Por estes dias a Europa assiste incrédula a uma invasão de um país soberano pelo seu vizinho - ato digno dos imperialismos de outrora - que com os meios de informação atuais é possível, a milhares de quilómetros de distância, acompanhar e observar. Ora em Portugal também passamos por essa situação na primeira década do século XIX. Também o Porto por duas vezes esteve ocupado por tropas estrangeiras, por alguns meses, durante a Guerra Peninsular. Episódio bélico e complexo, para esta publicação pretendo unicamente lembrar a memória de um desses invasores, durante os dois primeiros meses da primeira. Invasão que derrama, ao menos em parte, dos fundamentos de um acordo ignomínioso: o Tratado de Fontainebleau. Com efeito, estipulava o seu 1.º artigo: «A província de Entre Douro e Minho, com a cidade do Porto, passará em plena propriedade e soberania para Sua Majestade o rei da Etrúria, com o título de rei da Lusitânia Setentrional»(1).
Assim, semanas depois do francês Junot chegar a Lisboa só para ver a família real já no mar a caminho do Brasil, escoltada por uma frota inglesa; entrava no Porto a 13 de Dezembro de 1807 a primeira divisão do exército espanhol para tomar posse da cidade e do restante Portugal a norte do Douro, secundada por uma outra cinco dias depois. À cabeça destes militares vem D. Francisco de Taranco y Llano, que não obstante se encontrar ao serviço de uma força hostil, em breve deixará uma forma estranha de saudade pela forma como procedeu com os portuenses(2). Mas não ficou por muito tempo na cidade o general Taranco. A bem da verdade, nem na cidade nem neste mundo, pois faleceu por causa incerta no dia 26 de Janeiro de 1808, após na noite anterior ter ceado em casa do comerciante francês João Pedro Salabert, em Lordelo do Ouro. A morte de Francisco Taranco y Llano foi considerada algo misteriosa... e lembremo-nos que as relações entre os franceses e os espanhóis seus aliados, nunca foram de confiança mútua(3).
representação do Tratado de Fontainebleau, uma das milhares de provas que a História nos dá de que as nações não tem amigos mas sim interesses; que por vezes convergem
O respeito e admiração (se a isso se pode elevar) dos portuenses por este general advém do também respeito com que tratou as instituições portuenses e seu povo; pese embora desde o início avisasse ao que vinha e advertisse que não seria tolerada qualquer situação que colocasse em causa a sua autoridade. A tolerância aliás estava presente na sua proclamação ao público quando lhe pede que vivessem em paz e tranquilos, certificando ele que o exército espanhol os não inquietaria nas suas leis, usos e costumes. Taranco y Llano mostrava-se assim intolerante com qualquer abuso dos portuenses, mas de igual forma se mostrava na mesma qualidade com os seus militares. Foi esse bom senso, esse equilíbrio, que permitiu que este militar do exército invasor deixasse uma ténue memória na história da cidade, pela positiva(4). A prova de que o escrito apaziguador com que o general se apresentou à cidade, não sofria de falsidade propositada no sentido de melhor controlar a situação, é a boa imagem que Taranco y Llano deixou na cidade; patente na carta enviada ao seu sucessor pelo Senado da Câmara, a 23 de Janeiro de 1808. Aí é dito que o cadáver do general foi sepultado «entre o pranto geral, e as lágrimas dos portugueses», glória, continua a carta, só possível de obter através do «amor, e beneficência para com os homens». O que a câmara refere não é mera cortesia hipócrita para com o invasor. O funeral de Francisco Taranco y Llano foi digno de Chefe de Estado, e prova disso foi o reconhecimento por parte de alguns espanhóis, de que o mesmo superara o do rei Carlos III, segundo confidenciaram a uma testemunha desses tempos (cujas memórias serviram como gatilho para esta publicação). Os apontamentos que para aqui seguidamente recolho não deixam margem para dúvida.
