De acordo com Artur de Magalhães Basto no seu primeiro volume da História da Santa Casa da Misericórdia (SCMP), não é conhecida a data exata do arranque da instituição na cidade do Porto. No primeiro documento que consta do arquivo da câmara municipal sobre o assunto, de 14 de março de 1499, o rei insta a cidade a avançar com a sua formação(1). Ao certo, sabe-se apenas que o documento mais antigo que a mostra como já instituída data de 12 de junho de 1503; e que naquela altura a instituição lutava por não se desagregar.
Não é contudo a SCMP o tema que escolhi para esta publicação. É que, a 4 de março de 1502, por carta enviada à câmara, D. Manuel parece querer instituir (ou permitir que tal aconteça), um hospital geral, à semelhança do Hospital de Todos os Santos de Lisboa(2).
Eis parte da carta: «Desejando nós de ver essa cidade mui nobrecida, especialmente nas coisas espirituais, houvemos por bem e serviço de Nosso Senhor fazer-se nela um hospital grande, em que os pobres doentes peregrinos e assim outro qualquer género de pessoas pobres e miseráveis se pudessem recolher, para lhes aí ser feita mais caridade dos que se faz pelos que ora são feitos, porque não podem ser em nenhuma maneira tão providos nem reparados com serão sendo todos incorporados em um; e para se isto bem fazer atribuímos as rendas dos outros hospitais a este grande, para com mais abastança se cumprirem as obras de misericórdia (…)»
A carta segue apelando à união entre os cidadãos mais honrados da cidade e o provedor que o rei nomeava – Vasco Carneiro - «para logo se por a mão na compra daquelas casas que se hão de derrubar, onde o dito hospital há de ser edificado, que nos enviaste pintado, que para isso nos parece muito auto segundo a pintura».
Para a rápida e cabal construção do edifício, dado que as rendas somadas dos hospitais da cidade nem para pagar as casas a comprar davam, propunha o rei que se colocasse uma imposição(3) na carne e no vinho, por ser, segundo a coroa, forma de todos pagarem, dadas as várias isenções de clérigos, cavaleiros e fidalgos, ficando com isto também essas classes abrangidas.
Para além disso, outro dinheiro viria, nomeadamente a esmola anual de 30.000 reais, para que, com esse primeiro dinheiro, «se pagarem aos donos das casas que se hão de haver o que montar e se derrubem logo: e a telha, madeira se ponha em lugar onde esteja em bom recato, que se não perca, e a pedra se ajunte; e faça-se entretanto todo o chão igual para logo se por mão nele» e para já não se mexesse no dinheiro da imposição. Mais dizia que quando tudo estivesse pronto, que a câmara escrevesse para o rei lhes mandar «a medida das casas do dito hospital e capela e das oficinas que para ele são necessárias e poderá ser que neste meio irá o bispo com quem isto praticamos e se fará logo perante ele o abrimento dos alicerces…»
Da carta se vê que a câmara já havia destinado um local para o hospital (e com projeto traçado!). Qual seria? Lembremos que nesta época, muito do Porto intramuros ainda não estava urbanizado, mas ainda assim seria necessário demolirem-se casas(4). Onde iria então ser feito o hospital? Talvez nunca se venha a saber, pois como bem refere o autor de onde colho estas linhas, os livros da câmara sobreviventes silenciam o assunto. Curiosa é também a preocupação de guardar bem os materiais das casas a demolir, ato que chegou pelo menos ao século XIX onde a câmara costumava arrematar - muitas vezes no local - os materiais das casas expropriadas para abertura de arruamentos, praças, etc (longe vinham ainda os anos da abundância de tudo).
Posteriormente a esta carta, surgiram preocupações e dúvidas no seio da câmara, sobre o tipo de arrecadação de dinheiro – a imposição – para a construção do hospital. Ao cabo de algumas negociações e duas viagens de representantes da cidade junto do rei, acabou por prevalecer a opção de se criar uma finta(5) e não as referidas imposições, tendo a 18 de maio de 1502 sido nomeados os lançadores da mesma. Mas se numa primeira fase a câmara pediu o adiamento dessa coleta até setembro, a verdade é que aparentemente mais nenhum desenvolvimento houve na questão do hospital. O assunto parece definitivamente morrer no ano seguinte. Por este ano existia já a ainda imberbe SCMP, que rapidamente evoluiria até se tornar numa das mais importantes e prestigiosas instituições da cidade. Quanto ao dito hospital, o que de mais perto se veio a conseguir foi o erguer do Hospital de D. Lopo de Almeida, um século depois da ideia de um Hospital de Todos os Santos do Porto ter passado pelas mentes de algum conselheiro de D. Manuel (do próprio rei?); ou de um homem bom portuense.
