sábado, 29 de julho de 2023

Camilo e Herculano

Esta nada histórica publicação, junta - sem misturar - Camilo e Herculano, personalidades contemporâneas e imprescindíveis para compreendermos o século XIX português. A razão porque os junto prende-se singelamente com isto: o primeiro, um pequeno texto que sobre ele encontrei, escrito poucos anos após a sua trágica morte, e que me tocou, talvez mesmo por isso, por nos mostrar a sua casa e o seu "fantasma", tão pouco tempo se colocava entre aquele triste dia de junho de 1890, como se diferente fosse para a eternidade lembrá-lo na semana a seguir, ou duzentos anos depois... O segundo porque ao ler, finalmente, uma das suas Lendas e Narrativas, encontrei um texto que já conhecia em pequena parte, onde o autor dedica alguns parágrafos à cidade que durante alguns anos habitou.


Começo com o texto sobre Camilo, escrito por Júlio Brandão e publicado na revista Branco e Negro, nr. 50, 14 de março de 1897:

«Há tempos fui a Seide. A casa de Camilo tem o portão da quinta para um largo bem minhoto de carvalheiras, com o cruzeiro, a igreja ao fundo. O dia estava chuvisquento e baço. Em cima, naquele segundo andar água-furtada, lá estavam as três janelas que alumiavam o gabinete de trabalho do escritor, a olharem com os vidros partidos os montes escuros de Vermoim.

Tudo abandonado. Dir-se-ia que na última rajada um vento aziago e cheio de ralas varrera as tintas, para deixar um mausoléu escalavrado e pressagiento, como em certas casas das suas novelas. Tudo com um ar fúnebre de desprezo, de abandono triste. As ervas cresciam como barbas de mendigos; havia espigas de milho nas escadas e ao pé da varanda, a acácia do Jorge, já legendaria e enorme, estendia as folhagens que afagavam a janela do quarto de dormir do romancista…

O dia estava chuvisquento e baço. Naquele silêncio de aldeia morta, enevoados os longes, com chuvas intermitentes a chorar, eu cuidei ver a esguia figura do escritor prodigioso, a fitar por entre os vidros o outono que amarelecia os campos, os choupos que estremeciam de histéricos, talvez a recordar a eterna vaidade dos homens…»


Segue-se, como prometido, as páginas inicias do sexto capítulo do conto de Herculano, Arras por foro de Espanha:

«O Douro é bem carregado e triste! A sua corrente rápida, como que angustiada pelos agudos e escarpados rochedos que a comprimem, volve águas turvas e mal-assombradas. Nas suas ribas fragosas raras vezes podeis saudar um sol puro ao romper da alvorada, porque o rio cobre-se durante a noite com o seu manto, a atmosfera embaciada faz cair sobre a vossa cabeça os raios de sol semimortos, quase como um frio reflexo da Lua ou como a luz sem calor da tocha distante. É depois de alto dia, que esse ambiente, semelhante ao que rodeava os guerreiros de Ossian, vos desoprime os pulmões, onde muitas vezes tem depositado já os gérmens da morte. Então, se, trepando a um pináculo das ribas, espraiais os olhos para a banda do sertão, lá vedes uma como serpente imensa e alvacenta, que se enrosca por entre as montanhas, e cujo colo está por baixo de vossos pés. É o nevoeiro que se acama e dissolve sobre as águas que o geraram. O horizonte, até aí turvo, limitado, indistinto, expande-se ao longe: recortam-no os cimos franjados das montanhas, que parecem engastadas na cortina azul do céu, e a terra, a perder de vista, afigura-se-nos como um mar de verdura violentamente agitado; porque em desenhar as paisagens do Douro a natureza empregou um pincel semelhante ao de Miguel Ângelo: foi robusta, solene e profunda.

... É o nevoeiro que se acama e dissolve sobre as águas que o geraram.

Como sobre um circo convertido em naumaquia(1), o Porto ergue-se em anfiteatro sobre o esteiro do Douro e reclina-se no seu leito de granito. Guardador de três províncias e tendo nas mãos as chaves dos haveres delas, o seu aspeto é severo e altivo, como o de mordomo de casa abastada(2). Mas não o julgueis antes de o tratar familiarmente. Não façais cabedal de certo modo áspero e rude que lhe haveis de notar; trazei-o à prova, e achar-lhe-eis um coração bom, generoso e leal. Rudeza e virtude são muitas vezes companheiras; e entre nós, degenerados netos do velho Portugal, talvez seja ele quem guarde ainda maior porção da desbaratada herança do antigo caráter português no que tinha bom, que era muito, e no que tinha mau, que não passava de algumas demasias de orgulho.

Nos fins do século décimo quarto, o Porto ia ainda longe da sorte que o aguardava. O fermento da sua futura grandeza estava no caráter dos seus filhos, na sua situação e nas mudanças políticas e industriais que depois sobrevieram em Portugal. Posto que nobre e lembrado como origem do nome desta linhagem portuguesa, os seus destinos eram humildes, comparados com os da teocrática Braga, com os da cavaleirosa Coimbra, com os de Santarém, a cortesã, com os de Évora, a romana e monumental, com os de Lisboa, a mercadora, guerreira e turbulenta. Quem o visse, coroado da sua catedral, semi-árabe, semigótica, em vez de alcácer ameado; sotoposto, em vez de o ser a uma torre de menagem, aos dois campanários lisos, quadrangulares e maciços, tão diferentes dos campanários dos outros povos cristãos, talvez porque entre nós os arquitetos árabes quiseram deixar as almádenas das mesquitas estampadas, como ferrete da antiga servidão, na face do templo dos nazarenos; quem assim visse o burgo episcopal do Porto, pendurado à roda da igreja e defendido, antes por anátemas sacerdotais que por engenhos de guerra, mal pensaria que desse burgo submisso nasceria um empório de comércio, onde, dentro de cinco séculos, mais que em nenhuma outra povoação do reino, a classe, então fraca e não definida, a que chamavam burgueses, teria a consciência da sua força e dos seus direitos e daria a Portugal exemplos singulares de amor tenaz de independência e de liberdade.

A populosa e vasta cidade do Porto, que hoje se estende por mais de uma légua, desde o Seminário até além de Miragaia ou, antes, até à Foz, pela margem direita do rio, entranhando-se amplamente para o sertão, mostrava ainda nos fins do século décimo quarto os elementos distintos de que se compôs. Ao oriente, o Burgo do Bispo, edificado pelo pendor do monte da Sé, vinha morrer nas hortas que cobriam todo o vale onde hoje estão lançadas a Praça de D. Pedro e as ruas das Flores e de S. João e que o separavam dos mosteiros de S. Domingos e de S. Francisco. Do poente, a povoação de Miragaia, assentada no redor da ermida de S. Pedro, trepava já para o lado do Olival e vinha entestar pelo norte com o couto de Cedofeita e pelo oriente com a vila ou burgo episcopal. A Igreja, o Município e a Monarquia entre esses limites pelejaram por séculos as suas batalhas de predomínio, até que triunfou a Coroa. Então a linha que dividia as três povoações desapareceu rapidamente debaixo dos fundamentos dos templos e dos palácios. O Porto constituiu-se a exemplo da unidade monárquica.»

Viriato


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1~ Para lá da famosa luta de gladiadores, os romanos desenvolviam outro tipo de entretenimentos nos seus anfiteatros. Um deles era a naumachia, que consistia em encher o palco do referido anfiteatro, para jogos que simulavam batalhas navais.

2~ Severo e altivo seria também Herculano, homem a quem Portugal muito deve.

terça-feira, 25 de julho de 2023

Um claustro renovado

Dou agora continuidade às publicações mais específicas sobre o convento da Ordem dos Pregadores da cidade do Porto. Desta vez, viajamos ao meado do século XVII.

No ano de 1676 os conventuais tomaram a decisão de renovar o claustro do convento. Não é certo se ela surge da emergência da ruína daquele espaço, se pura e simples renovação estilística que tantos monumentos medievais nos levou. Dois anos depois e com o prosseguir dos trabalhos, torna-se necessário alterar a fachada - por assim dizer -  de uma capela situada naquele espaço; modificação que foi contratualizada com os seus administradores.



Claustro do mosteiro de Santo Tirso, reminiscência medieval deste mosteiro. Seria este o aspeto do claustro dominicano portuense?


