira pedra foi lançada a 10 de Maio do mesmo ano, sendo provincial o Pe. Frei Lourenço de Santa Teresa e guardião o Fr. Luís da Soledade Estrela e síndico Geraldo Belens. As obras foram concluídas em Junho de 1802.» Muito pouco tempo portanto, se manteve esta estrutura na paisagem portuense.


Abaixo coloco a descrição e a planta com a fachada Norte do dormitório, em local onde hoje corre a mesma fachada do Palácio da Bolsa sobre a rua da Bolsa.


««   »»

«DECLARAÇÃO DA PLANTA: A Linha das Letras  A e A' é a linha oriental da elevação do dormitório, que é o melhor do convento. Dobrado este pela dita linha ficando em ângulo reto, mostra a figura, que faz o Dormitório, com as despensas, e o terreno, que fica junto à cozinha ; o que tudo se expressa pelos seguintes.»

fachada Norte do convento de S. Francisco do Porto . quer a cozinha quer as latrinas ficavam fora do edifício, em área hoje pertencente à rua da Bolsa e ao hospital da VOTSF

«NÚMEROS: 1- Chaminé; 2- Cozinha; 3- Despensa; 4- Porta; 5- Terreiro aonde se desfaz a lenha; 6- Terreno da Horta; 7- Paredes; 8- Caminho que vai do convento para o Hospital; 9- Outra Parede; 10- Porta para entrar no Hospital; 11- Oito janelas do refeitório; 12- Ministra por onde passa o comer para o refeitório; 13- Porta da cozinha; 14- Janela da enfermaria; 15- Janela da Enfermaria; 16- Janela regral; e todas as mais deste feitio são janelas iguais e as pequenas são janelas das celas.; 17- Casa das privadas; 18 e 19- Dista um número do outro 50 palmos; 20 e 21- Dista um número do outro 85 palmos; 22 e 23-Dista um número do outro 17 palmos»


Atente-se também nestas curiosas notas:

«E para não ficarem distantes as privadas novas assinadas pelos irmãos terceiros, como se mostrou no mapa, que por ordem deles se mandou fazer; que vão 25 palmos, é necessário que fique como se mostra neste. E havendo de ficar na conformidade do mapa dos terceiros, não tem mais que 17 palmos do número 22 ao número 23 e no mapa dos mesmos terceiros se mostram 25 não tendo o terreno mais que dezessete palmos. E a ver desta forma, ficam muito próximas às dispensas do convento e podem facilmente inficionar os víveres, legumes e tudo o mais que existir nelas. E por cima da mesma cozinha, e dispensa está um eirado com figuras aonde os religiosos tem várias flores. aonde vão recrear-se a cada passo, e tomar o fresco no tempo do verão. E fazendo-se as privadas no sítio assinado pelos terceiros, não só causam os referidos bem atendíveis detrimentos; mas até chegam a tirar-lhe alguma vista. E não fica só aqui o detrimento; pois como em quase todo o ano sopram os ventos do Norte e Noroeste, infalivelmente hão de introduzir péssimo e pestilento cheiro pelas janelas do refeitório, e das celas, e até na enfermaria; com grande dano e detrimento dos religiosos sãos; e com grande perigo dos religiosos enfermos que constantemente existem na enfermaria.»

««   »»


É confusa esta planta, que não está desenhada de uma forma moderna. De facto encontram-se aqui debuxados a fachada (elevação) e as restantes estruturas, que lhe ficavam à frente (plano), por forma a dar uma percepção das distâncias. Como se pode inferir do texto, é possível que a execução desta planta fosse motivada por um conflito com os terceiros em relação à localização de alguns espaços que os frades pretendiam reedificar (não podemos esquecer que por esta altura o convento já cedera um bom pedaço de horta, a poente, para a edificação do hospital dos terceiros).

a rua da Bolsa, rasgada na antiga cerca franciscana . os traços amarelos indicam o correr da fachada do Palácio da Bolsa, que substituiu a fachada do convento

Notar que a fachada representada é Norte e não a oriental. A linha sim, é que é a oriental; pois corre de oriente para poente! Outra forma de o comprovar é através das estruturas que vemos como referentes às latrinas, despensa, etc. Onde se encontravam estas estruturas? Precisamente no local onde hoje temos a rua da Bolsa e parte do terreno do hospital. Bastará atentar às plantas da cidade existentes anteriores à abertura da rua de D. Fernando (hoje rua da Bolsa) para verificarmos o desenho de forma geométrica idêntica a elas; como por exemplo na famosa planta redonda de Balck (1813) ou a de José Francisco de Paiva (1824).


Aquando das escavações arqueológicas efetuadas no terreno da rua da Bolsa pertencente ao hospital da VOTSF (2005-2006), foram encontrados vários enterramentos, sem dúvida decorrentes da atividade do hospital. Estes enterramentos foram, contudo, encontrados dentro de espaços quadrangulares que, se prova não há, poderão corresponder precisamente aos espaços do antigo convento que se veem na planta. É uma hipótese...

imagem do número 11 do PORTVS, o em má-hora desaparecido boletim de arqueologia da Câmara Municipal do Porto . nele se podem ver as estruturas encontradas no terreno da VOTSF

Atualmente, do convento propriamente dito resta a portaria virada a sul, "ensanduichada" entre a capela dos Terceiros e a igreja gótica. Praticamente inalterada pelas obras de adaptação/construção do Palácio da Bolsa, ela apresenta ainda a sua torre sineira Setecentista. Dentro do edifício atual temos ainda o magnífico claustro, se bem que bastante transformado e uma escadaria conventual de acesso aos dormitórios, etc. Quanto ao chafariz que ainda em tempos do Palácio da Bolsa permanecia no meio do claustro, foi exilado para o Passeio Alegre; chafariz esse todo em cantaria de pedra lavrada e que é, sem dúvida, dos mais bonitos e que o Porto possui.

Para encerrar definitivamente esta publicação, e já como mera curiosidade, poderá o leitor ver abaixo a única representação que conheço do lanço do convento virada a nascente, no local onde hoje existe a fachada principal e que tanto admiramos, do Palácio da Bolsa.

Viriato


Publicação originalmente colocada em 12 de dezembro de 2012 n'A Porta Nobre, reformada em 22 de dezembro de 2016 e agora de novo acrescentada.

domingo, 15 de junho de 2025

Uma outra 'Ponte das Barcas'

A ponte de barcas, inaugurada em 1806, foi a primeira estrutura de caráter permanente sobre a qual quem demandasse as margens do Douro, podia atravessar. Refém do clima, a sua permanência era por isso relativa. Ainda assim, o certo é que esta ponte foi a ligação possível entre Porto e Vila Nova de Gaia durante quase quatro décadas. Mas quantos saberão que aquela não é a estrutura mais antiga de que há registo sobre o Douro junto ao Porto?


Pois, desta vez, recuamos ao já longínquo século XIV, para visitarmos a nossa cidade numa época em que a sua muralha mais famosa, dita fernandina, não estava concluída. E é precisamente no reinado de D. Fernando que vamos parar a nossa máquina do tempo imaginária.

Estamos no ano de 1369, Fernando governa o destino de Portugal há quase dois anos e recentemente envolveu-se numa questão que apenas lhe trará dissabores. Com efeito, com a morte do rei de Castela, Pedro I — o Cruel — o seu irmão bastardo, Henrique de Trastâmara, declara-se pretendente ao trono. Ora, D. Fernando — e outros — achavam-se igualmente no direito a ele. De tal forma as coisas evoluíram, que se acabou por criar um estado de guerra entre o nosso rei e o pretendente castelão (1).

