sábado, 29 de julho de 2023

Camilo e Herculano

Esta nada histórica publicação, junta - sem misturar - Camilo e Herculano, personalidades contemporâneas e imprescindíveis para compreendermos o século XIX português. A razão porque os junto prende-se singelamente com isto: o primeiro, um pequeno texto que sobre ele encontrei, escrito poucos anos após a sua trágica morte, e que me tocou, talvez mesmo por isso, por nos mostrar a sua casa e o seu "fantasma", tão pouco tempo se colocava entre aquele triste dia de junho de 1890, como se diferente fosse para a eternidade lembrá-lo na semana a seguir, ou duzentos anos depois... O segundo porque ao ler, finalmente, uma das suas Lendas e Narrativas, encontrei um texto que já conhecia em pequena parte, onde o autor dedica alguns parágrafos à cidade que durante alguns anos habitou.


Começo com o texto sobre Camilo, escrito por Júlio Brandão e publicado na revista Branco e Negro, nr. 50, 14 de março de 1897:

«Há tempos fui a Seide. A casa de Camilo tem o portão da quinta para um largo bem minhoto de carvalheiras, com o cruzeiro, a igreja ao fundo. O dia estava chuvisquento e baço. Em cima, naquele segundo andar água-furtada, lá estavam as três janelas que alumiavam o gabinete de trabalho do escritor, a olharem com os vidros partidos os montes escuros de Vermoim.

Tudo abandonado. Dir-se-ia que na última rajada um vento aziago e cheio de ralas varrera as tintas, para deixar um mausoléu escalavrado e pressagiento, como em certas casas das suas novelas. Tudo com um ar fúnebre de desprezo, de abandono triste. As ervas cresciam como barbas de mendigos; havia espigas de milho nas escadas e ao pé da varanda, a acácia do Jorge, já legendaria e enorme, estendia as folhagens que afagavam a janela do quarto de dormir do romancista…

O dia estava chuvisquento e baço. Naquele silêncio de aldeia morta, enevoados os longes, com chuvas intermitentes a chorar, eu cuidei ver a esguia figura do escritor prodigioso, a fitar por entre os vidros o outono que amarelecia os campos, os choupos que estremeciam de histéricos, talvez a recordar a eterna vaidade dos homens…»


Segue-se, como prometido, as páginas inicias do sexto capítulo do conto de Herculano, Arras por foro de Espanha:

«O Douro é bem carregado e triste! A sua corrente rápida, como que angustiada pelos agudos e escarpados rochedos que a comprimem, volve águas turvas e mal-assombradas. Nas suas ribas fragosas raras vezes podeis saudar um sol puro ao romper da alvorada, porque o rio cobre-se durante a noite com o seu manto, a atmosfera embaciada faz cair sobre a vossa cabeça os raios de sol semimortos, quase como um frio reflexo da Lua ou como a luz sem calor da tocha distante. É depois de alto dia, que esse ambiente, semelhante ao que rodeava os guerreiros de Ossian, vos desoprime os pulmões, onde muitas vezes tem depositado já os gérmens da morte. Então, se, trepando a um pináculo das ribas, espraiais os olhos para a banda do sertão, lá vedes uma como serpente imensa e alvacenta, que se enrosca por entre as montanhas, e cujo colo está por baixo de vossos pés. É o nevoeiro que se acama e dissolve sobre as águas que o geraram. O horizonte, até aí turvo, limitado, indistinto, expande-se ao longe: recortam-no os cimos franjados das montanhas, que parecem engastadas na cortina azul do céu, e a terra, a perder de vista, afigura-se-nos como um mar de verdura violentamente agitado; porque em desenhar as paisagens do Douro a natureza empregou um pincel semelhante ao de Miguel Ângelo: foi robusta, solene e profunda.

... É o nevoeiro que se acama e dissolve sobre as águas que o geraram.

Como sobre um circo convertido em naumaquia(1), o Porto ergue-se em anfiteatro sobre o esteiro do Douro e reclina-se no seu leito de granito. Guardador de três províncias e tendo nas mãos as chaves dos haveres delas, o seu aspeto é severo e altivo, como o de mordomo de casa abastada(2). Mas não o julgueis antes de o tratar familiarmente. Não façais cabedal de certo modo áspero e rude que lhe haveis de notar; trazei-o à prova, e achar-lhe-eis um coração bom, generoso e leal. Rudeza e virtude são muitas vezes companheiras; e entre nós, degenerados netos do velho Portugal, talvez seja ele quem guarde ainda maior porção da desbaratada herança do antigo caráter português no que tinha bom, que era muito, e no que tinha mau, que não passava de algumas demasias de orgulho.

Nos fins do século décimo quarto, o Porto ia ainda longe da sorte que o aguardava. O fermento da sua futura grandeza estava no caráter dos seus filhos, na sua situação e nas mudanças políticas e industriais que depois sobrevieram em Portugal. Posto que nobre e lembrado como origem do nome desta linhagem portuguesa, os seus destinos eram humildes, comparados com os da teocrática Braga, com os da cavaleirosa Coimbra, com os de Santarém, a cortesã, com os de Évora, a romana e monumental, com os de Lisboa, a mercadora, guerreira e turbulenta. Quem o visse, coroado da sua catedral, semi-árabe, semigótica, em vez de alcácer ameado; sotoposto, em vez de o ser a uma torre de menagem, aos dois campanários lisos, quadrangulares e maciços, tão diferentes dos campanários dos outros povos cristãos, talvez porque entre nós os arquitetos árabes quiseram deixar as almádenas das mesquitas estampadas, como ferrete da antiga servidão, na face do templo dos nazarenos; quem assim visse o burgo episcopal do Porto, pendurado à roda da igreja e defendido, antes por anátemas sacerdotais que por engenhos de guerra, mal pensaria que desse burgo submisso nasceria um empório de comércio, onde, dentro de cinco séculos, mais que em nenhuma outra povoação do reino, a classe, então fraca e não definida, a que chamavam burgueses, teria a consciência da sua força e dos seus direitos e daria a Portugal exemplos singulares de amor tenaz de independência e de liberdade.

A populosa e vasta cidade do Porto, que hoje se estende por mais de uma légua, desde o Seminário até além de Miragaia ou, antes, até à Foz, pela margem direita do rio, entranhando-se amplamente para o sertão, mostrava ainda nos fins do século décimo quarto os elementos distintos de que se compôs. Ao oriente, o Burgo do Bispo, edificado pelo pendor do monte da Sé, vinha morrer nas hortas que cobriam todo o vale onde hoje estão lançadas a Praça de D. Pedro e as ruas das Flores e de S. João e que o separavam dos mosteiros de S. Domingos e de S. Francisco. Do poente, a povoação de Miragaia, assentada no redor da ermida de S. Pedro, trepava já para o lado do Olival e vinha entestar pelo norte com o couto de Cedofeita e pelo oriente com a vila ou burgo episcopal. A Igreja, o Município e a Monarquia entre esses limites pelejaram por séculos as suas batalhas de predomínio, até que triunfou a Coroa. Então a linha que dividia as três povoações desapareceu rapidamente debaixo dos fundamentos dos templos e dos palácios. O Porto constituiu-se a exemplo da unidade monárquica.»

Viriato


ӽӽӽ

1~ Para lá da famosa luta de gladiadores, os romanos desenvolviam outro tipo de entretenimentos nos seus anfiteatros. Um deles era a naumachia, que consistia em encher o palco do referido anfiteatro, para jogos que simulavam batalhas navais.

2~ Severo e altivo seria também Herculano, homem a quem Portugal muito deve.

Sem comentários:

Enviar um comentário