Assim, em 23 de junho de 1678, sendo prior Fr. Tomás Pereira, o convento ajustou o consentimento dos padroeiros, senhores e administradores da «capela de Nossa Senhora da Assunção sita no claustro do dito convento para a banda do sul a qual tem sua porta e duas janelas uma de cada banda e porque eles reverendos padres de presente andam fazendo as obras do dito claustro lhes era muito necessário o mudar a porta da dita capela porque um lanço da dita obra vem a contestar na dita porta e por se não poder fazer de outro modo mandaram pedir licença aos ditos possuidores (...) para mudarem a dita porta». Os administradores da capela eram Henrique Henriques e sua esposa, no entanto quem esteve presente na assinatura do documento, foi o seu filho como procurador.

O documento obrigava os padres «a mudar a porta da dita capela para o lugar onde está a janela que fica para o poente junto à casa da adega em lugar da dita janela ficará a porta que será feita com a mesma pedraria que tem e do mesmo alto e largura sem acrescentar nem diminuir cousa alguma e feita com a precisão necessária assim como de presente está e a outra janela que fica partindo com a casa do capítulo ficará aberta assim como está e esteve até agora e que não poderão bulir no altar nem no carneiro nem cousa alguma da dita capela mais que como dito fica mudar a dita porta para o lugar da dita janela».



Excerto de uma planta de 1845, onde assinalo o lanço sul do claustro (G), o H da direita assinala a antiga casa do capítulo, que também incorporava uma capela (AHMP)


Pelo segundo trecho do contrato depreende-se que a capela estaria no lanço sul do claustro, e que a arquitetura da nova estrutura implicaria arcaria mais larga do que o anterior. O claustro novo que se construía no final de Seiscentos, seria possivelmente de arquitetura simples, sem grande arte; a contrastar com o medieval, construído no período da nossa arquitetura gótica.


Termino com uma imagem misteriosa (ao lado). Trata-se de um arco que se encontrava num quintal de uma das casas da rua do 'Comércio do Porto' e que esteve décadas exposto no antigo museu de Etnologia e História, a Belomonte. Sem dúvida pertencente a um claustro medieval, ele terá vindo de um dos conventos mais próximos àquela rua. Mas qual? S. Franciscano, cujo claustro medieval foi destruído na segunda metade do século XVIII, ou S. Domingos, destruído em 1677/78?

Duas aduelas desta peça museológica encontram-se hoje expostas no Reservatório. Neste espaço do Museu da Cidade encontra-se também um interessante capitel de sabor nitidamente medieval. Será o que Soares de Oliveira referiu no seu trabalho sobre S. Domingos do Porto*; que o autor não teve tempo de verificar por ter falecido entretanto? Serão um ou outro ou um e outro, sobrevivências únicas do claustro dominicano?

Viriato


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* publicado postumamente no Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, em 1952.

domingo, 23 de julho de 2023

O largo do Moinho de Vento

Neste domingo e dado que a tarde vai morrendo, convido-o a ler uma pequena publicação invocando um conhecido topónimo citadino portuense, um dos poucos que sobreviveu aos sucessivos tufões toponímicos que varreram do mapa tantas outras seculares e enraizadas denominações.


Em busca de informação nos arquivos sobre determinado assunto, sempre nos podemos deparar com documentos igualmente interessantes, relacionados com outros temas. Foi o caso, quando me cruzei com um traslado do século XVIII de um diploma mais antigo que refere o microtopónimo Moinho do Vento no Porto, nome de um largo ainda hoje existente bem como a uma rua agora conhecida pelo nome de um músico (o moinho, esse, há muito desapareceu).


A referência a ele mais frequentemente citada encontra-se num documento de 1647, que refere a existência de uma estalagem nos Ferradores, que «partiam de um lado com terreiro e ermida da Graça, e da outra banda com o caminho do moinho de vento». Mas esta não pode ser, de todo, a referência mais antiga. Com efeito, nas atas das vereações de 1548, um século anterior, portanto, à que vimos atrás, é referida a «estrada e caminho que fica para Vila do Conde e Barcelos e outras partes além do moinho do vento». E certamente várias outras existirão, aguardando apenas quem nelas tropece.


o largo nos alvores do século XXI


Aquela com que me deparei, encontra-se num livro do cartório do convento dominicano do Porto. Tratam-se, na verdade, de dois documentos: o primeiro é o inventário dos bens de Pantaleão Brás, de março de 1592. Este senhor havia deixado à viúva «uma morada de casas de um sobrado em que o defunto morava, que são de prazo fateusim de Filipe da Silva, cidadão desta cidade (...), com seu quintal tapado de parede, e um alpendre no quintal, que parte da banda do norte com casas de Jorge Vieira, e do sul o quintal que parte com o rossio de Nossa Senhora da Graça, e por detrás e por diante com caminho». Com ele relacionado, um outro documento, de 1617, refere: «umas casas em que eles viveram [a viúva de Pantaleão Brás e o dito] na rua do Moinho de Vento além da Nossa Senhora da Graça arrabalde desta cidade». Era a casa em que vivia o atrás citado Jorge Vieira, ferrador, que entretanto fizera umas novas casas «para a parte da cidade», adjacentes a estas. Assim se pode constatar que, à partida, a referência que ora publico não será a mais antiga. Ela é, contudo, de todas elas a mais completa e demonstrativa do aspeto do local do final do século XVI, início do seguinte; obviamente muito incompleto e parcelar, como de resto a história geralmente se apresenta.


Porque a história não necessita de ser uma disciplina seca, não consigo deixar de imaginar o sr. Jorge Vieira, trabalhando de sol a sol debaixo do seu alpendre, ferrando os solípedes dos almocreves que transitavam entre o Porto e os seus arrabaldes e cidades vizinhas do norte litoral, que por aquele local forçosamente passariam; ótima localização para o seu negócio. Finalizo com algumas ligações para o que julgo serem as mais antigas plantas existentes da localidade - aqui e aqui - e uma outra, décadas mais recente, que nos revela aquele largo com algum pormenor (aqui).


Uma outra ligação, extra tópico mas muito interessante, para o Museu da Memória Rural, onde podemos aprender, sem sair do conforto do nosso lar, como funciona um moinho de vento e quais as diversas partes que o constituem!

Viriato


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FONTES: Vereações na Câmara do Porto no ano de 1548, dissertação de mestrado de Emília Albertina Sá Pereira de Vasconcelos (2001, FLUP); Prontuário de Toponímia Portuense (vol. 2), de Manuel do Carmo Ferreira (2016, Ed. Afrontamento); Resumo das coleções quarta, e quinta parte, volume do antigo cartório dominicano à guarda do Arquivo Distrital do Porto.

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Um caderno precioso

A investigação em arquivos antigos, nacionais ou privados de determinadas instituições, é muitas vezes reveladora de fontes pouco ou nada estudadas, que vêm contribuir para o conhecimento geral (frase clichet, bem sei, mas verdadeira). Neles esperam ainda certamente muitos documentos que serão um dia trazidos à luz do dia por alguém que os identifique e sobretudo valorize. Felizmente, com a crescente digitalização destes repositórios, vai sendo facilitado o acesso quer aos investigadores profissionais quer àquele punhado de apaixonados pela história que, como eu, também possuem interesse na investigação em determinadas áreas.

Um documento de importância para a história do Porto e que tem sido - aparentemente - pouco utilizado em investigação, é um caderno de plantas relativos a obras públicas feitas na cidade em 1788, com trabalhos da responsabilidade de José de Champalimaud de Nussane. Hoje à guarda da Torre do Tombo (TT), emparelha com um outro guardado no Arquivo Municipal do Porto (AMP), executado no ano seguinte; este já mais divulgado.


Esta publicação pretende estudar alguns aspetos de uma das planta presentes no volume da TT, nomeadamente uma folha que se divide em duas seções, com duas plantas distintas (ver acima). A primeira, metade superior da folha, é titulada Planta que mostra ... a calçada que se fez na rua Chão (sic), até à Porta de Cima de Vila, com os seus passeios de um e outro lado.... Na metade inferior, uma outra titulada Planta que mostra ... a calçada que se fez à saída da Porta do Sol e consecutivamente na rua de Entreparedes com seus passeios .... Levando em conta que as plantas deste período não se poderão comparar em rigor de cálculo e representação com as atuais, ou mesmo as que se realizaram a partir de meados do século XIX, possuem mesmo assim grande valor histórico.