Num desses episódios, Henrique de Trastâmara pôs cerco a Guimarães e D. Fernando, que se encontrava em Coimbra, decidiu vir a seu encontro para o defrontar ou demover. De permeio, o exército do rei teria de passar o Douro, rio bastante fragoso e de corrente violenta (2). Acontece que, para o transpor, o rei deu ordens muito específicas aos portuenses, que ficaram registadas na crónica dele escrita por Fernão Lopes:

E mandou logo suas cartas à cidade do Porto, que muito à pressa fosse feita uma ponte de barcas no rio do Douro, por que ele e toda sua hoste pudessem passar em um dia, por quanto sua vontade era em toda guisa ir pelejar com el-rei D. Henrique; e que isso mesmo se fizessem prestes os moradores do lugar para se irem em sua companha. Os da cidade mui ledos com este recado, foram todos postos em grande trigança para por isto em obra, uns a chegar barcas, deles a carretar madeira, outros a lançar âncoras e amarrar cabres; de guisa que muito aginha foi feito uma grande e espaçosa ponte, lastrada de terra e de areia, tal por que folgadamente podiam ir através seis homens a cavalo: e isto feito, fizeram-se prestes todos os homens de armas, e de pé, e besteiros com a bandeira da cidade, para irem em companha de el-rei à batalha. Partiu el-rei D. Fernando de Coimbra com todas suas gentes, e dizem que chegou até o Porto...


Assim, constatamos que, de um singelo parágrafo perdido numa crónica, podemos extrair, como se de arqueologia documental se tratasse, a referência escrita mais antiga a uma ponte sobre o Douro, que, ainda que por apenas um dia, uniu a margem de Vila Nova com a da Ribeira (ou Miragaia). Consegue o leitor imaginar a hoste de D. Fernando — cavaleiros, besteiros e pionagem — alinhada no areal onde agora temos o Cais de Gaia, enfileirada a aguardar a sua vez de passar? Só podemos, é claro, criar uma imagem mental. Ainda assim, que imponente visão do passado essa!

Viriato


ӽӽӽ

1. A palavra original em português, por evolução fonética, do atual termo castelhano.

2. Disso mesmo se lembrará o leitor que ainda tenha assistido a alguma das cheias invernais, fenómeno que a construção das barragens praticamente extinguiu.

Publicada originalmente a 21 de Outubro de 2019, n'  A Porta Nobre.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Uma imagem misteriosa

Pouco antes da Biblioteca Pública Municipal do Porto fechar portas para a sua total remodelação, que a obrigará a estar por mais de cinco anos encerrada, era o meu passatempo preferido ali me deslocar, aos sábados de manhã, na procura de velharias, antiguidades, "ineditidades" nos jornais antigos do Porto. Numa dessas rusgas acabei por encontrar, num pouco conhecido - e de curta vida -- periódico do início do século XX chamado O Porto, uma ou outra imagem surpreendente. A imagem que aqui apresento, levou-me pouco tempo a identificar com acuidade, embora já a tivesse desde 2022. A verdade é que só na última semana "me virei" para ela, com mais atenção.

Foi relativamente fácil chegar à conclusão a que cheguei, e que creio o leitor me acompanhará, pese embora não exista(?) qualquer outra imagem deste ângulo. Não nos deve surpreender. São ruas de pouca história. Não existiram durante muito tempo. A espinha dorsal de todos estes arruamentos, a rua do Almada, datava do meado do século XVIII; pouco para uma cidade "fundada" em 1123(1).

A Travessa da Fábrica, num apontamento inédito(?) dela. Ao fundo, e tal como ainda hoje para quem vê do início da rua de Avis, temos a rua da Picaria, que sobe em ligeiro ângulo (embora a fraca qualidade da imagem não o deixe perceber).

Bem, na legenda já adiantei o segredo... agora fundamento como lá cheguei: esta fotografia surge na edição de 22 de setembro de 1911 do jornal acima referido e tem como título A Carestia da Vida. Triste título... mas falar sobre esses tempos de desespero deixarei para outrem, que o fará de certeza bem melhor do que eu! A legenda da imagem é Venda do azeite na CASA FAVORITA (Castanheira e Fonseca).(2)

Ora foi por aqui que comecei. Procurando no motor de busca do Arquivo Municipal do Porto, pude encontrar, seguindo o nome da sociedade, um pedido de licenciamento de alteração de um edifício com frente para a rua da Fábrica e Travessa da Fábrica (aqui); de janeiro do mesmo ano em que o cliché foi captado. Ainda sem qualquer ideia de que edifício ao certo seria, mas tendo conhecimento da existência e demolição da Casa da Fábrica, tendo as suas pedras andando em bolandas até se perderem de vez; procurei por esta via, e pela primeira vez, saber o local exato onde este casarão imperara. E ela existiu, alguns leitores já o saberão, na esquina entra a rua da Fábrica e a Travessa da Fábrica (hoje denominada rua de Avis).

Pormenor de uma das cartas de Teles Ferreira, onde o CF assinala a casa da Fábrica e a seta a orientação da fotografia.

Procurando elementos na imagem que me ajudassem a esclarecer o mistério, foi olhando para outras já conhecidas do edifício e do próprio arruamento, tendo chegado àquela conclusão. Foi também com a ajuda do célebre "Teles Ferreira", que nos legou (não esquecendo a sua equipa!) a carta topográfica da cidade tal como ela era no final do século XIX.

Em caso de o leitor ainda não se ter apercebido, a imagem abaixo ajuda a entender como deduzi que o edifício que se vê em ângulo, imediatamente à frente do fotógrafo é a própria Casa da Fábrica.

Pormenores em que ancorei a minha conclusão sobre ser a Casa da Fábrica que se vê em primeiro plano.

Repare-se que na fotografia agora trazida a público, a rua se reduz a metade da largura umas dezenas de metros depois do seu início. Vendo-se do outro ângulo percebe-se porquê, e a fotografia abaixo, já conhecida, mostra o seu afunilamento, imediatamente antes de encontrar a Rua da Picaria e a Travessa da Picaria.

A mesma rua da imagem inédita, vista da sua outra entrada. O X assinala a Casa da Fábrica e o círculo a janela de onde presumo ter sido tirada a foto (ver aqui o edifício, que ainda existe). Atrás do fotografo está a rua da Picaria, e ao lado esquerdo a Travessa da Picaria, que terminava na rua do Almada, em frente à garagem d' O Comércio do Porto.

Espero, caro leitor, apesar da parca qualidade da imagem, ter contribuído de alguma forma para o conhecimento de um arruamento já desaparecido(3) da cidade. Um arruamento sem grande história, é verdade, mas que desta forma podemos subtrair ao semiesquecimento que a - muito útil - carta de Teles Ferreira lhe dava, onde os edifícios não são mais do que retângulos cor-de-rosa.

Hoje mesmo, numa breve conversa com o Sr. Miguel, proprietário da livraria alfarrabista Moreira da Costa, fiquei a saber que aquele estabelecimento ainda esteve, nos seus primeiros tempos, nos baixos da Casa da Fábrica. E segundo ele, o ponto exato em que se localizava era, por acasos do destino, quase exatamente o mesmo onde se encontra agora, embora o edifício seja uma nova construção.

Resta referir que os edifícios da sociedade Castanheira & Fonseca correspondem, na fotografia, ao lado esquerdo da rua, fazendo frente para a célebre, porém condenada, Casa da Fábrica. Esta firma tinha a sua fachada principal virada à rua da Fábrica, e como se pode verificar nesta foto, a moldura da loja coincide com o projeto de janeiro de 1911.

Viriato


ӽӽӽ

1. Data do foral outorgado pelo bispo D. Hugo ao seu burgo, que utilizo de forma simbólica.

2. Diz mais que o cliché é da Photo-Bazar Limitada.

3. Mais ou menos... a rua está lá. Tem outro nome, é mais larga e o edificado é completamente diferente.

quarta-feira, 4 de junho de 2025

A Lápide

Se vos disser quem foi João Leitão da Silva, talvez não saibam de quem estou a falar. Mas se, a seguir a este nome, eu atirar um "Almeida Garret", de pronto todos o identificarão, embora a maioria continue na mais completa ignorância sobre o real valor do Homem. Pois eu, que ignoro quase por completo esse valor, lá vou pelo menos sabendo alguma coisinha que me eleva do zero absoluto. Mas pouco, muito pouco...

Começo com aquela que é, ao que dele li até hoje, o mais brilhante pensamento que o senhor Leitão(1) produziu. Ei-lo: «E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?»

