São conhecidas as diversas intervenções da DGEMN, que a partir dos anos 20 do século passado atuou em bastantes monumentos, criando para todos os efeitos uma leitura nova dos mesmos, hoje cristalizada como verdade histórica para o seu visitante ocasional. Desde os castelos, às igrejas, passando pelas muralhas, os responsáveis avançaram com inúmeras alterações; demolindo, recreando ou mesmo inventando. Assim, até que ponto quando chegamos a uma terra e vamos admirar os seus monumentos mais antigos, estamos na presença de verdadeiras sobrevivências de outras eras? Ou, pelo contrário, estamos na presença de pedras lavradas não há cem anos, ainda que o tempo decorrido se tenha encarregado de esmaicer a sua patina? Recordo, por exemplo, ter verificado através de um postal antigo que a igreja matriz de Barcelos, não havia chegado ao século XX com a bonita rosácea que agora exibe. Na verdade, era um grande janelão que ali campeava, antes da reintegração... Feio, sim? Mas «cada época tem seu uso; cada geração o seu espírito. Se se adicionar o importante elemento da modificação-modernização própria de todos os tempos, compreende-se o fenómeno característico do desaparecimento de tanta coisa que seria óptima se se tivesse conservado». Palavras certeiras de Bernardo Xavier Coutinho quando aplicadas aos monumentos portugueses pré-DGEMN; pois as intervenções de meados do século passado foram sobretudo artificiais, ainda que por vezes validadas por obras urgentes de restauro sob pena de ruína dos edifícios. Por muito criteriosas que fossem as opções dos responsáveis da época, creio que seria preferível lamentar a perda do original, do que glorificar a sua cópia. Felizmente hoje tal situação é impensável, mas é já tarde para repor os monumentos no seu anterior aspeto... restam-nos alguns registos fotográficos que nos permitem verificar como se apresentavam tal como legados pelas gerações anteriores: com todas as suas fusões estilísticas, modificações de melhor ou menor gosto e barroquismos exacerbados; enfim, antes do seu revivalismo. Surpreendeu-me no entanto que ainda assim algumas pessoas, mesmo que mais humildes, procurassem lutar pela manutenção de elementos desconsiderados pelas entidades responsáveis, mas que eram vistos com importância pelas comunidades que de facto usufruíam dos monumentos; como agora veremos.
A partir de 1927 têm início com ímpeto crescente, estas transformações, sendo a igreja matriz de Paço de Sousa apanhada no voraz apetite reintegracionista. Com efeito, este templo, construído entre os séculos XII e XIV, e naturalmente permeável às modificações provocadas pelos desejos dos monges seus proprietários para lá desse período, sofreu várias obras de restauro que a tornaram novamente visitável, após um incêndio no ano referido; todas elas bastante apoiadas pelos populares. Isso não impediu, contudo, que em 1933 a população da freguesia se insurgesse contra a destruição dos aspetos barrocos sua da fachada (que podemos ver na imagem abaixo).