A primeira - ver abaixo - representa uma área da cidade que se encontra bastante modificada em relação à atualidade, mas que apresenta elementos suficientemente explícitos para a sabermos interpretar. Trata-se do percurso compreendido entre a porta da Vandoma e a porta de Cimo de Vila; precisamente a principal porta do "muro velho" da cidade, com uma das mais importantes portas da "muralha fernandina".

Da esquerda para a direita assinalo: 1) porta da Vandoma: principal porta da cidade até ao advento da muralha do século XIV. As suas origens remontarão ao período condal asturoleonês e foi demolida em 1855 - 2) o largo da Cividade: um espaço plano no alto do monte do mesmo nome, que em boa parte desapareceu para dar lugar à avenida D. Afonso Henriques, na década de cinquenta do século XX - 3) Espaço da viela da Cadeia, ainda hoje existente, mas que na planta não surge representada - 4) é a rua do Loureiro - 5) indica o espaço hoje ocupado por uma fonte oitocentista - 6) Este edifício, que surge representado em separado ao contrário do que acontece a quase todos os demais, é a igreja do Terço - 7) é talvez o mais notável desta série: trata-se da porta de Cimo de Vila. Com as setas assinalo, da esquerda para a direita, a antiga viela que passava atrás da muralha; a porta em si, ou melhor, a sua torre onde também se encontram representadas as duas saídas possíveis para o terreiro em frente e à frente dela, a primitiva capela da Senhora da Batalha que entestava com a porta e possuía uma abóbada de pedra «de curioso artesonado, y toda de azulejo, con florones de oro, y adrio de colunas, cuyo techo está pintado de hieroglificos y misterios de la virgen Madre de Dios...». A capela foi demolida em c. 1794, mas da viela localizada entre a cerca e as edificações, ficou-nos um vestígio à entrada da rua (ver foto abaixo).

A segunda planta, abaixo, mostra-nos algo ainda mais interessante: 1) é o pequeno largo junto à porta do Sol, com a dita porta também visível; 2) bifurcação da rua do Sol e da rua de S. Luís; 3) rua de Entreparedes, com o edifício do hotel NH Collection Porto (6); 5) é a capela privada que foi demolida já nos meados do século XX, em local onde agora se encontra o terminal rodoviário da Batalha, na frente para a rua Augusto Rosa.

E neste momento poderá o leitor pensar que me esqueci de um número - o 4 - mas não. Este merece destaque: tratam-se de três cubelos da cerca gótica, que se encontravam na continuação da muralha a partir da porta do Sol, no lado oposto à primeira torre que hoje subsiste encostada ao edifício. Estes foram demolidos para a construção do edifício construído para ser Casa-Pia. Do cubelo mais à direita a muralha seguia em direção à porta de Cimo de Vila, que podemos ver na primeira planta apresentada. Não conheço menção a estas estruturas nos vários artigos e trabalhos (académicos ou não), que versam a muralha; pelo que serão mais um acrescento ao nosso conhecimento desta estrutura defensiva, que ainda hoje guarda alguns dos seus segredos nos arquivos e no subsolo!

A planta abaixo como que continua a anterior, sendo mais conhecida por fazer parte do caderno à guarda do AMP, mencionado acima.

As duas ruas que correm na horizontal são a de 31 de Janeiro (sup.) e a da Madeira (inf.). A legenda é como segue: 1) capela da Batalha; 2) rua de Entreparedes; 3) igreja e rua de Santo Ildefonso; 4) rua da Madeira; 4a) cubelo da imagem abaixo; 5) mosteiro de S. Bento de Avé-Maria, hoje como sabemos substituído pela estação de S. Bento.

Esta imagem é uma parte de uma foto antiga que nos mostra o largo da Porta de Carros na década de setenta do século XIX. A letra A indica a rua 31 de Janeiro, e a B a rua da Madeira. Com o 4a temos assinalado o cubelo e muralha demolidos no princípio do século XX, para dar lugar à estação de caminho de ferro (muitos dos seus silhares estão hoje englobados na sapata daquela rua).


Mas antes de encerrar esta pequena publicação de curiosidades, surge agora a oportunidade de abordar uma outra imagem intrigante, que parece talvez indiciar mais do que realmente é, contudo... Também ela parte de uma fotografia de vistas mais largas, apresenta alguns pormenores interessantes e desaparecidos; assim, podemos ali vislumbrar uma das casas que existiam no lado norte da rua do Infante, antes da construção do jardim com o mesmo nome (a), bem como a pedraria da recém derrubada casa quinhentista (cuja janela se vê ainda hoje na quinta da Aveleda); e, adjacente a esta e ainda em construção, o edifício agora ocupado pelo AHMP.


Todos estes pormenores à parte, peço ao leitor para colocar o seu foco no pequeno arco assinalado com ??. Demasiado pequeno para ser uma porta da antiga muralha gótica, onde se encontra inserido, estaremos ainda assim na presença de um antigo postigo?


O seu aspeto leva-nos tentadoramente a afirmar pela positiva, no entanto não devemos tirar conclusões precipitadas. Aliás, arrisco-me a afirmar que o mais provável é que não o seja, ainda que possa constituir um arco que reutilizou as pedras do antigo postigo. É que, este último, conhecido como o postigo da Alfândega ou do Terreirinho, estaria localizado a poucos metros de distância, muito possivelmente posicionado não virado diretamente ao rio, mas para o interior, em idêntica posição à da porta da Ribeira (em ambos locais se perceciona um desaparecido cotovelo da muralha), certamente por questões defensivas. Outro aspeto que talvez não abone em seu favor como arco genuinamente da muralha, é o facto de ele aparentar não ser vazado, i. é, ter pouca profundidade; embora essa realidade possa ser decorrente da perda de utilidade do mesmo em determinada época histórica, com a edilidade a alienar o espaço da eventual viela que lhe desse acesso.

O desenho de Marques de Aguilar, do qual acima coloco o pormenor relativo à área em estudo, não mostra qualquer arco no local do dito oitocentista nem, aparentemente, no cotovelo da muralha, onde é mais provável ter existido o postigo. Parece no entanto mostrar um arco - meio escondido por um navio - logo após nova viragem do pano de muralha na direção do troço que ainda lá se encontra... Mas esta gravura, embora de excelente qualidade (muito superior à mais conhecida e divulgada de Teodoro de Sousa Maldonado), sendo uma interpretação pessoal fica sempre sujeita ao nível de pormenor que o seu autor estiver disposto a aplicar. Aliás, salvo ilusão de ótica que o desenhador colocou no papel, a gravura parece também indiciar a existência de uma outra casa agora inexistente por cima do arco que estudamos e que taparia ao menos parte da frontaria da capela, a quem estivesse na margem gaiense do Douro (o que é possível quando enquadrado na intenção de alargar a área do cais). Assim, o arco representado poderia igualmente, pela ilusão de ótica, encontrar-se virado ao nascente... Tudo conjunturas, ressalvo.

Não nos é possível aferir do tipo de arco que ali vemos, se é realmente de ponto agudo, e por isso medievo; ou de volta perfeita. Contudo, a fotografia que acima coloco, sensivelmente da mesma época, mostra-nos um arco bastante semelhante no aspeto, pese embora a ambiguidade de pormenor que à distância as técnicas fotográficas da época apresentam, invalide o afirmá-los iguais (trata-se do postigo dos Banhos, destruído em 1871).

Nos anos oitenta do século XIX, aquela lingueta e todo o cais foram alteados, tendo o proprietário da casa por cima daquela área solicitado à câmara a permissão para rasgar uma moderna porta, substituindo a que ali se encontrava. É assim que o arco, em vez de entaipado, viu-se apenas subtraído do seu fecho. As restantes aduelas, no entanto lá ficaram, como se pode comprovar das imagem acima, por mim colhida em 2016.


Está ainda por fazer uma boa tese de mestrado sobre as cercas portuenses; nomeadamente a do período gótico que englobava algumas notáveis portas e grande quantidade de postigos, que foram tomando vários nomes ao longo do tempo; assim como aferir do real número de torres e cubelos que possuía e a sua implementação. Certamente que um estudo comparativo com os restos de tantas outras cercas da mesma época ainda existentes nas cidades e vilas espalhadas por este país, bem como um levantamento dos pequenos pedaços de escrita nas centenas de documentos que referem a muralha; poderiam quando comparados dar-nos uma muito melhor ideia de como se implementava esta estrutura defensiva, e como se articulava com as existências suas contemporâneas. Fica a dica!