O parágrafo é maior, e aponta farpas à Inglaterra, em alturas em que a Revolução Industrial começava a ser ligeiramente contestada em relação ao número de horas de trabalho, suas condições, remunerações. Por isso, para o lerem na integra (vale a pena, acreditem), leiam o Viagens na Minha Terra, ao seu capítulo III. Ainda em relação à Inglaterra, e para vermos como o P.I.B. per capita pouco se relaciona com uma nação que provêm a todos os seus cidadãos, dou por vezes por mim a pensar no anacronismo de uma nação que, sendo a mais poderosa do mundo na segunda metade do século XIX, a espezinhar por exemplo a nossa (também ela colonial e espezinhadora) e muitas outras sem a sorte da portuguesa (a independência); conseguia ter uma capital cheia de assalariados que viviam quase na miséria e muitos outros que trabalhavam ao dia ou simplesmente não o conseguiam fazer, vivendo nos famosos slums londrinos, na mais abjeta pobreza; sendo ao mesmo tempo a capital de um império onde o sol nunca se punha (2).


Voltando a Almeida Garret: é sabido que a sua puerícia foi passada entre a cidade do Porto, onde nasceu; pois veio ao mundo na rua do Calvário (crismada de rua do Dr. Barbosa de Castro desde Setembro de 1921) e Vila Nova de Gaia a partir de 1804, primeiro no Candal, depois no Sardão (Oliveira do Douro).

Em 1864 a Câmara Municipal do Porto decidiu colocar uma lápide comemorativa, na fachada do edifício onde havia nascido o seu notável filho. Mas os trabalhos arrastaram-se e a pedra foi apenas colocada  suprimindo uma janela central  em janeiro de 1866. Conforme um jornal da época  O Nacional  refere, a lápide foi produzida na «oficina do Sr. Costa», sendo de mármore, oval, contendo os seguintes símbolos: uma lira, uma coroa e no centro uma grinalda de louros. E nela a seguinte inscrição: Casa onde nasceu aos 4 de fevereiro de 1799 João Batista da Silva Leitão de Almeida Garret. Mandou gravar à memória do grande poeta a Câmara Municipal desta cidade em 1864.

Passados já tantos anos, a verdade é que ainda hoje podemos admirar no local a referida lápide. E eu diria, que sorte temos! Isto porque, em abril de 2019, um misterioso incêndio destruiu por completo a casa. Tudo o que dela restou foram traves calcinadas que outrora suportavam o chão dos seus pisos. Esta casa, quando reconstruída, já não será obviamente a casa onde nasceu o insigne portuense, com a exceção da sua fachada; embora acredite assim a continuarão a tratar.

Há dias ficamos a saber que a Câmara Municipal do Porto está a tentar adquirir o piso térreo daquele prédio, para ali instalar um polo do Museu do Liberalismo. Faço votos para que tenha sucesso na persecução desse objetivo; pois aquele espaço será sempre um local simbólico da cidade.

Viriato


ӽӽӽ

1. Almeida Garret é apelido que ele trasmalhadamente adotou, quando já não residia no Porto, de um outro ramo da sua família; transtornado que estava de o terem tratado na escola por bacorinho.

2. Pese embora, e em favor deste país, quando em 1837 a rainha Vitória subiu ao poder já cerca de 50% da população sabia escrever e ler, e quando a mesma faleceu, em 1901, essa percentagem aproximava-se dos 100%. Um feito! (esta foi a minha fonte, que vale a pena ver até ao fim)

sexta-feira, 30 de maio de 2025

O dia em que a Torre dos Clérigos estremeceu!

Existe um volume pouco conhecido do historiógrafo portuense Henrique Duarte e Sousa Reis, intitulado Apontamentos para os Anais da Cidade do Porto 1832-1839. Escrito, a julgar por outras datas insertas no texto, nos anos sessenta do século XIX, contêm muitas e interessantes informações para aquele quase esquecido período em que dura a guerra civil e, sobretudo, os anos subsequentes. Nele o autor introduz, através da data, o assunto ou assuntos que vai tratar, em letra que hoje chamaremos de regular. A seguir, logo abaixo numa letra diferente mas de sua inteira lavra – uma espécie de itálico – acrescenta uma explicação, deduz um raciocínio, aponta um caminho...

O verbete que abaixo apresento, retirado desse manuscrito e referente ao ano de 1835, é apresentado com a ortografia atual, sendo que no original, o segundo parágrafo aparece, como referi atrás, com a tal escrita italizante. Ele termina de uma forma humorística, ainda que se o caso se passasse comigo, não ganharia para o susto!


* * *

«3 de Setembro. Na noite que precedeu este dia caiu um raio elétrico sobre a cúpula da Torre dos Clérigos e lhe destruiu algumas pedras e bem assim as pirâmides que a rematam pelo lado do sul, abalando o globo de cobre sobre o qual se hasteia a cruz de ferro que está colocada no mais alto da dita torre, estragos estes que na sua restauração custaram avultada soma de cabedal à Irmandade dos Clérigos Pobres, a quem pertence este majestoso edifício. Sofreram bastante dano algumas casas sitas na rua da Assunção sobre as quais caíram grandes pedras quebradas pelo raio; uma centelha ou faísca perdida[?] na casa dos Wanzellers em Vilar e outra na torre do mosteiro das religiosas de Santa Clara correndo em várias direções destes dous edifícios pequenos danos causaram mas não o deixaram de fazer com grande susto dos seus habitadores. 

O nenhum uso que esta cidade se faz dos condutores, maiormente quando o Porto é assente sobre altos montes, sujeita-nos a estes acontecimentos, é verdade que não muito amiúde, porém se os houvera talvez nem esses poucos sucessos se dariam: no edifício da Bolsa recentemente colocaram alguns condutores. É notável o que aconteceu com o raio entrado pela Torre dos Clérigos que descendo por ela abaixo entrou no aposento do padre sacristão, e lambendo-lhe algumas moedas de bronze, a que se dá o nome de patacos, e ele tinha sobre a mesa do quarto onde ele dormia nenhum dano lhe fez, porém sumiu-lhe um botim por ter o tacão ferrado, deixando-lhe o outro não obstante ser-lhe igual.»

* * *


Anos se passaram já! E por certo, desde a sua edificação, não terá sido o primeiro nem o último incidente, a envolver este ex-libris portuense. E salvo qualquer cataclismo de enorme magnitude, ela ali estará, altaneira, orgulhosa e belíssima; à espera de um qualquer raio vindo da forja de um qualquer Ciclope!

Viriato

____________

Originalmente publicado em 2 de março de 2021

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Notícias do Porto Oitocentista

Quando há anos comecei a ler os jornais de oitocentos na Biblioteca Pública Municipal do Porto, procurava notícias específicas sobre determinados assuntos. Mas, no meio deles, acabei por descobrir uma sedutora forma de viajar no tempo, até a um Porto que eu não conhecia, nem mesmo lendo os volumes publicados sobre a época, dos mais doutos aos menos elaborados. É de facto o pulsar da cidade que ali temos, que nos é mostrada literalmente, todos os dias, com as suas lutas e com as suas alegrias, com as suas reivindicações, os seus dramas, os seus anseios... Um livro sobre o Porto de oitocentos através dos jornais, daria na verdade, uma obra em vários volumes, quase enciclopédica, quase irrealizável. Assim, virando páginas, como num dia descubro que para os lados do Codeçal vivia uma "bruxa" que enganava os papalvos (o articulista repudiava), num outro me deparo, no ano da morte de Garret, com uma curta notícia dizendo que o Visconde já se encontrava melhor de saúde; para logo na semana seguinte esse mesmo jornal "me informar" que o dito morreu (as famosas melhoras da morte?)! Como aqui leio um texto sobre as agressões que existiram a alguns deputados quando chegaram ao Porto, após terem fabricado a Constituição de 1838, logo a seguir leio uma notícia de caráter mais local, mas mais chocante, da tradição que existia das mulheres, as parteiras possivelmente, que na rua passavam frequentemente com os anjinhos, nome pelo qual eram conhecidos os bebés que pereciam muito cedo ou eram nado-mortos, em caixas abertas, à cabeça, caminho dos cemitérios... Tantos e tantos aspetos, a maior parte deles ausentes de um livro sobre o Porto romântico, onde o ambiente se quer sempre mais ou menos bonito, muito poético, muito literário; enfim, um mundo de elites e intelectuais, que se hoje não são a maioria, por aquele tempo estavam bem mais longe de o ser! Na vida real, não na romântica, a esmagadora maioria lutava para sobreviver, os seus interesses bem mais pendiam para garantir o pão do dia a dia.

