Esta é uma publicação mais literária do que histórica (aliás, como a anterior). O que abaixo se pode ler é uma pequena descrição dos meses mais complicados do cerco à cidade do Porto, pela pena de Teófilo Braga. Realidade? Total ficção? Talvez uma mistura destes dois componentes que, se combinados com mestria, conseguem envolver o leitor de uma forma magistral em realidades passadas.
*
«Havia três dias que o marechal Solignac desembarcara no Porto com alguns soldados belgas, e com ele entrou também para dentro do cerco um terrível inimigo - o colera morbus. Aos tifos, que já devastavam a cidade, veio juntar-se mais essa desolação para tornar mais completo o triunvirato da morte. De cem pessoas atacadas, diariamente sucumbia o terço. A fome ia chegando ao desespero, porque além das forças inimigas, desde janeiro que os vendavais bloqueavam a barra. À falta de carne os doentes eram sustentados a sopa de bacalhau, os caldos temperavam-se com açúcar e aguardente: as camas eram desfeitas para sustentarem a cavalaria; e além dos preços dos géneros mais urgentes os merceeiros vendiam falsificações doentias, tais como de azeite e óleo de linhaça, ou de manteiga e cebo. Era preciso lutar com a fome, e em fevereiro começou a distribuir-se uma sopa económica, de um quartilho de caldo de feijão com arroz e farinha de trigo; no primeiro dia acudiram trezentas pessoas, no segundo subiram já a setecentas as rações. Enfim, desde a perda do reduto do Monte do Crato, que Solignac apenas conservou oito horas, as condições de resistência da cidade tornaram-se desesperadas; derrotado também na sua tentativa de assalto ao Castelo do Queijo, em 24 de janeiro, a consequência desastrosa fez-se logo sentir; o inimigo compreendeu que fechando a barra do Porto venceria o cerco pela fome. Para isso fortificou quase toda a costa e levantou a terrível bateria de Serralves, que cortava toda a comunicação com a Foz. Pelo seu lado, os liberais reforçaram o reduto da Senhora da Luz e ocuparam imediatamente as alturas do Pasteleiro e do Pinhal. Mas a resistência ia-se tornando cada vez mais inútil, porque além da chuva de granadas que caía dia e noite sobre a cidade, além da recrudescência do cólera, para o qual já não bastava o hospital da quinta dos Congregados, o mar conservava-se tão tempestuoso que não era possível aparecer vela alguma no horizonte! Foram quarenta dias sem esperança, quarenta dias em que esteve tudo perdido menos a força moral.
A história oficial, subordinada à exação dos boletins de campanha, não alude a este período dos quarenta dias do princípio do ano de 1833, e contudo nesse período de desolação extrema é que se praticaram os maiores rasgos de validez moral: todos foram heróis, as mulheres e os velhos. É pena, que homens do talento de Garret e Herculano, e mesmo generais que sabiam trocar a espada pela pena e que foram heróis nesses grandes dias de sacrifício, nunca se lembrassem de coligir as sublimes tradições épicas que ainda casualmente se repetem do cerco do Porto. Essas tradições vão-se perdendo com toda a poesia de um povo que se esquece do seu passado. (...)»
do conto Os quatro filhos de Aymon, incluído na coletânia Contos Fantásticos, de 1896.
*
O restante texto recai sobretudo nos ficcionados diálogos travados entre um velho burguês e D. Pedro IV, em vários campos de batalha, sobre os quatro filhos que este teria defendendo a causa liberal, nas baterias e redutos espalhados pela cidade. Para lá da lenda ou da imaginação de Teófilo Braga, a parte transcrita do conto, contudo, com maior ou menor liberdade literária (se alguma!) é factual e deve ser recordada como memória do que os habitantes mais desfavorecidos desta cidade passaram, às mãos de quem lutava "por eles": ambos os lados...
Viriato
Sem comentários:
Enviar um comentário