Viriato


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FONTES: Mapa das Principais Obras Públicas que se fizeram na Cidade do Porto, caderno de plantas à guarda da Torre do Tombo : Notas da Arqueologia Portuense (1958), de A. de Magalhães Basto : [Porto: Zona do Governo Civil do Porto], do AMP

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Um Hospital de Todos os Santos no Porto?

De acordo com Artur de Magalhães Basto no seu primeiro volume da História da Santa Casa da Misericórdia (SCMP), não é conhecida a data exata do arranque da instituição na cidade do Porto. No primeiro documento que consta do arquivo da câmara municipal sobre o assunto, de 14 de março de 1499, o rei insta a cidade a avançar com a sua formação(1). Ao certo, sabe-se apenas que o documento mais antigo que a mostra como já instituída data de 12 de junho de 1503; e que naquela altura a instituição lutava por não se desagregar.


Não é contudo a SCMP o tema que escolhi para esta publicação. É que, a 4 de março de 1502, por carta enviada à câmara, D. Manuel parece querer instituir (ou permitir que tal aconteça), um hospital geral, à semelhança do Hospital de Todos os Santos de Lisboa(2).


Eis parte da carta: «Desejando nós de ver essa cidade mui nobrecida, especialmente nas coisas espirituais, houvemos por bem e serviço de Nosso Senhor fazer-se nela um hospital grande, em que os pobres doentes peregrinos e assim outro qualquer género de pessoas pobres e miseráveis se pudessem recolher, para lhes aí ser feita mais caridade dos que se faz pelos que ora são feitos, porque não podem ser em nenhuma maneira tão providos nem reparados com serão sendo todos incorporados em um; e para se isto bem fazer atribuímos as rendas dos outros hospitais a este grande, para com mais abastança se cumprirem as obras de misericórdia (…)»


A carta segue apelando à união entre os cidadãos mais honrados da cidade e o provedor que o rei nomeava – Vasco Carneiro - «para logo se por a mão na compra daquelas casas que se hão de derrubar, onde o dito hospital há de ser edificado, que nos enviaste pintado, que para isso nos parece muito auto segundo a pintura».


Para a rápida e cabal construção do edifício, dado que as rendas somadas dos hospitais da cidade nem para pagar as casas a comprar davam, propunha o rei que se colocasse uma imposição(3) na carne e no vinho, por ser, segundo a coroa, forma de todos pagarem, dadas as várias isenções de clérigos, cavaleiros e fidalgos, ficando com isto também essas classes abrangidas.

Hospital de Todos os Santos de Lisboa (esq.) numa representação setecentista

Para além disso, outro dinheiro viria, nomeadamente a esmola anual de 30.000 reais, para que, com esse primeiro dinheiro, «se pagarem aos donos das casas que se hão de haver o que montar e se derrubem logo: e a telha, madeira se ponha em lugar onde esteja em bom recato, que se não perca, e a pedra se ajunte; e faça-se entretanto todo o chão igual para logo se por mão nele» e para já não se mexesse no dinheiro da imposição. Mais dizia que quando tudo estivesse pronto, que a câmara escrevesse para o rei lhes mandar «a medida das casas do dito hospital e capela e das oficinas que para ele são necessárias e poderá ser que neste meio irá o bispo com quem isto praticamos e se fará logo perante ele o abrimento dos alicerces…»


Da carta se vê que a câmara já havia destinado um local para o hospital (e com projeto traçado!). Qual seria? Lembremos que nesta época, muito do Porto intramuros ainda não estava urbanizado, mas ainda assim seria necessário demolirem-se casas(4). Onde iria então ser feito o hospital? Talvez nunca se venha a saber, pois como bem refere o autor de onde colho estas linhas, os livros da câmara sobreviventes silenciam o assunto. Curiosa é também a preocupação de guardar bem os materiais das casas a demolir, ato que chegou pelo menos ao século XIX onde a câmara costumava arrematar - muitas vezes no local - os materiais das casas expropriadas para abertura de arruamentos, praças, etc (longe vinham ainda os anos da abundância de tudo).


Posteriormente a esta carta, surgiram preocupações e dúvidas no seio da câmara, sobre o tipo de arrecadação de dinheiro – a imposição – para a construção do hospital. Ao cabo de algumas negociações e duas viagens de representantes da cidade junto do rei, acabou por prevalecer a opção de se criar uma finta(5) e não as referidas imposições, tendo a 18 de maio de 1502 sido nomeados os lançadores da mesma. Mas se numa primeira fase a câmara pediu o adiamento dessa coleta até setembro, a verdade é que aparentemente mais nenhum desenvolvimento houve na questão do hospital. O assunto parece definitivamente morrer no ano seguinte. Por este ano existia já a ainda imberbe SCMP, que rapidamente evoluiria até se tornar numa das mais importantes e prestigiosas instituições da cidade. Quanto ao dito hospital, o que de mais perto se veio a conseguir foi o erguer do Hospital de D. Lopo de Almeida, um século depois da ideia de um Hospital de Todos os Santos do Porto ter passado pelas mentes de algum conselheiro de D. Manuel (do próprio rei?); ou de um homem bom portuense.


Termino com a descrição do hospital de Rocamador tal como ele se apresentava em 1498, pouco antes do surgimento da SCMP. Em conjunto com o de Santo Ildefonso e Santa Clara (não confundir este último com o convento erguido nos Carvalhos do Monte), desempenharia um papel basilar na assistência da recém criada instituição, tendo aliás recebido posteriormente a seu lado, o hospital D. Lopo de Almeida. O do Rocamador seria de longe o maior da cidade, segundo Magalhães Basto, ainda assim bem mesquinho quando comparado com o de Hospital de Todos os Santos de Lisboa. É assim:


«Esta é a casa, e assento do dito hospital e primeiramente o dito hospital, e casa dela está instituído e edificado na rua do Souto da dita cidade: o qual tem a entrada dele uma casa, na qual está a capela em que se celebram os divinos ofícios por os edificadores do dito hospital, e por esta casa entram à outra casa dos pobres: a qual casa tem de longo até à capela, cinco varas de medir e duas terças, e de través de porta a porta. S. desde a porta por onde entram até à porta por ondem entram à casa dos pobres quatro varas de medir escassas, a qual casa é de pedra de toda as partes de pedra, e a armação do telhado boa, e alta, mui espaçosa, e é de longo vinte e duas varas de medir esforçadas, e de través nove varas e dentro a um cabo está uma casa terreira como o dito hospital cerrada sobre si para a hospitaleira, em esta casa jazem de uma parte, e de outra dezoito camas de pobres, e dentro desta casa jaz outra casa sobradada que tem de longo três varas e terça e de través cinco varas de medir: esta casa em cima tem cinco casas para homens honrados, e debaixo tem um grande sootom: está a maior parte cerrada com grades com sua porta para se recolher alguma madeira para corregimento do dito hospital, e de fora estão duas barras para cama, e detrás da dita casa jaz um exido do dito hospital que tem de longo trinta e seis varas de medir, e de través no mais largo dezasseis varas: este exido tem quatro laranjeiras e duas figueiras, e uma [a]moreira, e três ameixieiras, e uma ramadinha de sete ou oito pés de madeira, e parte de encontra os pelames com exido que trás Joane Anes armeiro, de que a propriedade é do dito hospital, e de escontra o vendaval com campo das bainheiras, e escontra o aguião com outro exido que anda sobre si que é do dito hospital, e no outro exido há de longo vinte varas e meia, e de través doze varas: este exido tem cinco laranjeiras, e um limoeiro e laranjeiras: e da parte de escontra os pelames parte com outro exido do dito hospital, e da parte do aguião corre com a dita casa do hospital que tem as cinco câmaras, e detrás com o dito campo das bainheiras, e de entre a dita casa do hospital e o dito exido está um chão da crasta que é de longo seis varas e terça e de través quatro varas e meia, e tem dous pés de videiras.»(6).


Para contextualizar a localização deste hospital, vulgarmente dito como existente na rua dos Caldeireiros, devemos ter presente que quando se produziu esta descrição a rua das Flores não existia. Assim, o terreno em volta dele era composto sobretudo por hortas e azinhagas, depois transformadas em arruamentos, sendo a rua do Souto e dos Caldeireiros (à época unidos no topónimo Souto) a principal área urbanizada, com foros pagos à câmara.