Para ilustrar um pouco este meu pensar, deixo-vos com a transcrição de alguns textos, se bem que parcialmente escritos por minhas palavras. Como costumo referir, são, cada um deles, janelinhas abertas no tempo...


* * *


Crónica Constitucional da Cidade do Porto, de 9 de janeiro de 1834

Cadeia da Relação

Por uma portaria do conselheiro Presidente do Tribunal da Relação do Porto, para «minorar os sofrimentos dos presos das cadeias» e copiando as disposições tomadas em Lisboa, como por exemplo: nas enxovias que ficarem inferiores à rua, se farão estrados altos de madeira, para que subam ao nível da mesma rua, e se evite a maior humidade, sendo que naquelas em que existisse falta de luz e ar se lhe fariam os «precisos condutores». Só irão para as enxovias os presos de crimes graves ou «atrozes», bem como os que isso preferirem por se encontrarem mais próximos da rua e assim ser mais fácil «obterem dali os socorros da caridade pública», contudo uns e outros deverão estar separados.

As salas e quartos superiores às enxovias se deveriam separar do seguinte modo: a parte mais saudável e apropriada do edifício deveria ficar designado para as enfermarias quer de homens quer de mulheres, de acordo com a opinião dos «facultativos». Dentro delas haverá uma divisão para as «moléstias contagiosas» e outra para as restantes; uma parte das salas será destinada a botica e «laboratório dos remédios»; na enfermaria das mulheres, que deverá estar do lado oposto à dos homens, deverão ser separadas as «honestas», das que o não são; deveriam também existir quartos para os detidos ou postos em custódia e para os «empregados da cadeia, que devem assistir continuamente».

As casas da prisão deveriam ser todas numeradas e o carcereiro apenas poderia enviar os presos para aquelas que lhe estavam designadas na ordem de prisão. Deveriam ser escolhidos «juízes das prisões» entre os presos mais bem «morigerados» e que deveriam ficar encarregados da polícia interna, em combinação com o carcereiro.

Os presos das enxovias sairão duas vezes e os das salas e quartos uma por semana ao eirado, ou lugar mais arejado para receberem ar livre e horas próprias e diferentes para homens ou mulheres.

O carcereiro ficava encarregado de propor um quadro de «limpeza geral» da cadeia para ser aprovado e afixado nas suas paredes. Também indicará quais os meios de «prover à limpeza das latrinas», assim como «ao vestuário, e camas dos presos, absolutamente indigentes, e caldo, ou sopa da caridade», informando qual a repartição pública, por quem e de que modo costumavam ser providos. Por isso o carcereiro ficava responsável pelo desentupimento e limpeza das latrinas e os pavimentos lavados, velando também pela limpeza e lavagem dos presos que fossem nisso negligentes. (em 30 de Dezembro de 1833, por Francisco de Serpa Saraiva)

a Cadeia da Relação, na primeira metade do século XX


* * *


Duas outras notícias, do mesmo jornal, de 11 e 28 de fevereiro de 1834 respetivamente


1ª) As pessoas que se julgassem com direito a reclamar as «barcas rebelas» e madeiras de castanho e flandres, que haviam servido na Ponte das Barcas, não sendo «comprometidos» nem rebeldes e justificando que sua sua propriedade e nada receberam por elas, tinham os próximos 15 dias para as reclamar, findo o qual seriam arrematadas, entrando o produto no cofre da ponte.


2ª) O juíz Pedâneo da freguesia de Santo. Ildefonso faz saber aos habitantes daquela freguesia que sendo, de utilidade publica, que a água dos tanques, se conservasse limpa e pura, como se achava determinado… e constatando-se por diferentes vias que muitas pessoas tinham o mau, prejudicial, e escândaloso costume de lavarem nos tanques públicos roupas e imundiceis; ficavam os comissários e cabos de Polícia da freguesia encarregados de olharem pela referida limpeza, e de prenderem, e trazerem à presença do dito juiz, toda e qualquer pessoa que, de qualquer maneira que fosse, tornasse suja e imunda a água dos tanques.


Uma outra, todas do mesmo ano e jornal, esta retirada do exemplar do dia 21 de agosto, que nos refere um navio que fazia a rota Lisboa - Porto, carreira onde viriamos a ter, poucos anos depois, o famoso vapor Porto a navegar:


Tratava-se de um aviso ao público «que o magnífico navio movido por vapor Guilherme IV, continuará a fazer viagens regulares» entre o Porto e Lisboa. Os preços eram:

Na câmara da ré: 16$000 rs – na da proa 10$600 rs., incluindo a mesa «que deverá ser escolhida» - no convés 4$800 rs., sem comida. As crianças menores de 10 anos pagariam metade do bilhete. As criadas das famílias que fossem na câmara da ré, teriam acesso à mesma e pagariam 10$600 rs. mas comendo com as restantes criadas «onde se lhes destinar». As cavalgaduras pertencentes a passageiros eram recebidos, a risco do dono, pagando 6$000 rs de passagem e os cães 480 rs, mas apenas com direito a água. Não eram recebidas mercadorias, apenas passageiros e suas bagagens, que excedendo 4 arrobas pagaria 40 rs. por cada arrátel «a maior» ou excedendo a medida de 3 pés cúbicos, 200 rs. por cada pé de excesso.

O capitão só recebia a bordo pessoas indicadas pelo agente. Todo o necessário para acomodar os passageiros se acharia a bordo, inclusive uma dispenseira inglesa, na câmara das senhoras «que prestará toda a atenção às mesmas». «O capitão receberá toda a quantia de dinheiro em qualquer espécie, de prata, ouro, ou jóias, em embrulhos fechados e selados com lacre, pagando os donos 174 por cento de frete». Mais informações davam-se no agente, Archer & Miller, ao n.º 10 da rua dos Ingleses.


Deixo-vos com uma última, talvez chocante para alguns, sobre a dívida que o Estado tinha para com a cidade, no rescaldo do cerco e da Guerra que entretanto terminara, uma vez que a notícia, é de 4 de dezembro. Esta questão será arrastada por alguns anos, procurando a câmara ser ressarcida do que despendera, quer em moeda quer materialmente com a dádiva de algum edifício, etc..

Assim, a câmara enviara à rainha um conta corrente e documentos justificativos da mesma pela qual mostrava ser credora de 11.048$300 rs., «quantia esta procedida de empréstimos gratuitos com que concorreu em dinheiro, e em géneros, para as urgências do Estado na época do Cerco». No conta corrente vem, além do empréstimo de dinheiro proveniente da Câmara diretamente, da extinta Companhia dos Vinhos, «do rendeiro do sal, sanjoaneiro e pescado seco», e também 1100 quintais de bacalhau entregues no Depósito do Departamento de Víveres em 5 de julho. Embora em setembro de 1833 já a câmara tivesse reclamado a devolução de parte do valor emprestado e como a mesma não fora possível satisfazer dadas as necessidades públicas da altura, vinha ela agora solicitar a reposição daquele valor pois que via progressivamente as suas rendas a diminuir e as despesas a aumentar. De facto, diz, só para os expostos eram necessários cerca de cinquenta contos de réis, valor simplesmente incomportável pelo que a despesa com aquela instituição aumentava desmesuradamente de mês a mês; e mais agora que necessitava de fazer despesa extraordinária com aquele estabelecimento quando nem para a despesa ordinária havia dinheiro!

Esta representação à rainha datava de 25 de outubro de 1834, e a notícia publica igualmente a portaria do Prefeito do Douro, de 27 de novembro, que informava que a requisição «foi mandada, por cópia ao Tribunal do Tesouro para ali se lhe dar a consideração que merecer».


* * *


Estas e outras notícias mais comezinhas, espero vir a trazer-vos aqui, de quando em vez, em próximas oportunidades.