Termino com a descrição do hospital de Rocamador tal como ele se apresentava em 1498, pouco antes do surgimento da SCMP. Em conjunto com o de Santo Ildefonso e Santa Clara (não confundir este último com o convento erguido nos Carvalhos do Monte), desempenharia um papel basilar na assistência da recém criada instituição, tendo aliás recebido posteriormente a seu lado, o hospital D. Lopo de Almeida. O do Rocamador seria de longe o maior da cidade, segundo Magalhães Basto, ainda assim bem mesquinho quando comparado com o de Hospital de Todos os Santos de Lisboa. É assim:
«Esta é a casa, e assento do dito hospital e primeiramente o dito hospital, e casa dela está instituído e edificado na rua do Souto da dita cidade: o qual tem a entrada dele uma casa, na qual está a capela em que se celebram os divinos ofícios por os edificadores do dito hospital, e por esta casa entram à outra casa dos pobres: a qual casa tem de longo até à capela, cinco varas de medir e duas terças, e de través de porta a porta. S. desde a porta por onde entram até à porta por ondem entram à casa dos pobres quatro varas de medir escassas, a qual casa é de pedra de toda as partes de pedra, e a armação do telhado boa, e alta, mui espaçosa, e é de longo vinte e duas varas de medir esforçadas, e de través nove varas e dentro a um cabo está uma casa terreira como o dito hospital cerrada sobre si para a hospitaleira, em esta casa jazem de uma parte, e de outra dezoito camas de pobres, e dentro desta casa jaz outra casa sobradada que tem de longo três varas e terça e de través cinco varas de medir: esta casa em cima tem cinco casas para homens honrados, e debaixo tem um grande sootom: está a maior parte cerrada com grades com sua porta para se recolher alguma madeira para corregimento do dito hospital, e de fora estão duas barras para cama, e detrás da dita casa jaz um exido do dito hospital que tem de longo trinta e seis varas de medir, e de través no mais largo dezasseis varas: este exido tem quatro laranjeiras e duas figueiras, e uma [a]moreira, e três ameixieiras, e uma ramadinha de sete ou oito pés de madeira, e parte de encontra os pelames com exido que trás Joane Anes armeiro, de que a propriedade é do dito hospital, e de escontra o vendaval com campo das bainheiras, e escontra o aguião com outro exido que anda sobre si que é do dito hospital, e no outro exido há de longo vinte varas e meia, e de través doze varas: este exido tem cinco laranjeiras, e um limoeiro e laranjeiras: e da parte de escontra os pelames parte com outro exido do dito hospital, e da parte do aguião corre com a dita casa do hospital que tem as cinco câmaras, e detrás com o dito campo das bainheiras, e de entre a dita casa do hospital e o dito exido está um chão da crasta que é de longo seis varas e terça e de través quatro varas e meia, e tem dous pés de videiras.»(6).
Para contextualizar a localização deste hospital, vulgarmente dito como existente na rua dos Caldeireiros, devemos ter presente que quando se produziu esta descrição a rua das Flores não existia. Assim, o terreno em volta dele era composto sobretudo por hortas e azinhagas, depois transformadas em arruamentos, sendo a rua do Souto e dos Caldeireiros (à época unidos no topónimo Souto) a principal área urbanizada, com foros pagos à câmara.
Viriato
ӽӽӽ
1~ A própria SCMP refere no seu site esta data como a da fundação. Mas, como escreve Magalhães Basto, a missiva parece ser uma carta tipo enviada a várias localidades e não exclusivamente dedicada ao Porto.
2~ Instituição criada por D. João II, que lançou a primeira pedra do edifício em 1492, só concluido em 1504, já no reinado de D. Manuel.
3~ Na nomenclatura atual um imposto.
4~ Senão repare-se: a rua das Flores, e rua do Loureiro, a rua do Comércio do Porto, e rua de Belomonte (não na totalidade), entre outras, são criações da primeira metade do século XVI. Os terrenos - hortas e pomares - onde elas serão abertas pertenciam a instituições religiosas; nomeadamente à Mitra, ao Cabido, ao convento de S. Francisco e ao de S. Domingos.
5~ Termo equivalente ao atual derrama (?)
6~ Esta descrição, que adaptei, colhi do segundo volume da História da Cidade do Porto, da Portucalense Editora (vol.2, p. 463)
Sem comentários:
Enviar um comentário