Viriato


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1~ A própria SCMP refere no seu site esta data como a da fundação. Mas, como escreve Magalhães Basto, a missiva parece ser uma carta tipo enviada a várias localidades e não exclusivamente dedicada ao Porto.

2~ Instituição criada por D. João II, que lançou a primeira pedra do edifício em 1492, só concluido em 1504, já no reinado de D. Manuel.

3~ Na nomenclatura atual um imposto.

4~ Senão repare-se: a rua das Flores, e rua do Loureiro, a rua do Comércio do Porto, e rua de Belomonte (não na totalidade), entre outras, são criações da primeira metade do século XVI. Os terrenos - hortas e pomares - onde elas serão abertas pertenciam a instituições religiosas; nomeadamente à Mitra, ao Cabido, ao convento de S. Francisco e ao de S. Domingos.

5~ Termo equivalente ao atual derrama (?)

6~ Esta descrição, que adaptei, colhi do segundo volume da História da Cidade do Porto, da Portucalense Editora (vol.2, p. 463)

terça-feira, 11 de julho de 2023

Quarenta dias sem esperança

 Esta é uma publicação mais literária do que histórica (aliás, como a anterior). O que abaixo se pode ler é uma pequena descrição dos meses mais complicados do cerco à cidade do Porto, pela pena de Teófilo Braga. Realidade? Total ficção? Talvez uma mistura destes dois componentes que, se combinados com mestria, conseguem envolver o leitor de uma forma magistral em realidades passadas.


*

«Havia três dias que o marechal Solignac desembarcara no Porto com alguns soldados belgas, e com ele entrou também para dentro do cerco um terrível inimigo - o colera morbus. Aos tifos, que já devastavam a cidade, veio juntar-se mais essa desolação para tornar mais completo o triunvirato da morte. De cem pessoas atacadas, diariamente sucumbia o terço. A fome ia chegando ao desespero, porque além das forças inimigas, desde janeiro que os vendavais bloqueavam a barra. À falta de carne os doentes eram sustentados a sopa de bacalhau, os caldos temperavam-se com açúcar e aguardente: as camas eram desfeitas para sustentarem a cavalaria; e além dos preços dos géneros mais urgentes os merceeiros vendiam falsificações doentias, tais como de azeite e óleo de linhaça, ou de manteiga e cebo. Era preciso lutar com a fome, e em fevereiro começou a distribuir-se uma sopa económica, de um quartilho de caldo de feijão com arroz e farinha de trigo; no primeiro dia acudiram trezentas pessoas, no segundo subiram já a setecentas as rações. Enfim, desde a perda do reduto do Monte do Crato, que Solignac apenas conservou oito horas, as condições de resistência da cidade tornaram-se desesperadas; derrotado também na sua tentativa de assalto ao Castelo do Queijo, em 24 de janeiro, a consequência desastrosa fez-se logo sentir; o inimigo compreendeu que fechando a barra do Porto venceria o cerco pela fome. Para isso fortificou quase toda a costa e levantou a terrível bateria de Serralves, que cortava toda a comunicação com a Foz. Pelo seu lado, os liberais reforçaram o reduto da Senhora da Luz e ocuparam imediatamente as alturas do Pasteleiro e do Pinhal. Mas a resistência ia-se tornando cada vez mais inútil, porque além da chuva de granadas que caía dia e noite sobre a cidade, além da recrudescência do cólera, para o qual já não bastava o hospital da quinta dos Congregados, o mar conservava-se tão tempestuoso que não era possível aparecer vela alguma no horizonte! Foram quarenta dias sem esperança, quarenta dias em que esteve tudo perdido menos a força moral.


A história oficial, subordinada à exação dos boletins de campanha, não alude a este período dos quarenta dias do princípio do ano de 1833, e contudo nesse período de desolação extrema é que se praticaram os maiores rasgos de validez moral: todos foram heróis, as mulheres e os velhos. É pena, que homens do talento de Garret e Herculano, e mesmo generais que sabiam trocar a espada pela pena e que foram heróis nesses grandes dias de sacrifício, nunca se lembrassem de coligir as sublimes tradições épicas que ainda casualmente se repetem do cerco do Porto. Essas tradições vão-se perdendo com toda a poesia de um povo que se esquece do seu passado. (...)»

do conto Os quatro filhos de Aymon, incluído na coletânia Contos Fantásticos, de 1896.

*


O restante texto recai sobretudo nos ficcionados diálogos travados entre um velho burguês e D. Pedro IV, em vários campos de batalha, sobre os quatro filhos que este teria defendendo a causa liberal, nas baterias e redutos espalhados pela cidade. Para lá da lenda ou da imaginação de Teófilo Braga, a parte transcrita do conto, contudo, com maior ou menor liberdade literária (se alguma!) é factual e deve ser recordada como memória do que os habitantes mais desfavorecidos desta cidade passaram, às mãos de quem lutava "por eles": ambos os lados...

Viriato

domingo, 9 de julho de 2023

As hortas da Fonte Taurina

 A crescente penetração de influência real na cidade do Porto, burgo onde o bispo detinha o poder temporal para além do espiritual, é um facto comprovado por diversa documentação que chegou aos nossos dias. No reinado de D. Afonso IV (1325-1357) essa crispação está ao rubro com a construção da alfândega real, no local onde hoje podemos encontrar a Casa do Infante e consultar o precioso acervo da câmara municipal. No entanto, nas primeiras décadas do século XIV o local era ainda pouco povoado, com referências a hortas nas imediações, bem junto à zona portuária (lembremos por exemplo que a magnífica rua Nova é uma criação do final do século XV).


Longe de querer historiar, mesmo que resumidamente, o conflito originado pela pretensão da Coroa em cobrar direitos alfandegários nas barbas do bispo, esta publicação serve única e exclusivamente para apresentar um excerto de um documento episcopal lido aos representantes do rei, junto da obra do edifício da alfândega; com o objetivo de ilustrar a aparente rusticidade que toda aquela área apresentava à época. Com efeito, em 10 de outubro de 1325, o tabelião Gonçalo Joanes, o deão Pedro Peres, e os cónegos Martim Velasques, Domingos Martins e Estevão Domingues, deslocaram-se às hortas da Fonte Taurina, aí derramando o seu latim:


«In nomine domini Amen . Noverint universi quod in presentia mei Gunsalui Johannis publici Tabellionis domini mei episcopi in civitate Portugalensi ac testium infra scriptorum existentibus dicto domino episcopo . et domino Petro Petri decano . Martino Valasci . Dominico Martini . Stephano Dominici canonici predicte civitatis in ortis seu ortaliciis qui vel que dominici dicti Coelho fuerunt et retro domos platee fontis de Ourina existunt . Prelibatus dominus episcopus et canonici quamdam cedulam in papiro scriptam mihi dicto tabelionii tradi mandarunt ut eam coram Johanne Johannis . et Alfonsso Johannis . et fratre Alfonsso almoxarifo . eo scribis seu notariis domini nostri regis in predicta civitate legerem et publicarem (...) cuius cedule de verbo ad verbum talis est § Nos Johannes Dei et sancte romane ecclesie gratia Portugalensis episcopus . Et domnus Petrus Petri decanus . ac Martinus Valasci . Domincus Martini . Stephanus Dominici . Dominicus Dominici Portugalensis Ecclesie Canonici et nomine nostro et capituli ecclesie Portugalensis . dicius quod civitas Portugalensis et totius termini sui dominium spirituali et tenporali fuit et est ecclesie Portugalensis et ad ipsam pertinet et in possessone eiusdem domini stetit et stat ab antiquo . Et quare modo noviter Johannes Johannis . Regis almoxarifus in dictis Ortis sive ortaliciis et in platea qui vel que steterunt et existunt in termino . dicte civitatis et dominii predicte ecclesie . Incipit et fieri facit parietas et edificia pro domibus edificandis in magnum preiudicium anime sue et in dispendium et gravamen nostri supradictorum episcopi et capituli et prelibate ecclesie nostre . Nos cum Dei auxilio et gratia seu mercede regis volentes ius nostrum et eiusdem ecclesie defendere ut tenemur . Facimus nuntiationem et protestationem et contraditionem contra dictum opus quod nequaquam fiat et id quod iam factum est quod aboleatur seu amoveatur . et statim dictus decanus de mandato predicatorum domini episcopi et canonicorum eiusdem et pro se et eorum nomine et sue ecclesie mandantium ter . tres lapides in dictum opus quod fieri incipiebat proiecit seu emisit qualibet vice pro se et de mandato predictorum episcopi et canonicorum et sue ecclesie dicendo quod denuntiabat novum opus in dicto opere et eandem denuntiationem fecit super predicto . Almoxarifo qui presens erat . et super Dominico Michaelis et Petro Menendi habitatore in fine ville . et Johanne Dominici de Paranhas [sic] operariis in dicto opere fodere et operari minime cesantibus (...)»

na imagem, rodeado por um circulo, vemos o edifício da antiga alfândega cujas origens remontam ao reinado de D. Afonso IV . à sua volta, em 1325, poucas edificações existiriam ainda, mesmo a muralha "fernandina"  apenas surgiria décadas depois

O conflito entre a Coroa e a Mitra/Cabido são sobejamente conhecidos e historiados, embora este documento não seja talvez conhecido pelo público em geral. Resta dizer que o conflito não terminou ali; pelo contrário, só agora iniciava!