Viriato


Originalmente publicada n' A Porta Nobre em 2 de Abril de 2021

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Uma hipótese para uma Esfera

Todos conhecerão o local onde se situa o Ateneu Comercial do Porto, uma instituição da cidade que irá completar 150 anos de existência no próximo dia 29 de agosto. O que muitos poderão não saber é que atrás do seu edifício existe uma escondida viela sem saída que dá pelo nome de beco de Passos Manuel e que nessa viela se esconde um pequeno segredo. Quem descer a rampa contígua ao Ateneu e virar à sua direita, dará quase de imediato com um pequeno armazém que remontará possivelmente ao início do século XX. Se atentar na empena verá ao centro uma estranha pedra que à primeira vista parece um pipo com uma cruz a encima-lo. Essa pedra é tão somente uma esfera armilar acompanhada pela cruz da Ordem de Cristo(1): símbolos manuelinos bem conhecidos.

i1 a Esfera Armilar coroada pela Cruz de Cristo - foto do autor

Qual a origem dela? Terá vindo de outro local? Terá sido criada de raiz para ali ser colocada? Difícil será responder a essa pergunta... Ela não parece contudo apresentar qualidade suficiente para ter encimado quer a Porta Nova de Carros quer o convento de S. Bento de Avé-Maria, ambos criações manuelinas que se apresentam como os mais aptos - por mais próximos - a terem cedido aquele pétreo símbolo ao local onde agora se encontra. É que, convenhamos, a esfera tem um aspeto rústico e desproporcional. Até que ponto teria sido aceite por quem quer que estivesse encarregado de gerir as obras quer da porta quer do mosteiro, para ser colocado como símbolo da grandeza do homem mais poderoso do mundo no seu tempo?

i2 eis como se encontra o edifício onde subsiste aquela pedra. As referências aos seus antigos proprietários foram apagadas mas algumas das palavras ainda se adivinham: no topo em ambos os lados esteve a palavra Armazéns; por baixo à esquerda a palavra Granado - foto do autor

À boleia desta questão não pude deixar de verificar o que dizia Sousa Reis sobre o convento de S. Bento e sobre ele li o seguinte: « ... conservando-se para eterna memória de seu fundador sobre a entrada principal voltado para o lado do largo da Feira de S. Bento(2) uma esfera, e a cruz da Ordem de Cristo, tudo de pedra empresa deste monarca.». Com esta informação em memória de pronto pesquisei em várias imagens do convento de S. Bento de Avé-Maria, sendo que uma delas acabou por me mostrar a tal esfera com relativo pormenor (o mesmo não acontecendo com a cruz por se encontrar fora do enquadramento). E com essa imagem tirei a teima: a esfera do beco de Passos Manuel e do mosteiro de Avé-Maria não são a mesma. Para além da clara diferença no arredondado da esfera, a pedra que está patente no beco de Passos Manuel deixa transparecer tratar-se de um só elemento.

Mas se essa questão se dissipava no pensamento outra se levantava ou contemplar aquela fotografia tão rica pelos pormenores barrocos que mostra, quer do pátio do convento quer da fachada do coro e igreja. E no que toca à sua Esfera Armilar tinha a certeza de já ter visto algo semelhante...

A i2 mostra-nos uma esfera armilar que se encontra desde 1940 em depósito no Museu Nacional Soares dos Reis; tendo sido exposta na Casa do Infante aquando do quinto centenário da outorga do foral ao Porto por D. Manuel I(3). Esta pedra com meio metro de altura datará do século XVI ou XVII(4).

i2 «Escultura em granito. Elemento arquitetónico anepígrafo constituído por uma esfera com seis anéis na horizontal (deviam ser cinco paralelas: Equador, trópicos e circulos polares) e treze meridianos, sendo a elíptica representado por um anel vertical sobreposto aos restantes. É coroado por um pequeno pináculo troncocónico, apresentando na base um encaixe quadrangular para fixação num suporte»(5).

No final do século XIX a Câmara Municipal acordou com as poucas religiosas de S. Bento que ainda ali louvavam a Deus, a demolição de uma parte substancial do mosteiro para poderem alargar o largo da Feira que pouco mais larga seria do que a própria rua das Flores. Essa demolição afetou o pátio onde figuravam aquelas pedras, que foram por isso removidas. Veja-se esta nota do Relatório Municipal de julho de 1888:

«Tem prosseguido com a possível celeridade a demolição de parte do convento de S. Bento de Avé-Maria, destinada a ampliar aquela principal e quase única via de comunicação entre a parte norte e a parte sul da cidade, e que tanto carece de capacidade para o grande movimento que por ali se realiza. Hoje, que se conta com a construção de uma estação de caminho-de-ferro nos terrenos ocupados pelo convento e sua cerca, poderá julgar-se um desperdício o que ali se tem despendido. É necessário, porém, não esquecer, que as obras foram começadas, quando a construção da estação era uma simples aspiração; que apeados os telhados e parte do muro exterior, forçoso era conceder ao convento a vedação que estava estabelecida no contrato exarado no respetivo processo de expropriação, e sobretudo que as expropriações e demolições de todos os edifícios cujo terreno tivesse de ser aproveitado para a via pública, teriam de ser sempre feitos a expensas do cofre municipal»(6).

Nos arquivos da câmara existem alguns documentos referentes à venda de materiais resultantes da demolição do convento. E é sabido que várias pedras lavradas impregnadas de elementos barrocos, foram parar a mãos de particulares. Mas não todas... algumas terão sido recolhidas pela edilidade para o museu municipal a S. Lázaro, e daí transitando para o Soares dos Reis. E é de crer que a esfera armilar e a cruz que sempre a acompanha tenham tido esse destino, pois para além do seu valor estético e documental eles eram apesar de tudo símbolos reais e Portugal era ainda uma monarquia. Se aquelas pedras recolheram ao museu, o rasto de onde as mesmas vieram perdeu-se por ausência ou extravio da documentação que o registasse (ou porque simplesmente ninguém até hoje se preocupou em a procurar).

i3 parte de uma conhecida imagem do convento na sua máxima extensão construtiva, com a esfera armilar assinalada por uma seta (mantive a marca de água do meu desaparecido blog).


No pormenor da fotografia i4, é possível comprovar a enorme semelhança entre aquela pedra e a da i2 (no lado oposto estava a Cruz de Cristo). Faço notar que alguns dos elementos barrocos ali presentes ainda hoje adornam parques da nossa cidade sem nós sabermos muito bem de onde eles vêm, sendo os mais conhecidos os arcos do pátio (visíveis na foto) que hoje se encontram na Serra do Pilar a meses de se tornarem átrio de hotel.

i4 recorte dessa mesma imagem mostrando a esfera armilar com algum pormenor

A minha proposta é portanto simples: A esfera armilar que pertenceu ao Mosteiro de S. Bento de Avé-Maria é aquela se encontra depositada no Soares dos Reis. Ainda que se realmente assim é, certeza absoluta possivelmente nunca teremos a não ser que algum documento venha a surgir no Arquivo Municipal do Porto ou nos arquivos do dito museu. Parece-me contudo ser essa a hipótese mais plausível à luz dos dados que conheço.

Há certamente algum meu leitor que, por mais abalizado, me poderá contradizer, concordar ou retificar; a quem desde já agradeço todo e qualquer pertinente comentário. A finalizar, devo agora acrescentar que a esfera armilar do beco de Passos Manuel se encontra agora - 2025 - em exposição na "estação" Reservatório, do Museu do Porto (e não, o Porto continua a não ter UM museu da cidade...).


ӽӽӽ

1. A Ordem de Cristo foi a continuação em Portugal dos famosos templários extintos em 1319 pelo papado; sendo um arguto subterfúgio encontrado por D. Dinis para não dispersar os bens desta última, na prática mantendo-a com outro nome. O nome oficial de ambas era Ordem da Milícia de Jesus Cristo (para a Ordem de Cristo) e Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão (para os templários).

2. Hoje praça de Almeida Garret.

3. O foral manuelino, ainda que um documento organizativo fundamental da cidade, não deixa de ser como que um primeiro símbolo do centralismo político crescente

4. Para vergonha e agora tristeza minhas, não visitei aquela exposição! Não pude contudo deixar de ver a pedra de que falo pois ela encontrava-se precisamente em frente à porta de entrada do átrio do Arquivo Municipal do Porto e por ela passei diversas vezes quando fui fazer as minhas pesquisas.