Com efeito, o serviço fúnebre do general Taranco ocorrido no dia 28 de Janeiro foi bastante elaborado, como se observa do relato composto por Pedro Vitorino:
«O funeral foi esplendoroso. Desde a rua Nova dos Ingleses até à igreja de Santo Elói, estendiam-se os seus soldados, a três de fundo, pelo lado esquerdo, ocupando a rua de S. João, largo de S. Domingos, rua das Flores, Porta de Carros, Praça Nova, até à entrada principal do templo. O cortejo fúnebre levava esta ordem: Na frente os granadeiros da Galiza (tropa escolhida que constituía a sua guarda); um piquete de cavalaria, tocando os clarins com surdina; quatro peças de artilharia; oficiais a cavalo; quatro cavalos desferrados cobertos com beata negra, onde se via o monograma do falecido e que ordenanças suas conduziam, um piquete de infantaria. Seguiam-se as irmandades, da Caridade, Passos, Meninos Orfãos, religiosos franciscanos com os capuchos, dominicos e entre estes, agostinhos descalços e congregados, cujo grupo a comunidade da curaria da Sé portuense rematava. Logo após ia o corpo do general, envergando o uniforme com o chapéu armado na cabeça, conduzido aos ombros por quatro granadeiros da Galiza. O caixão estava aberto e às quatro gualdras que dele pendiam pegavam o brigadeiro Luís de Oliveira Osório, o coronel Damião Pereira da Silva e dois oficiais espanhóis seus parentes. Atrás do corpo viam-se os generais Carrafa e Balestá, este debulhado em lágrimas. Quatro oficiais espanhóis conduziam a tampa do ataúde, suspensa nos ângulos por borlas. Depois do vigário geral do exército, paramentado, com diácono e subdiácono e quatro clérigos com capas, todos capelães do exército espanhol, seguiam o Senado da Câmara, o Cabido, a Relação, e toda a Nobreza, que um grande concurso de povo, por fim, acompanhava. Logo que o corpo entrou na igreja salvou a artilharia. Os capelães militares espanhóis cantaram a missa de corpo presente, a que assistiram os dois generais, assentados no presbitério da igreja. Ao levantar a Deus nova salva se ouviu, que foi repetida quando o corpo desceu à sepultura, ficando depositado no jazigo que aí possuía o visconde de Balsemão. Depois toda a tropa desfilou em frente do templo. As comunidades, acabado que foi o ato, dirigiram-se à casa onde o general morreu, cantando aí novo ofício. Até então nunca vira o Porto funeral com maior pompa e aparato. Além do asseio das janelas e do povoléu nas ruas, muito dele das imediações, concorreu para isso a numerosa tropa em armas, cerca de doze mil homens»(5).
a igreja de Santo Elói em 1833, segundo Vitória Vilanova (com o "edifício das Cardosas" em construção) . Sendo esta a melhor imagem que dela temos, podemos aferir da pobreza iconográfica que lhe está subjacente ...
Ter-se-ão apercebido os leitores que a igreja onde o corpo do general descansou era a há muito desaparecida igreja dos Cónegos de S. João Evangelista, vulgo Santo Elói, cujos últimos restos desapareceram já na segunda década deste século. Estariam os ossos daquele militar entre as sepulturas que ainda ali se encontravam?
Taranco y Llano foi substituído por Domingos de Ballestá, conforme sua própria indicação já no leito de morte, mas os acontecimentos que decorrem durante todo o restante período da invasão já não se enquadram nesta publicação. Tão somente pretendi recordar que mesmo no decurso de uma humilhante ocupação por forças estrangeiras é possível manter a cordialidade e pacífica convivência, ainda que os corações patrióticos almejem sacudir a mão castradora de uma nação.
Viriato
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1. Ironicamente, uma zona de Portugal que nunca fez parte da província romana da Lusitânia!
2. Mas não nos enganemos. Estamos na presença de um exército invasor, assim que a 28 de dezembro é formada uma nova junta da Fazenda, no sentido de arrecadar as rendas da coroa do Minho e Trás-os-Monte (dissolvida quando o domínio espanhol cessou, em 1 de fevereiro de 1808, passando para as mãos do francês Quesnel).
3. A 1 de fevereiro Junot irá desabafar numa carta: «O que me desgosta é que sou chamado governador de duas partes do território de Portugal, que são comandadas por generais espanhóis...».
4. Contrariamente, por exemplo, ao famoso "maneta", que deixou memória bem contrária. A declaração pode ser lida aqui.
5. Um outro documento que o leitor interessado pode consultar aqui, também se refere ao funeral e descreve com maior pormenor como passeou o féretro entre a casa onde o defunto falecera até descer à sepultura e ao final do ofício fúnebre de novo em frente à casa onde falecera o general.
BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL: O Grito da Independência, por Pedro Vitorino (1928) e Os Franceses no Porto 1807-1808, por Durval Pires de Lima (1949)
Interessante a ler: Oporto, capital del reino de Galicia
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