No entanto, e como referido no início, o mote para esta publicação é sobretudo apresentar um local onde se deu um determinado episódio da história da cidade, tal como ele se apresentava à época: no caso, a Fonte Taurina. Mas, e certamente o leitor mais atento já nisso reparou, outros dois são mencionados, onde habitavam operários da obra da alfândega. Um deles facilmente identificamos com Paranhos, que por aquela altura era uma pequena aldeia longe da cidade. No entanto, o outro - fine ville - isto é, Fim de Vila, remete o pensamento para o atual Cimo de Vila, embora talvez não exista qualquer relação entre os dois. Onde ficaria? Em Miragaia, no fim do couto do bispo delimitado pelo rio Frio? Num outro extremo desse mesmo couto? Ou em sítio mais próximo ao núcleo original da cidade? Esta designação existe ainda hoje, na célebre localidade de Faria (Barcelos), ou em Tropeço (Arouca); mas é pouco credível que seja uma destas a mencionada localidade... Haverá algum leitor que possa trazer alguma luz a este mistério?

Viriato


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FONTE: Corpus codicum latinorum... (vol. 2), via A Alfândega do Porto - e o Despacho Aduaneiro, catálogo da exposição organizada pelo AHMP em 1990.

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Do Museu Municipal do Porto

Na atualidade, a cidade do Porto conta com um conceito virtual denominado Museu da Cidade, que é na verdade um conjunto de núcleos museológicos (as denominadas estações). No entanto, um museu que num mesmo local conte a história da cidade de uma forma metódica, cronológica, com exemplares arquelógicos e documentais, esse não existe. Isto não significa que os vários núcleos hoje existentes não mereçam ser visitados; certamente que sim, e alguns demoradamente. A designação atribuída ao conceito é que me parece algo abusiva.


Mas se o Porto não tem UM museu da cidade, na verdade já o teve. Museu que, com várias peripécias, acabou extinto e o seu núcleo anexado pelo Soares dos Reis, originalmente mais pobre do que ele! E embora este museu não se dedicasse à história da cidade em exclusivo (longe disso!), teria sido um pilar dificil de derruir para um grandioso museu a instalar em edifício condigno, onde, aí sim, se puderia seccionar por temas, épocas, ou subdivisões que se revelassem pertinentes. Mas em 1940 não se pensou assim...


Abaixo poderá o leitor desfrutar de um texto extraído do relatório camarário publicado em 1880, referente a este museu; um dos embriões do Soares dos Reis. Foi escrito por Eduardo Allen, filho do fundador. O museu - o recheio, não o edifício - era propriedade municipal desde 1850.


« ... [O museu] continua a ser frequentado por artistas e amadores particulares que ali concorrem nos dias de semana a aproveitar a faculdade concedida de copiarem os quadros da galeria; sendo desta vez os magníficos floreiros do pintor flamengo Daniel Seghers, os que mereceram a honra de ter o maior número de copistas, principalmente pelo que toca a alguns grupos de suas admiráveis grinaldas, tão cheias de verdade, naturalidade e graça, e cujas tintas eram de tão boa tempera química que, apesar de decorridos duzentos e cinquenta anos depois que foram aplicadas na madeira, ainda hoje conservam todo o seu brilho e viçosa frescura.


Também não deixaram de continuar um só dia, um só instante, os indispensáveis e multíplices cuidados de conservação dos objetos que compõem o museu, a fim de neutralizar e impedir quanto possível os efeitos perniciosos resultantes das menos adequadas condições do edifício, principalmente nos meses de maior humidade, ou também naqueles em que os continuados ventos lestes levantam em uma rua macadamizada e tão frequentada por veículos como é a da Restauração, nuvens de poeira que se insinua nas salas do museu pelas fendas e interstícios das claraboias e ventiladores.


O envernizamento e restauração dos quadros da galeria não pode ser tão rápido nem estender-se a tanta pinturas como era desejável, sendo que ainda muitas carecem dessas operações (ou pelo menos da primeira), - por isso que o habilíssimo artista especialista Moura sempre se acha ocupadíssimo com obra, em razão do número sempre crescente de possuidores de quadros que o procuram a fim de aproveitar-se da sua rra perícia.


Em setembro próximo passado recebeu a Exma. Câmara proposta de um estabelecimento fotográfico desta cidade, para a cópia dos mais importantes quadros da sua galeria, e daquelas curiosidades históricas, arqueológicas, artísticas ou cientificas que merecessem a pena de ser reproduzidas por aquela arte. Alguns ensaios se têm feito, que deram bom resultado (...). Com as pinturas têm-se já ensaiado algumas cópias, sendo grandes e gravíssimas as dificuldades neste género, em razão da diversidade do efeito químico de cada cor, e por outras causas (...), mas espera-se vencer todas essas dificuldades, e em tempo competente informarei do resultado a Exma. Câmara: e tenho-os muito a peito, não só porque essas fotografias poderão dar lugar a mais seguramente se fazerem as atribuições dos respetivos originais aos diversos pintores e escolas a que pertencem, mas também hão de contribuir para tornar conhecidos entre os estrangeiros os nossos bons pintores nacionais, difundindo-se lá por fora as cópias dos seus quadros que o museu possui.»

Viriato


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FONTE: Relatório da Gerência da Câmara Municipal do Porto no Biénio de 1878, 1879.

NOTA: para um bom trabalho sobre a história deste museu, recomendo a leitura da dissertação de António Manuel Passos Almeida, intitulada Museu Municipal do Porto: das Origens à sua Extinção.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Simplesmente, Camilo

Confesso, caro leitor, estou como que viciado nos livros de Camilo Castelo Branco! Descobri este pequeno prazer já tarde, aos 44 anos, que é como quem diz no ano passado... Não passarei a ser adventista do Anastácio das Lombrigas, nem mesmo pretendo ascender à cátedra de camilionista. Nada disso. A minha razão começou de forma bem prosaica, com o interesse de dele sugar todo o que fosse Porto. Todos aqueles pormenores que me pudessem ajudar a imaginar uma cidade que já não volta, a dos meados do século XIX: último reduto do mundo antigo. As Congostas, a Cruz das Regateiras, a Rua do Bispo, e tantos, tantos outros pormenores da 'segunda capital do reino' presentes nos volumes do escritor ali estão, ainda que os seus romances não se esgotem no Porto e seus arredores (acabo de ler, por exemplo, o Romance de Um Homem Rico, em grande parte passado entre Lisboa e Santarém).

É Camilo que me diz que a Cruz das Regateiras ficava, por meados do século, a uma légua da cidade. Aí coloca o autor a residência das amantes de protagonistas dos romances O Sangue e O Esqueleto (teria paralelo na realidade?). Nas Congostas, o casal protagonista evade-se pelas traseiras das casas para a cerca de S. Domingos (o jardim do Infante ainda não existia), deixando para trás o seu filho que apenas os reconhecerá perto da morte. Já na Vitória e em lágrimas, deitam o último relance à casa onde ele será criado, antes de fugirem para o Minho... São, enfim, várias as passagens com as quais me consigo relacionar, que poderia aqui referir e que ficarão para outras publicações.