5. Texto retirado da brochura Peça do Mês de março de 2015, da autoria do Dr. António Manuel Silva.

6. Estas demolições não são, como o próprio texto deixa implícito, as da totalidade do convento que só ocorreriam alguns anos depois. Foi contudo a primeira machadada na integridade daquela casa cujo fim inglório e até em parte injustificado, já se adivinhava.


Publicação colocada originalmente n' A Porta Nobre a 20 de agosto de 2019 (aqui).

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Um Scrooge portuense?

Esta é mais uma publicação light, por assim dizer, sobre um aspeto oitocentista; no caso nem sequer mesmo da cidade, mas tão somente de um homem. Talvez conhecido na sociedade portuense daquele momento no tempo, mas hoje totalmente incógnito. Foi apenas mais um dos milhões de seres humanos que nasceram, viveram e morreram nesta terra, dela desaparecendo como se o universo nunca os tivesse conhecido (no fundo, como nos tocará a todos).

Ao ler esta curiosidade nos jornais da época, desde logo fiquei com vontade de a partilhar aqui, quer pelo conteúdo, quer pela moral... Tratava-se de um homem decididamente avaro, que talvez um pouco à imagem do Ebenezer Scrooge de Dickens, percorreu as ruas do Porto na primeira metade do século XIX. E é também uma lição de vida: vivam-na! Ela acaba ou perde a sua qualidade de repente e sem nos pedir consentimento!


*

No dia 27 de Setembro de 1845, noticiava assim a morte de um negociante em peles e pelicas, o jornal O Cosmopolita:

«MORTE DE PELIQUEIRO: Morava na rua do Souto Bento José de Oliveira, peliqueiro, de idade de 53 anos, tinha sido visto entrar em sua casa no princípio da noite de 4.ª feira, e como na 5.ª até depois do meio dia não abrisse nem porta nem janelas, excitou na vizinhança suspeitas de que ele tivesse falecido, por isso foi arrombada a porta na presença das autoridades, e o homem foi encontrado morto, sem sinais de violência. Fizeram-se os precisos autos, lacraram-se as portas, e deram-se as mais providências para a segurança da fortuna que lhe foi encontrada que dizem monta a 16:000$000. Consta que tem um irmão, que ainda há pouco estivera com ele nesta cidade.»


Segue-se os dados que colhi do O Períodico dos Pobres no Porto (PPP) desde o final de Setembro ao início de Outubro daquele ano(1). Agora uma coisa a confessar: estes dados são efetivamente retirados de notícias que foram surgindo neste periódico ao longo dos últimos dias de Setembro/primeiros de Outubro, o texto contudo é uma composição minha, muito aproveitando o original.


Assim o juiz da 1.ª vara, constando que o peliqueiro falecera, deslocou-se à sua habitação onde se encontravam já o juiz eleito e o regedor, «que tomou como autoridade superior a direção neste negócio, por ser tarde fez selar todas as salas, entregou a chave ao negociante Cidade(2) e pôs duas sentinelas municipais». No dia seguinte «continuaram nas diligências encontrando uma caixa numa loja, com 3 sacos de dinheiro, alguma peças de ouro cobertas de terra e alguns sacos de cobre. Tudo isto foi entregue à guarda do dito Cidade. O juiz ia continuar as buscas no dia seguinte, sendo que haveria mais dinheiro pois ainda não se dera uma busca exaustiva. Havia também bastante cabedal em sola e pelicas. Por ordem do juiz o cadáver foi sepultado no cemitério da Trindade, de cuja ordem era irmão.»

No último dia de Setembro, o PPP noticia o dinheiro que se tem vindo a achar na casa do peliqueiro. Entre ele estavam cordões de ouro dados como penhor de dinheiro emprestado.

a rua do Souto (em frente), no local onde entronca com a rua da Bainharia


E no dia seguinte, 1 de Outubro, diz-nos o PPP: «O quadro da Avareza: Nada mais imundo que a casa em que habitava na rua do Souto o peliqueiro Bento José de Oliveira! As casas não são más, mas horrorosamente imundas e desprezadas. Todas as salas e quartos estavam ornadas de imensas teias de aranha, terra e porcaria! Dormia sobre um velho enxergão podre! A roupa branca de uso estava toda suja e amontoada, pois só a dava a lavar de três em três meses! A sua família era apenas um gato e alguns pintassilgos. Uma velha vizinha lhe dava de comer por 8 vinténs! Ia todas as noites buscar água à fonte para casa! Conservados todos trastes dos seus antepassados, chinelos velhos, farrapos e cacos, tudo isto aos montes pelas casas! Tinha grande abundância de couros e pelicas, um belo oratório e alguns espelhos bons. Era soldado da bomba, e morreu de uma apoplexia sem ter quem lhe acudisse! Viveu como um porco e morreu como um cão!!»

No jornal de 2 de Outubro: «Ontem o juiz continuou as buscas na casa do peliquieiro em busca de dinheiro, mas nada aparecendo. Até que um cidadão disse que um criado lhe dissera que num dos quartos da casa havia um falso. Chamou-se o criado que confessou e foi-se logo ao quarto designado, e se deu com o falso coberto de terra e teias de aranha, aberto desceu-se ao fundo dele e se encontrou com uma caixa com o fundo podre, e nela alguns sacos com dinheiro. Contado o dinheiro o juiz mandou depositá-lo no Banco Comercial.»

Por fim, no número do PPP de 4 de Outubro: «Ontem de manhã continuo o juiz da 1.ª vara a busca em casa do peliqueiro. cavou-se uma loja interior e tirou-se o solo à exterior e nela se achou e nela se encontrou[?!] senão porcaria e abundância. Picaram-se várias paredes da escada e salas e não apareceu sinal algum de dinheiro. Havia na escada uma espécie de postigo com a porta fechada ontem já se havia examinado e picando-se o teto que fazia o chão de uma escada superior, umas tábuas cederam e despregando-se se encontrou um saco com dinheiro, mandado logo depositar no Banco Comercial pelo dito juiz.»


E aqui vemos mais uma notícia trivial do Porto Oitocentista, que quem sabe poderia inspirar um conto de um qualquer escritor, talvez com o subtítulo bem aplicado pelo jornalista: viveu como um porco e morreu como um cão».

Viriato


_____

1. As transcrições deste periódico carecem de ser corretamente datadas! Mas tal só o poderei fazer quando a Biblioteca Pública Municipal do Porto tiver a sua grandiosa reabertura, em dois mil e vinte e muitos.

2. Possivel referência a Manuel Francisco Duarte Cidade, mais conhecido por o comendador Cidade; também ele morador à rua do Souto. Segundo Alberto Pimentel in O Porto na Berlinda, «gostava de evidência, orgulhava-se da sua placa de comendador, lisonjeava-se muito de ser mandão na Santa Casa da Misericórdia e em várias Ordens Terceiras da cidade».

domingo, 6 de abril de 2025

Inimizades absolutamente liberais

Notícias curiosas, algumas inusitadas, que vou encontrando nos jornais do século XIX, é o que pretendo colocar neste tipo de publicação. Os títulos que não se encontrem dentro de «» são de minha autoria e como já vem sendo habitual a ortografia é atualizada exceto em algumas palavras que poderão indicar uma outra pronúncia.


Inimizades Absolutamente Liberais.