Chegaram mesmo a enviar uma missiva a Baltazar de Castro, onde se manifestavam contra a execução da obra e da forma como ela estava a ser levada a cabo:
«(...) Os abaixo assinados, habitantes e naturais de Paço de Sousa, perante um facto que reputam atentório da integridade da sua igreja matriz (...) vem respeitosamente trazer ao conhecimento de V. Ex.ª os vandalismos praticados à sombra de um falso critério artístico, e contra os mesmos respeitosamente protestam, confiados no alto espírito de justiça de V. Ex.ª. (...) com enorme surpresa, voltam a realizar-se novas obras [o restauro do templo já ocorrera], sem que se compreendam os motivos que as justifiquem. Diz-se que se destinam a um completo restauro da fachada no qual se registam um hibridismo românico e rococó (D. João V). Se a tal facto constituísse um agravo ao desacerto artístico ainda tal se poderia compreender. No entanto, de modo algum se compreenderia a forma brutal e iconoclasta como todas as pedras lavradas da parte Joanina são grosseiramente mutiladas, apeadas e mal tratadas por uma forma verdadeiramente inconsciente. Certo é, porêm, que esse hibridismo não comprometia a beleza do aspeto geral da frontaria, tendo a vantagem de apresentar a aliança embora singular do espírito de duas épocas artísticas tão diferentes e distâncidas, formando um conjunto de rara beleza na urdidura do estilo D. João V (...). (...) Dado porém, que fosse nociva essa disparidade de estilos recomendava a mais elementar inteligência dos factos que as pedras da parte enxertada fossem desveladamente retiradas e conservadas, afim de poderem ser repostas em qualquer parte, inclusivamente num Museu. Não concordamos, já pelo amor que votamos a esta nossa Igreja paroquial, já por entendermos que é um deplorável e injustificável erro artístico, com esta pretensão integral restauração. (...) Este ataque infeliz e inesperado, provocou na população enorme celeuma e uma justíssima indignação, que decerto se teria exteriorizado, no primeiro impulso, por uma forma ativa, se alguns dos signatários tal não tivessem evitado. Como V. Ex.º verifica, achamos bem as primeiras obras realizadas, que de todos mereceram uma reconhecida homenagem. Com estas, porém, de modo algum podemos concordar e estamos certos também de que a elas V. Ex.ª não poderá dar beneplácito. (...). Não faltam no país autorizados especialistas, livres de ideias preconcebidas, sem unilateridade de critérios, nas condições de [a] V. Ex.ª prestarem os esclarecimentos necessários sobre o aspeto artístico e arqueológico desta riquíssima frontaria. Profundamente reconhecidos ficaremos a V. Ex.ª pelo interesse que esta reclamação possa merecer-lhe, a qual efetivamos apenas determinados pelo amor à nossa igreja, à benéfica sombra da qual temos vivido, vendo presentemente o judaico desejo de substituir o nosso estilo que tão belos motivos forneceu às Igrejas portuguesas e em especial à nossa, compondo a monotonia e agressivo aspetos do estilo bárbaro. (...)»
Baltazar de Castro terá no entanto descartado esta argumentação, considerando que os ornamentos joaninos nenhum valor possuíam, antes desvalorizavam o valor românico daquela igreja.
Vejamos algumas das alterações ao edifício promovidas por aquele tempo:
- a) demolição da torre sineira, que se firmava «em alguns dos primeiros arcos interiores da igreja e nos muros da frontaria e fachada do sul;
- b) parte do corpo do mosteiro que se alongava para o adro;
(referir, em abono da verdade, que as duas intervenções acima possibilitaram o desentaipamento de uma porta sul da igreja, o que permitiu avanços no conhecimento científico sobre a mesma, nomeadamente na datação).
- c) refazer da frontaria onde se encontravam desfiguradas «as colunas, os capitéis; e até as arquivoltas (...) faltavam completamente, no respaldo do seu coroamento os cachorros que o guarneciam - todos de curiosa decoração zoomórfica»;
alguns terão sido reaproveitados como cachorros na varanda existente na parte do corpo do convento que foi demolida (ver a foto 1, à direita), e recolocados pelos serviços no portal da igreja
- d) alteração dos «largos janelões retangulares» em «estreitas e esguias frestas», na nave do norte, numa aproximação ao original.
Não posso deixar de rematar esta publicação com palavras de um dos autores (M. L. Botelho) citados a pp. 93 da obra Mosteiro de S. Salvador... de Bernardino Gonçalves, que subscrevo inteiramente: «As próprias restaurações dependendo da sua dimensão e postura interventiva, também elas poderão constituir história ao imporem um novo estilo arquitetónico. As reintegrações levadas a cabo pela DGEMN sobre a arquitetura românica podem ter impingido uma imagem estilística que provavelmente nunca existira».
Viriato
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As fontes para esta publicação foram: Património e Restauro em Portugal de Miguel Tomé (2002); Mosteiro de S. Salvador de Paço de Sousa - Contribuição para a sua Reabilitação Arquitetónica de Bernardino da Conceição Duarte Gonçalves (2012) e A Arte de Bernardo Xavier Coutinho (1965), capítulo inserido no volume 2 da conhecida História da Cidade do Porto da Portucalense Editora.
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