É claro; reconheço o estilo de linguagem romântico e irreal que ocorre por vezes dos diálogos. Estou convencido que nem mesmo naquela época as pessoas comunicavam daquela forma; e também não deixei de sentir algum embaraço (muito leve...) quando, pelas primeiras vezes, vi Camilo dirigir-se exclusivamente às suas leitoras... Mas nada disso importa e nada disso retira valor à obra deste autor, com lugar cativo no panteão literário da língua portuguesa.

Finalizo com uma pequena passagem do folhetim em que Camilo critica a obra de António Coelho Lousada, Rua Escura, onde o autor se refere a elementos verídicos da vida citadina de oitocentos. Este excerto que apresento não é a crítica propriamente dita, antes pretende retratar uma suposta verdade, segundo Camilo...


Reza assim: «Antes, porem, de começar é preciso saber-se que o author da Rua Escura, amante de tradicções em que entrem feitiços e quejandas crendices populares, romantisou uma velha tradicção, confiada de geração em geração, como um deposito sagrado, a todas as Canidias, maiores de oitenta annos, da Rua do Souto, Pelames, rua Escura, e becos adjacentes.

A tradicção é que, ali por algures da velha cidade, morou um estalajadeiro, que se entretinha, de vez em quando, em reduzir os seus hospedes á perfeição culinaria da almondega. N'este deploravel conceito entrou a reputação posthuma de muitos pasteleiros de diversas partes.

Um estalajadeiro antropophago é tradicção commum de muitos paizes. Isto prova talvez que, ha quatro ou sinco seculos, era trivial comer-se por essas estalagens meia-posta de perna humana como hoje se comem moscas na Estrela do Norte, no Porto, e carochas nos Dous Amigos em Lisboa.

E, quem sabe se os pobres locandeiros foram calumniados pela tradicção, do mesmo modo que a historia, e mais é a historia, tem calumniado muitos varões honrados!? Eu não venho aqui defender a memoria do snr. Bartholomeu de Basto: não posso, porém, deixar de protestar contra uma outra tradicção que, d'aqui a tres seculos, hade correr a respeito dos estalajadeiros contemporaneos. E é que rara taverna ha ahi nas provincias do norte, onde não tenha sido estrangulado um brazileiro que trazia nos alforges sempre de duzentos mil cruzados para cima. Se me dissessem que uma legião de insectos, desde a pulga, que mereceu um elogio a Boileau (Deos lhe perdôe!) até a centopeia, sugára a alma e o corpo d'um brazileiro, isso sim, tinha seu seu fundamento: eu, que não sou brazileiros, por meus peccados, tenho-me visto a braços com a morte nas estalagens, e pezo-me a cêra todas as vezes que saio são e salvo: atribuirem, porém, aos tascantes a carnificina por ambição de duzentos mil cruzados, é, não só calumnia, mas até ignorancia da mais trivialissima regra,  que é a de 3. Um brazileiro, se traz liquidos para Portugal os seus haveres, não chega com elles á estalagem. O governo, que toma a juro em nome da nação, poupa-o ao risco da jornada, e previne moralmente, sem o pensar, as tentações dos estalajadeiros.

Dito isto, que me é allivio de consciencia, pelo muito que tomo a peito appresentar no seculo XXV esta minha geração, pura e candida como ella é, vamos ha historia.»


Foi a leitura deste pequeno excerto prazerosa? Camilo nunca desaponta... Resta-me alertar para o facto de ter mantido a ortografia original do documento que consultei: a primeira página do efémero jornal O Clamor Publico, de 23 de outubro de 1856.

Viriato

domingo, 2 de julho de 2023

Barroquismos à parte...

São conhecidas as diversas intervenções da DGEMN, que a partir dos anos 20 do século passado atuou em bastantes monumentos, criando para todos os efeitos uma leitura nova dos mesmos, hoje cristalizada como verdade histórica para o seu visitante ocasional. Desde os castelos, às igrejas, passando pelas muralhas, os responsáveis avançaram com inúmeras alterações; demolindo, recreando ou mesmo inventando. Assim, até que ponto quando chegamos a uma terra e vamos admirar os seus monumentos mais antigos, estamos na presença de verdadeiras sobrevivências de outras eras? Ou, pelo contrário, estamos na presença de pedras lavradas não há cem anos, ainda que o tempo decorrido se tenha encarregado de esmaicer a sua patina? Recordo, por exemplo, ter verificado através de um postal antigo que a igreja matriz de Barcelos, não havia chegado ao século XX com a bonita rosácea que agora exibe. Na verdade, era um grande janelão que ali campeava, antes da reintegração... Feio, sim? Mas «cada época tem seu uso; cada geração o seu espírito. Se se adicionar o importante elemento da modificação-modernização própria de todos os tempos, compreende-se o fenómeno característico do desaparecimento de tanta coisa que seria óptima se se tivesse conservado». Palavras certeiras de Bernardo Xavier Coutinho quando aplicadas aos monumentos portugueses pré-DGEMN; pois as intervenções de meados do século passado foram sobretudo artificiais, ainda que por vezes validadas por obras urgentes de restauro sob pena de ruína dos edifícios. Por muito criteriosas que fossem as opções dos responsáveis da época, creio que seria preferível lamentar a perda do original, do que glorificar a sua cópia. Felizmente hoje tal situação é impensável, mas é já tarde para repor os monumentos no seu anterior aspeto... restam-nos alguns registos fotográficos que nos permitem verificar como se apresentavam tal como legados pelas gerações anteriores: com todas as suas fusões estilísticas, modificações de melhor ou menor gosto e barroquismos exacerbados; enfim, antes do seu revivalismo. Surpreendeu-me no entanto que ainda assim algumas pessoas, mesmo que mais humildes, procurassem lutar pela manutenção de elementos desconsiderados pelas entidades responsáveis, mas que eram vistos com importância pelas comunidades que de facto usufruíam dos monumentos; como agora veremos.


A partir de 1927 têm início com ímpeto crescente, estas transformações, sendo a igreja matriz de Paço de Sousa apanhada no voraz apetite reintegracionista. Com efeito, este templo, construído entre os séculos XII e XIV, e naturalmente permeável às modificações provocadas pelos desejos dos monges seus proprietários para lá desse período, sofreu várias obras de restauro que a tornaram novamente visitável, após um incêndio no ano referido; todas elas bastante apoiadas pelos populares. Isso não impediu, contudo, que em 1933 a população da freguesia se insurgesse contra a destruição dos aspetos barrocos sua da fachada (que podemos ver na imagem abaixo).


Chegaram mesmo a enviar uma missiva a Baltazar de Castro, onde se manifestavam contra a execução da obra e da forma como ela estava a ser levada a cabo:


«(...) Os abaixo assinados, habitantes e naturais de Paço de Sousa, perante um facto que reputam atentório da integridade da sua igreja matriz (...) vem respeitosamente trazer ao conhecimento de V. Ex.ª os vandalismos praticados à sombra de um falso critério artístico, e contra os mesmos respeitosamente protestam, confiados no alto espírito de justiça de V. Ex.ª. (...) com enorme surpresa, voltam a realizar-se novas obras [o restauro do templo já ocorrera], sem que se compreendam os motivos que as justifiquem. Diz-se que se destinam a um completo restauro da fachada no qual se registam um hibridismo românico e rococó (D. João V). Se a tal facto constituísse um agravo ao desacerto artístico ainda tal se poderia compreender. No entanto, de modo algum se compreenderia a forma brutal e iconoclasta como todas as pedras lavradas da parte Joanina são grosseiramente mutiladas, apeadas e mal tratadas por uma forma verdadeiramente inconsciente. Certo é, porêm, que esse hibridismo não comprometia a beleza do aspeto geral da frontaria, tendo a vantagem de apresentar a aliança embora singular do espírito de duas épocas artísticas tão diferentes e distâncidas, formando um conjunto de rara beleza na urdidura do estilo D. João V (...). (...) Dado porém, que fosse nociva essa disparidade de estilos recomendava a mais elementar inteligência dos factos que as pedras da parte enxertada fossem desveladamente retiradas e conservadas, afim de poderem ser repostas em qualquer parte, inclusivamente num Museu. Não concordamos, já pelo amor que votamos a esta nossa Igreja paroquial, já por entendermos que é um deplorável e injustificável erro artístico, com esta pretensão integral restauração. (...) Este ataque infeliz e inesperado, provocou na população enorme celeuma e uma justíssima indignação, que decerto se teria exteriorizado, no primeiro impulso, por uma forma ativa, se alguns dos signatários tal não tivessem evitado. Como V. Ex.º verifica, achamos bem as primeiras obras realizadas, que de todos mereceram uma reconhecida homenagem. Com estas, porém, de modo algum podemos concordar e estamos certos também de que a elas V. Ex.ª não poderá dar beneplácito. (...). Não faltam no país autorizados especialistas, livres de ideias preconcebidas, sem unilateridade de critérios, nas condições de [a] V. Ex.ª prestarem os esclarecimentos necessários sobre o aspeto artístico e arqueológico desta riquíssima frontaria. Profundamente reconhecidos ficaremos a V. Ex.ª pelo interesse que esta reclamação possa merecer-lhe, a qual efetivamos apenas determinados pelo amor à nossa igreja, à benéfica sombra da qual temos vivido, vendo presentemente o judaico desejo de substituir o nosso estilo que tão belos motivos forneceu às Igrejas portuguesas e em especial à nossa, compondo a monotonia e agressivo aspetos do estilo bárbaro. (...)»