Parte A: « Sr. redator, Passando um destes dias no jardim de S. Lázaro observei haver ali um novo guarda, e ao mesmo tempo fiquei surpreendido vendo no dito um perseguidor meu, e por isso admirei não haver um homem que tivesse prestado serviços à causa que fosse capaz de ocupar aquele lugar; ignoro que fosse o padrinho que ali o colocou, e para conhecimento do público se estas linhas tiverem lugar no seu acreditado periódico por isso lhe ficará sumamente agradecido este que se preza ser seu constante leitor e assinante. » (O Inimigo dos Miguelistas)

de A Vedeta da Liberdade de 22 de Março de 1837

Parte B: « Tendo sido há pouco nomeado vigía do jardim de S. Lázaro, não posso por isso deixar de entender alusiva à minha pessoa a imputação feita na carta com que termina a sua folha N.º 67 de 22 de Março próximo passado. E como por factos nada equívocos demonstrei sempre a minha adesão à causa da liberdade, muito desejo convencer de caluniador o autor de tal carta, sendo para esse fim indispensável que ele se desembuce, e apresente o seu nome. Para esse fim rogo-lhe, sr. redactor, a inserção deste convite no seu acreditado periódico, para que possa justificar-me; ou no caso de silêncio, convencer o público de que tal imputação não passa de redícula calúnia. Sou sr. redactor, etc.» (João Pereira de Carvalho Guimarães)

de A Vedeta da Liberdade de 4 de Abril de 1837


Viriato


Originalmente publicado n' A Porta Nobre em 13 de Outubro de 2018

domingo, 30 de março de 2025

Os lampionistas

A publicação de hoje surge de uma espécie de impulso, quando me deparei com um postal que mostrava, num pequeno pormenor que talvez passasse despercebido a muitas das pessoas que o vissem, um candeeiro a gás plantado no que parece ser o ainda pouco urbanizado caminho que unia o Freixo aos Guindais, bem antes da construção das avenidas Gustavo Eifell e Paiva Couceiro e perto do local onde o pilar do lado portuense da ponte de S. João, hoje se encontra.

O texto que transcrevo parcialmente é da autoria de Manuel Pedro, gráfico, e foi publicado n' O Tripeiro em 1947 (3º vol. da 5ª série, p. 282):


«(...) Os lampianistas!... Oh! Estou mesmo a vê-los de boné de pala, bicheiro ao ombro, -- comprida vara com uma pequena luz no topo, resguardada por um pequeno invólucro de folheta, correndo ruas fora, em ziguezagues, acendendo, ora este lampião, ora aquele.

Todos os dias, ao anoitecer, os lampianistas, reuniam-se em determinados locais e, à hora regulamentar, dispersavam-se pelas ruas das suas áreas a acender os lampiões, para no dia seguinte, manhã cedo, os apagarem. Os pontos de estacionamento eram: Cordoaria, Bessa, Foz, Aguardente, Bonfim, Santo André, Batalha e Cancela Velha.

De verão, o modo de vida de lampianista era razoável; porém, de inverno, ter de romper, à chuva, enfrentar fortes ventanias, suportar o frio gelado, cortante, das manhãs, era, positivamente, um martírio. E por tão espinhoso serviço ganhavam estes humildes servidores da companhia do gás, 300 reis diários!...

Foi-se, há dezenas de anos, o Porto das noites silenciosas, tristes, escuras, quase sem luz. Luzes mais vivas, de poder luminoso mais intenso, apareceram com enorme agrado de todos os tripeirinhos, dando por esse facto alegria à cidade e segurança aos seus moradores.

Outrora, quando becos e ruas da cidade eram alumiados por pesados e feios lampiões de ferro, a azeite, luz que mal deixava distinguir qualquer vulto a alguns metros de distância, sempre que uma família saía à noite, era obrigada a fazer-se acompanhar do seu lampião.

(...)

No dia em que el-rei D. Pedro V, esse bondoso e insondável monarca, completou dezoito juventudes (16 de setembro de 1855), e em cuja data se realizou estrondosamente a sua aclamação, foi que pela primeira vez os moradores da cidade do Porto viram as suas ruas iluminadas a gás.

No Ouro, a pouca distância da margem do rio, foi colocado o gasómetro, aparelho destinado a receber o gás. Mas, em virtudo dos avultados prejuízos causados à empresa pelas enchentes do rio Douro, que por várias vezes inundaram o citado gasómetro, a Companhia Portuense de Iluninação a Gás planeou, como medida preventiva, construir aos outros.

pormenor de um postal do início do século passado .  assinalado com um circulo podemos ver um lampião a gás com o escadote do lampianista a ele encostado

(...)

Com que saudade recordamos também as noites escuras de há cinquenta anos, sem estrelas a brilhar no firmamento, silenciosas, que amedrontavam as pessoas tímidas, não as deixando sair de casa, receosas de quaisquer perigos.

Nestes tempos, épocas da minha infância, as ruas, de noite, não tinham a aninação e o deslumbramento das de hoje. Depois da meia-noite tornavam-se solitárias e só deambulavam por elas os notívagos, os boémios, a polícia, as patrulhas da Guarda Municipal e os mal ajeitados guardas-noturnos, que, de bigodos fartos, grandes chanfalhões à cinta e de bonés enterrados até às orelhas, nos davam um aspeto caricato.

Calcorrear as ruas do burgo tripeirinho de há dez lustros, sem montras vistosas, iluminadas, candeeiros públicos de luz tremeluzente, só por grande precisão.

Contudo, aos sábados e domingos, a altas horas da noite, a rapaziada jovem daqueles tempos, em grupos e acompanhada de variados instrumentos de corda, não deixava de ir fazer tocatas às suas namoradas, que de vez em quando terminavam tristemente, em virtudo do inesperado aparecimento da polícia que, depois de lhes aquecer bem as costelas e lhes por os instrumentos em pedaços, os levava a passar o resto da noite nas nojentas e incomodativas tarimbas do Aljube velho.

Mas a eletricidade, rainha de todas as luzes, substituíndo a iluminação produzida pelo gás, com os velhos bicos Papillon e depois Auer, com camisas de amianto e chaminés de mica, acabou com as noites soturnas e concorreu enormemente para o desenvolvimento da indústria e comércio portuenses.

Comparar a luz de 1855 da cidade da Virgem - cujos lampiões, para acender e limpar, tinham de se baixar, com a atual luz elétrica, é somente espantoso!...»


O texto acusa a data, pois se Manuel Pedro tivesse acesso ao Porto atual e à sua iluminação, certamente que muito escuras acharia as ruas da cidade na sua própria época e ainda mais espantoso o brilho da cidade de hoje!

Viriato

terça-feira, 25 de março de 2025

O botequim do Pepino

A publicação que vos trago hoje não é nova, agrega as duas que sobre o tema coloquei na antiga casa deste blog com 5 anos de intervalo! É a continuação da prometida trasladação das publicações que no meu entender não merecem desaparecer; pelo que a pouco e pouco as farei aqui renascer, mesmo sabendo que várias ganharam já o direito de figurar em outros blogs(1).


I

Sobre este botequim diz-nos Pinho Leal no vol. VI - p. 62 - do seu Portugal Antigo e Moderno:

«Houve na rua de Cima do Muro, nesta freguesia de S. Nicolau, um pouco ao poente do Postigo dos Banhos, um botequim, que se tornou célebre e conhecido como nenhum outro no Porto e fora do Porto, até mesmo na Inglaterra, na Rússia, na Alemanha, na França, etc. 

Era público e notório, que naquele botequim ou casa de café e bebidas, foram roubados e mortos muitos marinheiros ingleses e de outras nações, e é certo que aquela casa esteve muitos anos debaixo da vigilância das autoridades locais, persistindo, a despeito de toda a vigilância policial, os boatos mais aterradores: até que a casa foi expropriada e demolida pela câmara, como todas as circunvizinhas, para a abertura da rua da Nova Alfândega - sem se apurar o fundamento de tão sinistros boatos.

É certo que aquele botequim, todas as noites se enchia de mulheres perdidas, marujada, principalmente estrangeira, e homens de má nota; que ali havia música e danças (cancan) desonestas, e um arruído infernal até desoras; - que ali houve por vezes rijo bofetão e grossa pancadaria, - e que muitos dos fregueses, nomeadamente marítimos russos, ingleses e alemães, lá pernoitavam, estirados no chão, com o peso do vinho, até ao dia seguinte, - dizendo as más línguas que eram embriagados artificialmente, e de propósito, pelo dono da casa, para os roubar, quando levavam consigo dinheiro, e que depois os lançava ao rio. E acrescentavam - que muitos cadáveres apareceram no Douro, que se disse serem marítimos estrangeiros que se afogaram casualmente, quando a verdade era - que haviam sido roubados e assassinados no maldito botequim... Nunca pôde averiguar-se bem a cousa, mas parece vir a propósito o aforismo - vox populi, vox diaboli!...

O proprietário deste... botequim, enriqueceu com o seu ignóbil negócio, e era tão astuto que adivinhava sempre o dia e hora em que a polícia vinha dar-lhe busca... Chamava-se António Pereira Porto, por alcunha o Pepino, e por isso o seu botequim ganhou o título de Botequim do Pepino. O tal Pereira Porto, faleceu aproximadamente em 1850, mas a viúva conservou o célebre botequim (mas já muito decadente) até 1870 a 1871, data da demolição daquela rua e das ruas adjacentes».


