Esta palavra - taracenas - soará estranha ao comum do leitor de hoje. Para a sua definição sigo o historiador Amândio Barros na obra Porto - A construção de um espaço marítimo no início dos tempos modernos. Assim, as taracenas seriam «instalações cobertas onde se construíam, reparavam, e guardavam barcos»; distintas aliás dos estaleiros, cujos locais, preparados para a construção, eram a céu aberto. Uma leitura da obra citada proporcionará bastante informação sobre os vários pontos de abrigo de navios e de construção naval que existiram no Porto e seus arredores ribeirinhos e para a qual remeto o leitor. Aqui pretendo referir em exclusivo as de Vila Nova (de Gaia), que existiram junto ao antigo convento de Corpus Christi.
Embora o Dr. J. A. Gonçalves Guimarães faça remontar estas taracenas pelo menos ao final do século XIV(1), na opinião de Amândio Barros tal não fica provado pela passagem que supostamente o certifica, uma vez que a mesma é bastante difusa no seu significado. Ela refere: «E o dito Gil Paes pelo dito juramento disse que Afonso Giral almoxarife das taraçanas de Vila Nova da par de Gaia de quantos vinhos haviam nunca ganhava alvará nenhum(2) dos vereadores da dita cidade para que os metesse...». Junta-se a esta ausência de fontes a ausência da menção das taracenas junto ao convento das dominicanas, aquando da sua fundação em 1345: «... assim como estão cerradas, tapadas, muradas com sa igreja, como parte pola fonte por cima das casas contra o monte como estava cerrado tapado: de contra Douro caminho público: de contra Abrego caminho público ...»
Assim, para o autor, a única base documental sólida que possuímos da existência destas estruturas remontam ao século XVI. Deste século vêm-nos também a única descrição que delas existe, elaborada pelo procurador real Francisco Dias: «da banda de Vila Nova estão umas outo(3) casas armadas sobre arcos, muito compridas: afirma-se que se fizeram para ali meterem galés em tempo de inverno e bem parece ser para esse efeito; e porque isto é muito antigo, serve agora uma parte delas para se matarem e fazerem as carnes de el-rei para suas armadas».
A estas estruturas se chamava num documento de 1620 «tarracenas de el-rei» e quase um século depois, em 1703, ainda eram as «teracenas de sua Majestade» não obstante um alvará régio de 1675 ter feito já doação da pedra dos seus arcos às freiras de Corpus Christi para reedificarem a igreja. Em 1758 delas restava apenas «um lugar emparedado e fechado» que somente era utilizado «para recolher as madeiras e fábrica real». Não admira portanto que pouco tempo depois, em 1760, se tenha doado o terreno ao brigadeiro João de Almada. Há igualmente uma referência à Quinta das Taracenas ainda no século XVII, cujo proprietário - Manuel Teixeira da Costa - vendeu quando foi para o Brasil.
Estas taracenas existiram, não resta disso dúvida. Ainda assim, no entender do autor que temos vindo a seguir, será improvável que fosse um local de construção de novas embarcações. Terão servido sobretudo para resguardo de galés durante o inverno (navios frágeis e caros, como sublinha), mas equipadas com todos os apetrechos e matérias-primas para neles efetuar reparações de monta. Uma outra sua função, menos vistosa mas igualmente vital, seria a armazenagem das farinhas usadas na produção do famoso biscoito e a sua cozedura.
Como nos refere J. A. Gonçalves. Guimarães, após a decadência do império da Índia e com o domínio filipino, não seria justificável a manutenção daquela estrutura dada a inexistência de grandes armadas para apetrechar. A isto creio poder acrescentar que o facto do tempo das grandes galés há muito ter desaparecido talvez ajudasse a tornar ainda mais obsoletas aquelas construções que à época já não teriam certamente terrenos em volta que possibilitassem a sua expansão; pois que os mais modernos modelos de navios exigiam outro tipo de estruturas de apoio, mais vastas e complexas(?). Fosse qual fosse a razão ou razões que levaram à sua extinção, delas pouco mais que nada ficou, quer na documentação quer na materialidade; mas mesmo nesta alguns restos terão por ventura chegado aos nossos dias...
A 3 de março de 1874, o estado, que era à época o proprietário das antigas propriedades do mosteiro de Corpus Christi, tentou vender, entre outros, os «armazéns grandes, chamados das Tarracenas». Mas não foi arrematado(4).
Com efeito, quem hoje passa pela rua das Sete Passadas junto ao edifício do antigo convento de Corpus Christi e olhar com atenção para o muro que percorre uma boa parte da sua face sul, irá com certeza reparar numas pedras de aparência robusta e um semi-arco de igual modo construído. Toda aquela simetria denota construção antiga, regular, e que obedeceu a um plano bem mais complexo do que o simples delimitar de uma propriedade. Ainda segundo Joaquim António G. Guimarães, aquelas estruturas deverão ser tudo o que resta (à superfície, acrescento eu) das velhas taracenas de Vila Nova!
Viriato
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1. Gaia e Vila Nova na Idade Média pp.161-162
2. No original «nem huum».
3. Isto é, oito.
4. Ver O Comércio do Porto de 4 de fevereiro e de 6 de março, de 1874.
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