Baltazar de Castro terá no entanto descartado esta argumentação, considerando que os ornamentos joaninos nenhum valor possuíam, antes desvalorizavam o valor românico daquela igreja.


Vejamos algumas das alterações ao edifício promovidas por aquele tempo:

- a) demolição da torre sineira, que se firmava «em alguns dos primeiros arcos interiores da igreja e nos muros da frontaria e fachada do sul;

- b) parte do corpo do mosteiro que se alongava para o adro;

(referir, em abono da verdade, que as duas intervenções acima possibilitaram o desentaipamento de uma porta sul da igreja, o que permitiu avanços no conhecimento científico sobre a mesma, nomeadamente na datação).

- c) refazer da frontaria onde se encontravam desfiguradas «as colunas, os capitéis; e até as arquivoltas (...) faltavam completamente, no respaldo do seu coroamento os cachorros que o guarneciam - todos de curiosa decoração zoomórfica»;

alguns terão sido reaproveitados como cachorros na varanda existente na parte do corpo do convento que foi demolida (ver a foto 1, à direita), e recolocados pelos serviços no portal da igreja

- d) alteração dos «largos janelões retangulares» em «estreitas e esguias frestas», na nave do norte, numa aproximação ao original.


Não posso deixar de rematar esta publicação com palavras de um dos autores (M. L. Botelho) citados a pp. 93 da obra Mosteiro de S. Salvador... de Bernardino Gonçalves, que subscrevo inteiramente: «As próprias restaurações dependendo da sua dimensão e postura interventiva, também elas poderão constituir história ao imporem um novo estilo arquitetónico. As reintegrações levadas a cabo pela DGEMN sobre a arquitetura românica podem ter impingido uma imagem estilística que provavelmente nunca existira».

Viriato


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As fontes para esta publicação foram: Património e Restauro em Portugal de Miguel Tomé (2002); Mosteiro de S. Salvador de Paço de Sousa - Contribuição para a sua Reabilitação Arquitetónica de Bernardino da Conceição Duarte Gonçalves (2012) e A Arte de Bernardo Xavier Coutinho (1965), capítulo inserido no volume 2 da conhecida História da Cidade do Porto da Portucalense Editora.

sábado, 1 de julho de 2023

A última carta

O convento dominicano do Porto (ou melhor, o primeiro convento dominicano do Porto, uma vez que um outro existe desde 1952), casa multissecular, atravessou vários períodos da vida do país, desde que em 1238 foi fundado. Decrépito de décadas, foi o governo provisório do regente D. Pedro que, em 1832, lhe desferiu o golpe de misericórdia. Finou-se em Outubro desse mesmo ano, quando as folhas caíam... e as balas também.


Já depois do seu fim, mas ainda antes do decreto de 15 de maio de 1833 que o oficializava, a Comissão Administrativa dos Conventos Abandonados intimou os frades resistentes - que agora viviam extra claustros - a responder a um conjunto de questões. da análise das suas respostas, datada de 3 de Janeiro de 1833, ressaltam alguns pormenores interessantes que, quando cruzados com os acontecimentos político-sociais da época por um historiador disposto a fazê-lo, certamente trarão algum colorido à austera elencagem dos factos (o "fazer a história", devendo ser o mais verdadeiro e rigoroso possível, nem por isso necessita de ser cinzento).


A carta divide-se em cinco pontos. No primeiro são referidos os padres assinados no convento de S. Domingos, à entrada do Exército Libertador. Começa pelo prior da casa, Fr. Manuel Joaquim de St.ª Ana, residente quase sempre com a sua família, assinado no convento de Guimarães; segue-se Fr. Joaquim José de St.ª Gertrudes Escadinha, a ares em Avintes muito antes da chegada de D. Pedro(a); Fr. José de St.º António Alves que se retirou na mesma data; Fr. António de S. Joaquim de Almeida, que também saíndo do convento à entrada do exército, foi poucos dias depois preso e colocado de novo nele até à ordem final de despejo e ainda vivia no Porto; Fr. Joaquim de Almeida, em casa de seus parentes bem antes da entrada de D. Pedro; Fr. João Pinto de Queirós, prior em Guimarães; Fr. Francisco de St.º Tomás, primeiro reitor no colégio de Stº Tomás em Coimbra; Fr. José Peixoto, prior no convento de S. Domingos em Aveiro; Fr. Alexandre de Magalhães, vivendo com licença em casa dos seus parentes, muito antes da chegada de D. Pedro; Fr. José de Matos, na mesma situação do anterior; Fr. António de Cerqueira Lima, síndico no convento de Ancede(b) e Fr. António Pinheiro, no convento à entrada do exército, mas que depois se retirou(c).

início da resposta dos conventuais

Segue-se o segundo ponto: quem eram os frades do convento à época? Eram eles 8 no total, ainda que dois fossem leigos e um se houvesse retirado, por doença, para Leça, a banhos. Os seus nomes: Fr. João Batista Pinto, Fr. Domingos de Mesquita, Fr. Bernardino Peixoto, Fr. Francisco Pinto (em Leça desde agosto e onde se conservava por não poder vir), Fr. António de St.º Tomás Sousa, Fr. Cornélio Vicente Odéa; e os leigos Fr. Baltazar e Fr. António Seixas.


Passa a carta a referir os seus rendimentos, que provinham da própria cerca do convento, da quinta da Fonte da Vinha (brévia dos dominicanos situada em Oliveira do Douro), arrendamento de armazéns, lojas, casa do Banco e outras; foros, pensões, legados, juros da Companhia(d), juros do convento de Ancede e do Erário(e), alças da Câmara e da cadeira e sermões da Sé... Tudo isto valeria, segundo contas do último priorado, cerca de treze contos e seiscentos mil reis.


No quarto ponto é referida a mobília do convento. Começa por informar que já não existiam quaisquer pratas. Refere depois que as mesas, carteiras, leitos, enxergões, roupas, e painéis de excelentes pinturas, teria levado em parte extravio na entrada e saída do batalhão 3 de Caçadores(f). O resto, dizem, estava entregue à comissão por portaria de Outubro ou havia-se queimado no incêndio. E quanto à mobília de sacristia, e alguma prata que havia, «a comissão que tomou conta responderá por isso». Será esta última menção, uma velada desconfiança dirigida à dita comissão?


Termina a carta no último ponto, passando os olhos até mesmo pela mobília particular. Mas aqui, ela é ainda mais sucinta: quando foram intimados para despejar o convento e entregá-lo ao administrador da alfândega por portaria datada de 2 de Outubro de 1832, cada um dos seus habitantes tomara conta do que era seu.


A carta termina com as assinaturas de cinco dos últimos frades do convento: Fr. Domingos de Mesquita, Fr. João Batista Pinto, Fr. Bernardino Peixoto, Fr. António de St.º Tomás Sousa e Fr. Cornélio Vicente Odea»

Viriato


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a) 9 de Julho de 1832.

b) O convento de Ancede, dominicano desde 1540, era anexo ao convento de S. Domingos de Lisboa.

c) Curiosa, pelo menos a meus olhos, a presença do prior vimaranense e aveirense na casa do Porto, sobretudo com a ausência do... portuense! Que peripécias estarão por trás destas presenças e ausências?

d) Companhia dos Vinhos do Alto Douro.

e) Possivelmente dinheiro emprestado a juro.

f) O que ocupou o convento na segunda metade do século XIX (?).