II

Ainda sobre este célebre - por fracas razões - botequim, pude encontrar n' O Tripeiro umas preciosas notas, no volume correspondente ao seu primeiro ano (1908), na secção de perguntas e respostas. Tencionava verter para aqui a informação que lá surge com a descrição que Arnaldo Gama lhe faz; contudo opto por não o fazer dado que iria repetir texto já difundida neste blog.

Apenas apenso a essa informação a seguinte, com caráter já secundário, mas que está também na tal secção de perguntas e respostas, escrito por um tripeiro de gema batizado em S. Nicolau:

«O Botequim do Pepino, em Cima do Muro, era muito concorrido da marinhagem estrangeira e de mulheres de má nota do Forno Velho e imediações. As desordens ali eram frequentes. O prédio, juntamente com os demais do mesmo lanço do muro, foi demolido, quando se construiu a rua que segue da dos Ingleses para a Alfândega. O botequim transferiu-se para o Forno Velho. Não sei se ainda lá existe ou algum seu descendente. O Rodrigues Sampaio, o Sampaio da Revolução, era acusado pela imprensa adversária por ter sido freguês do mesmo café, quando era guarda da Alfândega ou coisa que o valha. Cito este facto de memória mas creio não estar em erro».


III

Em relação ao dono deste estabelecimento, conheço biograficamente uma data: a do seu casamento! Isto porque no Periódico dos Pobres no Porto de 18 de Outubro de 1845 me deparei, casualmente, com esta notícia:

«Anteontem de tarde atravessava a todo o trote a Praça de S. Lázaro um cabriolé a quatro, carregado de pessoas do sexo feminino em grande luxo, e acompanhado de cavaleiros. Era o botequineiro Pepino de Cima do Muro que tinha ido casar, e que se recolhia a casa em grande estado»(2).

O retângulo vermelho indica o local onde terá existido o botequim de António Pereira Porto, um pouco a poente do postigo dos Banhos (letra A), tal como indicado por Pinho Leal



IV

Este botequim poderá, curiosamente, estar relacionado com a introdução do fado no Porto, canção dita nacional mas na verdade urbana de Lisboa, que tal como a guitarra que a acompanha não terá raízes mais profundas do que início do século XIX.

Com efeito, diz-nos assim Camilo na sua novela Eusébio Macário, publicada em 1879 e colocando a ação nos anos quarenta do mesmo século:

«Conhecia a fama do botequim do Pepino em Cima do Muro, onde o fado batido(3) deitava à madrugada, com entreatos de facadas e muito banzé».

E também:

«Não encontrava no círculo das suas finas relações algum fadista curioso. Ainda os não havia fora das tabernas da Porta de Carros e das alfurjas da Porta Nobre, ramificações do Pepino de Cima do Muro».



V

Extrato do capítulo XIII de As Duas Fiandeiras, por Francisco Gomes de Amorim:

«Há na cidade do Porto, em cima do muro, e defrontando com o mosteiro de Corpus Christi, de Vila Nova de Gaia, certo botequim que se tornou célebre pelas cenas de amores românticos, dramáticas, às vezes trágicos, e quase sempre mais ou menos escandalosos, que ali se representaram, há perto de vinte anos(4). È o famoso botequim do Pepino. Não houve nunca, nem tornará a haver, provavelmente, com a degeneração em que vão caindo os costumes, outra casa como aquela foi, nos seus tempos de gloriosa memória.

O leitor e o viajante, curiosos de monumentos arqueológicos, podem, ainda hoje, ver a sala, os móveis e as pinturas, que foram testemunhas dos factos que vamos referir, e de outros muitos, e muito mais notáveis, que seria útil e instrutivo memorar (...). Está tudo ainda nos seus lugares, como então. E, contudo, que diferença espantosa, em tão breve tempo! Desapareceram os frequentadores e frequentadoras, que lhe deram renome; e com eles se foram os bons usos, a alegria, o ruído, a vida dessa quadra feliz!

Estão lá ainda as quatro mesas, de dois palmos de largura e oito de comprimento; o mesmo espelho, oval, que viu tantas caras formosas... e tantas horrendas! Tantas cenas de ternura, e tantas desordens lubricas e sanguinolentas! Os mesmos quadros adornam as mesmas paredes, representando: "Ordres religieuses de femmesLa dernière heure d'un pécheur. La dernière heure d'un juste. O inferno; O purgatório. O juízo final. E mais duas excelentes gravuras de Andran!

É tudo o mesmo, e tudo mudou!... porque tudo envelheceu. O rio continua a correr junto ao muro; o mosteiro do Corpus Christi, e a rua do Rei Ramiro, ou Ramires, veem-se ainda, da porta do botequim, na outra banda do Douro, a curva do rio limita do mesmo modo o horizonte (...). Tudo isto é como há vinte anos; mas a asa do tempo e o sopro ardente da civilização levaram a poesia da navalhada, que então se dava e levava no botequim do Pepino. Varreram, para os leitos dos hospitais ou para as valas dos cemitérios, a maior parte das personagens que nessa era famosa animavam aquele quadro! Nem belas, infelizes; nem poetas e romancistas, disfarçados em marujos; nem sequer marujos verdadeiros, dos que até ali tinham resistido às nossas transformações sucessivas, frequentam hoje o outrora famoso estabelecimento. Este século de prosa dá cabo de tudo.

A gente que concorre agora ao botequim do Pepino é vulgar, como nós todos, sem nenhuma circunstância que a recomende a futuros escritores. Toma o seu café e  fuma o seu mau charuto, como quem está placidamente em sua casa; entra e sai, quando quer, de dia e de noite; e nem sequer encontra, umas vezes por outras, quem lhe dê, não diremos já duas facadas, porém, ao menos, dois bons murros, para cortar a monotonia da vida!

Oh civilização!... o próprio Pepino já não é pepino! Como o seu homónimo de França, passou o reino, digo, o botequim, por testamento verbal, não a outro Carlos Magno, mas ao Sr. CinouraCinoura! Que substituição tão grata para este século insípido!»


*


Como nota final devo acrescentar que é muito estranho que Pinho Leal dirija o ano da morte de António Pereira Porto para os anos 50 do século XIX, quando no Arquivo Municipal do Porto está o seu registo de falecimento que demonstra ter ele falecido a 6 de fevereiro de 1888(5). E ainda mais estranho que este registo o dê como morador na rua de Cima do Muro quando esta rua praticamente deixou de existir em 1871. Será que António Pereira Porto ficou a residir numa das casas que ainda hoje existem desta rua, hoje mais conhecida por Muro dos Bacalhoeiros? No seu testamento, feito em 1874, António Pereira Porto declara que não tendo filhos deixava como herdeira natural a sua esposa mas também legava «vinte e cinco esmolas de mil reis a pessoas mais necessitadas desta freguesia de S. Nicolau», bem como 20$000 a distribuir pelos seus sobrinhos. Me parece que, apesar da fama, não seria assim tão empedernido o coração deste nosso Pepino...

Viriato


_____

1. Este parágrafo introdutório é de Maio de 2018, quando a A Porta Nobre ainda existia.

2. Humm.. não querendo ser má língua, fico contudo a matutar se António Pereira Porto era apenas dono de um botequim, ou haveria mais negócio nos andares superiores do seu estabelecimento.

3. O fado batido nas tabernas de Porto e Lisboa, há muito morreu. Para se ter uma ideia de como ele era, poderá o leitor passar os seus olhos por aqui, e aqui para uma recreação moderna com concertina.

4. Embora apenas publicado em 1881 em Lisboa, este texto, conforme o autor indica, foi escrito em 1866.

5. N' O Comércio do Porto de 7 de fevereiro daquele ano surge o anúncio da sua morte e legado, informando o nome da sua esposa, Elisa Pereira, e dando-o como proprietário de um café na rua da Nova Alfândega.

Publicado originalmente n´A Porta Nobre, revisto ampliado em 25 de Maio de 2018 (e agora de novo ampliado).